A Cruz que mexe
No início sempre fora besta. Besta de doer. Não levantava antes de o despertador tocar. Teve uma noite que ele esperou três horas pelo barulho do relógio. Se tinha insônia não levantava um só pé. Era assim com tudo e todos. Não passava roupas porque iria amaçá-las novamente. Não lavava a louça, usava pratos descartáveis. Suas roupas eram doadas a cada semana. “Essa calça já está ficando suja, vou botar fora” dizia ele. Calça que ele comprara mês passado. Mas apesar de tudo era feliz. Solteiro, rico, porco, preguiço, mas feliz. Ninguém ao certo sabia a história daquele homem. Dona Lucinda, do armazém da esquina, sempre suspeitou de que ele fosse um traficante. Não trabalhava e vivia comprando roupas, homem mais estranho não existia. Ele não pagava imposto. Seu IPTU estava atrasado há anos, e nunca, nunca o tiraram a casa. “Não dou dinheiro para bandidos, não pago um só centavo para esses pilantras”, Frisava. De certo ponto tinha razão. Imposto, carga tributária, tudo isso é um absurdo. Ainda mais para ele, apolítico, ateu, que tinha mil teorias sobre a origem da vida.
Certa vez foi ao cemitério, gostava do coveiro, para quem não tinha nada para fazer bater um papo com o coveiro era diversão na certa. Discutiam sobre os túmulos, que falta de respeito com os mortos, túmulos aos pedaços, quase não se enxergava mais o nome e a data de vivência do defunto.
- Aquele ali é meu preferido. - Disse Ramalho, o coveiro amigo.
- Não gosto daquele, a tinta é de péssimo gosto. Prefiro o terceiro da esquerda para direita com a cruz metálica, belo gosto, bem cuidado.
- Bem, aquele túmulo tem uma história bem interessante.
- E está esperando o quê para contar-me?
- Bom, numa noite dessas vi a cruz se mexer.
- Cruz se mexe? Estou realmente desatualizado.
- Pela lógica real não deveria se mexer, mas o fato foi que as três da madruga, juro por tudo que é mais sagrado que vi aquela cruz se mexer.
- Três da madrugada?
- Três da madrugada.
- Cruz se mexendo?
- Sim, ela mexeu.
- Quem jaz ali?
- Um antigo agricultor, seu filho, porém, é rico, dono de uma multinacional de calçados. Fez questão de deixar o pai bem acomodado.
- Nota-se.
- Até hoje não entendo.
- O quê?
- Aquela cruz, tenha algo muito suspeito.
- Por que tu não a arrancas fora?
- Como é?
- Você é o coveiro, toma coragem, arranque a cruz.
- Não posso fazer isso, é meu dever deixar os túmulos como estão.
- Bom, então não reclame se ela se mexer, é o direito que ela tem.
- Mas por Deus, Homen! Cruz não se mexe! Tu achas isso normal?
- Não creio em Deus, e se a cruz se mexe é porque deve ter algum motivo.
- Você pode não crer em Deus, mas ele crê em você.
- Se ele Crê em mim não teria feito o que fez comigo.
- Mas o que ele fez com você?
Ele olha para o relógio percebe que já era tarde, resolve cortar o papo e sair:
- Ramalho, preciso ir, já está tarde.
- Tudo bem, nos vemos por aí.
- Sem dúvida, um abraço.
- Outro.
Saiu sem muita cerimônia, era bastante direto. O coveiro, no entanto, ficou absorto tentando decifrar o que Deus fez ao homem que não tem fé. Esse, voltava para casa lentamente, passou pelo armazém de D. Lucinda que o secou com olhar devorador. “Homem estranho, homem estranho”. Repetia, sempre que o via passando. Ele entrou em casa atirou o casaco na poltrona, ajoelhou-se em frente à televisão e chorou. Começou a chorar como criança, lágrimas corriam em seu rosto sem intervalos. Levantou-se, despiu-se todo, tirou primeiro a calça, depois a cueca, por último a camisa. Jogou tudo no tapete vermelho (odiava azul). Agora ele estava nu, pelado na sala em frente a TV. Calmamente, ele coloca suas mãos nas laterais do televisor, começa então uma crise histérica, bate a cabeça contra o aparelho com uma força desconhecida, bate-se cada vez mais forte, violência pura, sangue espirrando, e ele não parava como se não sentisse dor.
Até que parou.
Foi até a cozinha, com o sangue espirrando no carpete, abriu a gaveta sem trinco, pegou uma faca, e de maneira brutal, rasgou o seu rosto desenhando uma cruz. Incrivelmente não sentia dor. Caminhando ensangüentado, deita-se no chão e ali adormece.
Cinco e meia da manhã, ele acorda. O despertador ainda não tocou, faltavam quinze minutos. Dessa vez ele resolve se levantar, e pensa:
- Coveiro? D. Lucinda? Cruz que se mexe? Que sonho mais estranho.