CENA CONJUGAL DO INSÓLITO COTIDIANO

O marido entra na cozinha, onde Sandra se encontra e ela logo percebe pelo olhar atônito do homem que ele tem algo a dizer.

Mesmo assim, para facilitar a revelação da novidade, ela murmura, em tom mais circunstancial do que carinhoso: oi, o que houve?

A resposta vem de imediato: ora essa, morri!

- Como morreu? E o que faz aqui diante de mim?

- Você sabe muito bem que, quando uma pessoa morre, não parte de imediato. Estou aqui a vagar. Deixei meu corpo lá no sofá, em frente à TV.

- Não acredito que você estivesse a assistir ao futebol! O médico disse que não deveria, que isso lhe faz mal.

- Mas não era jogo do meu Fluminense. Reconheço que fico... meio nervoso quando o melhor time do mundo está em campo e a sorte não lhe sorri de imediato. Neste caso, não. Eu assistia a uma partida entre duas equipes italianas que nem conheço direito. Resolvi ver por puro diletantismo.

- Diletantismo? Você torce até por time de pelada quando vê um racha em qualquer rua. Não abre mão da emoção.

- Viver sem emoção é vegetar.

- Puro romantismo. A vida exige racionalidade, isso sim. Por que, em vez de ligar a televisão, não foi ler aquele livro que recomendei?

- Porque não achei. Você não põe os objetos no lugar, larga tudo em qualquer canto. Ainda me vem falar em racionalidade!

- Você mesmo pediu que deixasse o livro sobre o criado-mudo, já esqueceu?

- Que criado-mudo?

- O seu, evidentemente. Faço tudo para facilitar sua vida e ainda aguento reclamação.

- Pois não facilitou minha vida. Além do quê, minha vida se foi e estou morto, já lhe disse.

- Morreu de quê, criatura?

- Sei lá. Quando dei por mim, meu corpo estava gélido. A essa altura, encontra-se rígido feito pedra.

- Não decorreu tanto tempo assim.

- Vá lá saber! Eu esperei um bocado para assegurar-me da minha morte e não vir incomodá-la com boato infundado.

- Obrigada pela consideração. Fez bem. Lembrou-se de que detesto essa boataria sem fim que circula na Internet, na televisão e entre nossos vizinhos. Lamentável como tanta gente só quer repassar informações sem indagar-se sobre a veracidade dos fatos.

- Nisso concordamos em 100%. As comunicações circulam com velocidade estonteante, mas desprovidas de critério. Também, com tanta gente tonta por aí, não é de admirar que seja estonteante (o marido acompanhou a última afirmação com aquele sorriso típico, a que a esposa tanto se acostumara quando ele produzia um jogo de palavras).

- Nós a conversar enquanto a televisão ainda está ligada. Depois, você vem queixar-se das contas de luz.

- De fato, são exorbitantes para um casal que se esforça em viver racionalmente. Desta vez, porém, não tenho culpa. Não foi esquecimento. Morri antes de poder desligar o aparelho.

Ambos se dirigem à saleta onde fica o televisor. A mulher apanha o controle remoto, ao lado do corpo aparentemente inerte, e desliga sem dar tempo ao marido de ver a reprise de um gol, ao que ele protesta. Recomeça mais uma discussão conjugal, conjugada aos temperamentos e interesses distintos que nem eventuais Bodas de Prata ou de Ouro poderiam unificar. Diferenças devem existir sempre, em favor da melhor convivência, ponto em que os dois mais uma vez coincidem.

- Opa! Que cheiro é esse? A panela ficou no fogo, caramba!

Agora, tratar de abrir janelas para saírem tanto a fumaça quanto o odor desagradável do queimado. O espírito do falecido hesita em sair, no entanto. Crê que ainda restam questões a resolver com a viúva.

Aborrecida com a comida queimada, Sandra sai de casa em busca de um restaurante e de uma funerária. Por zap, relata o ocorrido ao médico da família.

O finado fica a penar entre a sala e a cozinha, sem apetite, somente curioso em saber o resultado do jogo italiano a que assistia. Bem que poderia haver morrido após o final do segundo tempo!...

Setembro 2022.