Partículas de realidade
Encontrei Kiama ainda às voltas com o Jogo, no quarto obscurecido que dividíamos no alojamento dos estudantes, iluminado apenas pelo monitor de 22". Joystick nas mãos, expressão concentrada, mal me notou quando entrei.
- Ei, Hamisi - me cumprimentou finalmente.
- Algum progresso? - Indaguei, sentando-me em minha cama.
- É estranho, - declarou - mas parece estar afetando o meu laptop. Como se estivesse... vazando.
Franzi a testa.
- O Jogo está exigindo demais da sua máquina, é isso? Mas pelo que li, as especificações nem eram tão altas assim...
Kiama abanou negativamente a cabeça.
- Não, tenho muito mais do que os requisitos mínimos para rodar sem gargalos. A questão é que tenho notado o surgimento de arquivos aleatórios, que nada têm a ver com o Jogo; pelo menos, não aparentemente.
Dei de ombros.
- Talvez então tenha a ver com o sistema de organização dos arquivos, e não com a memória - sugeri. - O algoritmo pode não ter sido otimizado para desfragmentação, e espalha lixo pelo disco rígido.
- Uma rotina de coleta de lixo é algo tão básico, que me surpreenderia descobrir que quem quer que tenha criado o Jogo não houvesse pensado nisso - replicou, mordendo os lábios.
- E se isso fosse intencional? - Questionei. - Não disse que o Jogo parecia estar vazando? Talvez o objetivo do desenvolvedor fosse impactar o ambiente ao redor do seu programa; como um vírus.
Kiama fez uma pausa no Jogo e me encarou:
- Um vírus, você diz? Já ouviu falar do REALIDADE.SYS?
Balancei afirmativamente a cabeça.
- Já, e é só uma lenda urbana.
Kiama fez um gesto negativo.
- Conheço gente que conhece gente que já teve esse disquete nas mãos. O Jogo pode ter algo do algoritmo do REALIDADE.SYS; como um daqueles glóbulos de homeopatia, que em tese não deveriam causar efeito algum no corpo humano.
Ergui os sobrolhos.
- É uma boa comparação, porque os tais glóbulos não causam mesmo efeito algum; é pura sugestão.
- A mera sugestão pode afetar a realidade? - Perguntou Kiama. - Mesmo que apenas agisse como um catalisador, o seu papel não poderia ser desprezado.
- Então, a sua ideia é que o Jogo contém o princípio ativo do REALIDADE.SYS, apenas em forma bem diluída? - Repliquei.
- Eu sinto isso - disse Kiama em tom convicto. - Se conseguir terminar, creio que terei as respostas em mãos.
- Ninguém nunca conseguiu terminar o Jogo - ponderei. - Se você for o primeiro, ficará famoso.
Kiama sorriu, a luz azulada do monitor banhando seu rosto.
- Não tenho a menor intenção de ficar famoso - afirmou.
De fato, na manhã seguinte, verifiquei que ele de fato havia concluído o Jogo: a última tela, com os créditos, ainda estava aberta no laptop. Mas Kiama não foi encontrado em parte alguma do campus.
Como havia uma probabilidade maior do que zero de que ele houvesse sido absorvido pelo algoritmo do Jogo, resolvi guardar o laptop para fazer uma análise posterior. Mesmo que eu não encontrasse nada, Kiama poderia continuar a aguardar por uma solução indefinidamente, já que não estava mais preso às restrições impostas à carne e à matéria...
- [30-09-2022]