A ARMADILHA
Eram ex-freiras da Irmandade do Sagrado Coração de Jesus, Maria e Marisa, ambas professoras da Escola de Serviço Social da Universidade de Campinas (SP). Tinham experiência em Educação Popular e vinculavam-se à Teologia da Libertação. Moravam em um velho casarão de dois andares, com quintal e jardim, em um bairro pobre no subúrbio da cidade.
Como sempre se dedicaram a apoiar populações de baixa renda, pensavam em continuar esta tarefa com moradores próximos de sua casa, e com o aval da Igreja Católica nas Pastorais Urbanas. Fazia pouco tempo que mudaram de casa, ainda não tinham amadurecido uma proposta para contatar os seus vizinhos. Se aproximaram indo ao comércio local e às missas na paróquia.
Aos poucos, foram cercadas por visitas inesperadas ao casarão, tanto de seus vizinhos como de seus namorados, na crença de que mulher solteira estava sempre disponível. As duas começam a se incomodar com o assédio constante: a toda hora chegavam vizinhas pedindo alimentos, ou seus namorados para almoçar ou jantar com elas. Não tinham mais horário para suas atividades cotidianas. Oprimidas, manipuladas com todos tirando vantagem delas. Vistas como bondosas, prontas a se doar pelo amor ao próximo. Tudo por conta de seus vínculos religiosos.
Entretanto, elas não aderiam a estes clichês e nem ao papel que a religião delega ao sexo feminino. Eram esclarecidas e independentes. Faziam uma parceria curiosa, pois uma delas tinha um temperamento calmo e receptivo a tudo que a cercava, e a outra nervosa e realista, desconfiava das intenções humanas. Juntas concordavam que o sexo feminino era um alvo fácil de enganação. Elas eram solteiras e não tinham uma família extensa por perto. Suas afinidades eram muitas e mesmo quando divergiam acabavam concordando no final. Tinham de somar forças para enfrentar os desafios da vida.
O que queriam mesmo era realizar um projeto que fortalecesse a visão crítica dos trabalhadores em prol de uma sociedade justa e fraterna. Mas, o que fazer se tudo que queriam planejar estava sendo barrado pelo contato com aduladores e carentes? Tinham de cortar de vez, com todos os aproveitadores de plantão. Iam bolar uma estratégia longe daquele lugar. Com as férias do magistério viajaram sozinhas para o litoral do Estado. Levaram livros de filosofia oriental e dois filmes clássicos sobre os conflitos femininos e a busca de soluções: “Viridiana” (Buñuel, 1961) e “Thelma & Louise (Ridley Scott,1991). O primeiro é sobre uma mulher criada em um convento na crença do amor cristão incondicional. Uma critica mordaz contra os preceitos idealistas da Igreja Católica, à caridade cristã e à subjugação sexual feminina. O segundo trata de mulheres que fogem às suas vidas rotineiras e submissas em busca da liberdade. Em seu caminho vão sofrer estupros e abuso sexual. Um tema atual com os debates sobre feminicídio e violência contra mulheres. Este filme mostra a virada de mesa do “sexo frágil” contra a sua submissão.
Depois do impacto dos filmes, elas passaram a refletir sobre a solução mais eficiente para afastar de uma vez por todas, os “vampiros de alma” do casarão.
-- Maria: “Vamos mostrar que não precisamos de nenhum homem para nos proteger. Mas, como radicalizar sem sofrer as consequências de nossos atos?”
-- Marisa: “Que tal arranjar um jeito de usar o alçapão do piso superior? O assoalho até agora está com a madeira quebrada e pode causar quedas. Só nós conhecemos os macetes da casa, e lá só nós pisamos.
--Maria: “Genial! Já não consigo mais ter calma com o hábito dos parceiros de usar a casa e os corpos como se fossem nossos donos. Se formos denunciar na Delegacia da Mulher vamos entrar na morosidade da Justiça, e na demora das soluções.
-- Marisa: “Pior é que quando denunciam acabam sendo alvo de feminicídio. Temos de pensar em um esquema que vai levar à morte ou a mutilação de um deles. Mas, temos de ter cuidado para não desconfiarem que foi armação nossa.”
Passaram e repassaram o “texto” durante todo o tempo das férias. Iam atrair um dos homens para cima, o mais insistente, sem a presença do outro, e da vizinhança. Só seria alertado que o piso não estava bom, e que sua namorada devia estar cochilando, pois não escutou o chamado do térreo. Quem ficasse no primeiro andar acudiria ao grito da amiga e ainda telefonaria para o bombeiro. Elas não teriam força para tirar o homem do buraco. Iam ficar por lá acalmando o ferido até a chegada dos bombeiros e também da polícia. Tudo era fácil de executar: ele poderia ter sorte e não cair no alçapão, poderia cair e morrer ou ficar machucado. Seria um tributo delas ao filme “Thelma & Louise”.
Firmaram um pacto de lealdade, provando que entre elas não existia o lugar comum da rivalidade feminina. Criaram uma “dupla de justiceiras”, pois fariam “justiça com as próprias mãos”. Agora já podiam voltar para casa, deixar o tempo passar, e aguardar o melhor momento de agir. A sorte estava lançada.
Passou muito tempo até conseguirem atrair a vítima e colocar o plano em ação, onde sem que ninguém pudesse desconfiar ficaram os três no casarão. Deu tudo certo. O rapaz só ficou ferido, o que facilitou o esquema montado. Bombeiros, polícia e a vizinhança todos tiveram um bom tempo para discutir a ocorrência. Armaram um processo que foi arquivado por ausência de provas.
Com o tempo e a vivência com o pessoal do bairro foi possível apresentar o projeto de Educação Popular que envolveu o padre da paróquia, as mulheres carentes e outros do bairro. Fizeram a reunião na Igreja, com a proposta de montar uma Cooperativa de Consumo de Alimentos. Por sua utilidade em baratear os preços dos produtos, e dar emprego para moradores. Apresentaram um organograma das atividades que seriam distribuídas entre os cooperados, que também dividiriam por igual os lucros do negócio. Além dos lucros, os salários que seriam recebidos de acordo com o trabalho de cada um. Este empreendimento agrupava todos como donos, que participariam das decisões.
Ao final da assembleia o padre falou: “Não podemos deixar ninguém passar fome, mas aqui nós vamos trabalhar para garantir o pão nosso de cada dia”.
Maria comentou: “Fome a gente combate com trabalho. É o trabalho que dignifica o homem”.
Marisa encerrou o encontro:” O objetivo nosso é seguir um velho provérbio chinês: ‘Ensine um homem a pescar e ele se alimentará por toda a vida’ (Lao Tsé, filósofo Taoista).”
Após um início difícil, tudo entrou nos eixos. Não destruíram o Alçapão, pois seria útil para qualquer eventualidade. A violência estava no entorno do casarão. Uma armadilha dentro de casa era útil tanto como esconderijo, como lugar onde podiam desaparecer os desafetos, sem que ninguém desconfiasse das ex-freirinhas. Quem vai duvidar que mulher é do “sexo frágil”?