Visão além do alcance
Depois de dez anos em total escuridão, aquela era a melhor notícia que o doutor Askeland poderia me dar, durante uma consulta de rotina.
- Há um tratamento experimental que pode fazer com que recupere a visão, Trygve.
- Essa é uma notícia excelente, doutor! Mas quais são os riscos envolvidos? Afinal, já que ainda está em fase experimental...
- Na verdade, Trygve, a taxa de sucesso tem sido bastante alta - declarou ele. - O que você tem que avaliar é se, depois de tanto tempo como deficiente visual, ainda gostaria de voltar a enxergar.
- Mas a resposta não é óbvia, doutor? - Repliquei. - Eu não nasci cego, perdi a visão num acidente de laboratório! Claro que quero voltar a enxergar.
- Certo, certo. Mas não tome nenhuma decisão sem antes falar com sua esposa - contemporizou Askeland. - Ela também é parte envolvida na questão.
Então era disso que se tratava, pensei. Eu conhecera Olaug, minha esposa, há sete anos, quando já estava cego. Nunca vira o rosto dela, embora tivesse uma imagem mental de como deveria ser. Será que ela estava receosa de que eu não fosse gostar da aparência real, e transmitira esse receio ao médico?
- Compreendo, doutor - respondi finalmente. - Eu vou falar com Olaug antes de tomar qualquer decisão.
Naquela noite, quando minha esposa chegou do trabalho e lhe contei minha conversa com o doutor Askeland, ela ficou silenciosa por alguns instantes.
- Tem certeza de que é isso o que realmente quer, Trygve? Pode se decepcionar ao recuperar a visão e perceber que as coisas não são como havia imaginado.
- Está com receio por isso? - Questionei, acariciando o rosto dela. - Não há nada que possa me fazer lhe amar menos, apenas por uma questão da fisionomia não corresponder ao que eu possa ter imaginado.
- Se é isso o que você realmente quer... - redarguiu Olaug, dando-se por vencida.
* * *
Alguns dias após a cirurgia, ainda no quarto do hospital, o doutor Askeland me informou que chegara a hora de remover as bandagens que me envolviam a cabeça e começar a fazer alguns testes para certificar que tudo correra bem com o procedimento.
- Inicialmente, é de se esperar que veja apenas sombras e borrões luminosos - alertou ele. - Com o passar do tempo, irá aos poucos recuperando a capacidade de reconhecer formas e feições.
De fato, ocorreu exatamente como ele havia previsto e eu estava realmente ansioso por partilhar as novidades com Olaug, mas desde o dia em que eu tivera os curativos removidos, ela não aparecera mais para me visitar.
- Sua esposa está com muito trabalho - desculpou-se ele, quando levantei o assunto. - Mas, não se preocupe, ela virá vê-lo quando sua visão estiver melhor.
A resposta me deixou um tanto decepcionado, mas eu tinha certeza de que nossa última conversa sobre a necessidade da cirurgia ainda estava repercutindo em sua mente. Melhor dar tempo ao tempo, para que se considerasse pronta para permitir que a visse, independente de qualquer imagem preconcebida que eu pudesse ter a respeito dela.
Finalmente, quando eu estava perto de receber alta, o doutor Askeland e uma enfermeira entraram no meu quarto. Ambos deixavam transparecer uma certa tensão, sorrisos artificiais nos rostos.
- Pronto para ir para casa, Trygve? - Indagou o médico.
- Pronto, doutor, mas... Olaug não veio me buscar?
Médico e enfermeira trocaram olhares.
- Sua esposa está lá fora, aguardando para entrar - disse a enfermeira.
O doutor Askeland fez um aceno de cabeça.
- Você pode chamá-la, Trygve. Mas deve se preparar para o que vai ver...
Engoli em seco. O que ele quisera dizer com aquilo? Mas ergui a cabeça do travesseiro e chamei:
- Olaug! Entre!
A porta do quarto abriu-se, e por um instante, eu não vi nada. Não havia ninguém ali. Foi só então que ouvi a voz que me era conhecida:
- Estou aqui, Trygve.
- Mas... eu não consigo te ver - respondi, intrigado.
- Eu também sofri um acidente de laboratório - disse a voz incorpórea. - Você perdeu a visão e o meu corpo passou a defletir toda a luz. É como se eu fosse invisível, Trygve.
Estendi o braço em direção dela.
- Pegue minha mão, Olaug - solicitei.
Senti o contato dos dedos entrelaçando os meus, e fechei os olhos. Sim, Olaug estava ali, novamente; mesmo que ninguém pudesse vê-la.
- Doutor, - disse eu então para Askeland - é possível desfazer o procedimento?
- Isso não é necessário, Trygve! - Exclamou Olaug, aumentando a pressão nos meus dedos.
- Não posso permitir que permaneça sozinha nessa solidão - repliquei. - Ao menos, sem visão, estaremos juntos novamente como antes.
E, mesmo sob os protestos de Olaug, consegui com que meu pedido fosse atendido. Não precisava da visão para saber que era com Olaug que eu realmente queria estar...
- [18-09-2022]