Comida encantada
O relógio na parede marcava 5 e 10 da madrugada, e lá fora tudo ainda estava escuro. Mas iluminado pela luz interna da geladeira, displicentemente deixada aberta, Francesca Holland, um robe sobre o pijama e pantufas nos pés, viu a figura imponente de Kacper Reid sentado à mesa da cozinha, uma lata de cerveja na mão.
- Não me lembro de tê-lo convidado para vir à minha casa à esta hora da manhã - disse Francesca, cruzando os braços.
- Vim o mais depressa que pude, - replicou Kacper - logo que soube do que havia acabado de fazer.
- As notícias correm rápido - ironizou Francesca.
- Principalmente as ruins - replicou Kacper, tomando um gole da cerveja. Sobre a mesa, havia um saco de batatas chips, já pela metade.
- Mas quando se trata de usufruir das benesses desta civilização, você não recusa - avaliou Francesca.
- Essa porcaria industrializada é como a comida e a bebida das fadas - filosofou Kacper, que estava vestido como se houvesse acabado de sair de alguma convenção de cosplayers da Idade Média, só que com uma espada de verdade presa ao cinturão. - Se você a prova, corre o risco de nunca mais voltar para o mundo real.
- Pelo visto, você está disposto a correr o risco - analisou Francesca, enquanto Kacper tomava um longo gole da cerveja e depois enchia a boca de batatas chips.
- Acho que criei resistência contra o que quer que ponham nesses produtos - desdenhou Kacper. - Mas, voltando à minha presença na sua casa: pensou que ninguém iria perceber que estava usando um computador para ganhar poder sobre este mundo?
Francesca deu de ombros.
- O que vocês do Conselho pensam, não me interessa; não faço mais parte dele, e o uso que vou dar à peça de tecnologia que adaptei para meu uso, tampouco é da sua conta.
- Pois o Conselho mandou-me para eliminar esta ameaça em potencial - retrucou Kacper em tom ameaçador, mão no cabo da espada. - Principalmente agora que conseguiu conectá-lo à tal rede mundial de computadores.
- Internet - replicou Francesca com tranquilidade. - Mas não achou que me pegaria de surpresa, não é mesmo?
Kacper ergueu os sobrolhos grisalhos.
- Não tive nenhuma dificuldade em entrar na sua casa e me servir da sua despensa refrigerada...
- Geladeira - corrigiu Francesca. - Sim, claro, eu sabia que não resistiria à tentação de dar uma passada pela cozinha antes de começar seu trabalho, Kacper. Você não me decepcionou.
- O que quer dizer com isso? - Kacper ergueu-se subitamente, mas quando o fez, suas roupas se transformaram em algo absolutamente prosaico: um abrigo de moleton cinza e tênis de corrida. Da espada, nenhum sinal.
- Parece que você levantou cedo para queimar calorias - ponderou Francesca, erguendo a mão e fazendo um gesto no ar.
A porta da cozinha abriu-se de supetão e, a contragosto, Kacper começou a caminhar para ela, grunhindo impropérios. Ao passar pelo umbral, começou a correr e pouco depois desapareceu no fim da rua.
- Comida das fadas... - resmungou Francesca, começando a recolher os restos do festim noturno. - Creio que esse idiota nunca mais vai vir assaltar a minha geladeira.
Mas o Conselho mandaria alguém mais esperto do que Kacper, ela sabia. Teria que estar preparada.
- [24-08-2022]