NUMA FRIA

Numa fria

Sentia dores por todo o corpo.

 

Gosto amargo na boca e a terrível dor de cabeça impediam-lhe o raciocínio.

 

Estava n’uma cela da detenção juntamente com diversos delinqüentes que

 

olhavam-no com indiferença.

 

Levantou do piso frio em que fora atirado e sorveu alguns goles d’água da torneira imunda da prisão.

 

Sentou no banquinho de madeira e num flash a vida lhe passou pela mente.

 

Fora abandonado pelos pais num orfanato da periferia, aos 5 anos de idade.

 

Das poucas lembranças: a pobreza, a fome, as brigas do casal e as bebedeiras do pai.

 

Dos irmãos só soube depois: 4 foram para São Paulo e 3 ficaram com os pais.

 

O pai falecera de cirrose hepática ainda jovem e sua mãe mudara-se com os irmãos para Mato Grosso.

 

Nunca mais teve notícias deles.

 

No orfanato aprendeu poucas coisas, fora muito maltratado e submetido a trabalhos pesados e humilhantes.

 

Aos 18 anos foi convocado e serviu ao exército, e nas folgas da caserna conheceu Flora com que veio a casar pouco tempo depois.

 

Foram morar com a sogra Orozima que os acolheu com todo o azedume que lhe era peculiar.

 

Da união precipitada nasceu Florzima (nome escolhido pela “bondosa” sogra).

 

Juventino havia enjeitado um emprego de servente de pedreiro numa pequena construtora dos arredores da Baixada Fluminense (eles moravam em Duque de Caxias).

 

Do serviço pra casa e vice-verso, saía às 5 da manhã e retornava às 20 horas...suado, cansado e sem perspectivas de um futuro promissor.

 

O chefe, um homem mesquinho, desprezível e infeliz lhe infernizava os dias.

 

Em casa não era diferente.

 

Eram 3 vozes azucrinando seus ouvidos cotidianamente: Orozima, Flora e Florzima a exigir do pobre coitado um conforto acima de suas possibilidades financeiras.

 

Um inferno!

 

Num final de semana Florzima comunicou à família que estava grávida de um camioneiro do Tocantins, e com ele partiria de imediato, novo lar.

 

A última notícia e a única (anos mais tarde) era de que ela estava num bordel de quinta categoria em Santarém.

 

Florzima jamais deu notícias.

 

E o cotidiano amargo continuava.

 

- Juventino??? ...trouxe a caixa de chocolates e os salgadinhos para mamãe?... e os cigarros que lhe pedi???

 

Era assim, elas passavam o dia frente a TV, fumando, comendo chocolates e salgadinhos, tomando refrigerantes e cafés,e, “peidando” no sofá semi-novo que ele comprara nas Casas Bahia em 10 prestações.

 

O casebre estava às traças: teias de aranha por todo canto, manchas de gordura por tudo, banheiro entupido, traças nos cobertores, pia entulhada de louças, cheiro de mofo, o mato tomando conta do quintal cheio de “chepas” de cigarro e de cocô do magriço vira-latas Sansão (um protótipo de cão)...já não era um lar mas um “baita dum zonão” mal administrado.

 

Há mais de 25 anos Juventino fora privado de sexo ou de quaisquer carinho por parte de Flora.

 

Sair de casa nos finais de semana para um cervejinha ou um futebol com os amigos?...nem pensar...

 

Futebol pela TV?...você é “boiola” Juve? ...onde se viu gostar de 22 homens peludos e suados correndo atrás de uma bola?

 

Eu e minha querida mãe temos mais o que assistir (elas eram “fanzérrimas” do domingo legal do Gugu).

 

Vez por outra convidavam umas amigas para um joguinho de canastra e o pobre fazia as vezes do garção.

 

- Juventino, traz mais chocolates e salgadinhos e não esqueça os refrigerantes para as “visita”.

 

E as coroas riam, fumavam, roíam guloseimas e “peidavam” na pequena sala do casebre.

 

Isso sem contar a conversa chula e os palavrões indecentes que faria enrubescer qualquer cafajeste.

 

E a vida transcorria “normalmente”...

 

Naquela segunda-feira Juventino foi chamado ao setor do pessoal(a empresa era antiga e não adotara o codinome de RH)

 

- Fica esperto malandro, você está há muito tempo por aqui, mas tempo de serviço não te garante, quanto mais velhas as vivências mais rápido se rompem as correntes!

 

Saiu da sala apavorado, meio envergonhado, não aprendera nada de novo em 50 anos, onde iria “encostar o cadáver” prestes a se aposentar?

 

Final de expediente.

 

Pegou o “buzão” e se mandou para um bairro distante.

 

Desembarcou num beco fétido cheio de butecos e prostitutas.

 

Do bolso do puído paletó sacou duas notas de R$ 10,00.

 

Entrou no primeiro bar.

 

Ambiente mal iluminado, pestilento, com alguns clientes de olhos avermelhados e falta de dentes mas cheios de amor pra dar...

 

 O botequeiro careca e barrigudo bradou: o que é que manda meu chapa?

 

- Quero um copo grande de cachaça, por favor!

 

Tomou uma, duas...perdeu a conta...

 

Uma velha prostituta se aproximou:- vamos fazer neném garotão?

 

Topou.

 

Mais de 25 anos sem gozar, foi às nuvens.

 

Madrugada.

 

Cansaço, frio e embriaguês.

 

O barrigudo aproximou-se:” temos umas contas para acertar seu vagabundo”!

 

Um fio de lucidez faiscou em sua mente.

 

- Tenho "vintão"e o relógio de estimação meu amigo.

 

- Não basta seu bastardo, deixe sua jaqueta, a camisa e os sapatos também...

 

Posto na rua da amargura, com toda a pompa: aos tapas e pontapés Juventino ziguezagueou até o nascer do sol.

 

Sentia frio, uma desilusão extrema...nem lembrava como chegou em casa.

 

Chegada rebordosa, “acolhido” com toda a presteza, não suportou a “ternura”...

 

Proferiu todos os impropérios que conhecia, vomitou no sofá, jogou no lixo os chocolates e salgadinhos, derramou os refrigerantes na privada, quebrou a televisão, fez imensos “elogios” à sogra e à mulher e foi pras “cabeças”... pirou de vez.

 

Agrediu e foi muito agredido, desmaiou pelos cacetes recebidos e pelos efeitos da fantástica bebedeira.

N’outro dia soube na prisão: estava desempregado, expulso do “lar” e definitivamente varrido do mundo “encantado” de Flora e Orozima.

 

Contundente o B.O. – acusações graves: lesões corporais, abandono de lar, tentativa de homicídio etc...etc...

Após alguns meses a sentença: 8 anos de prisão.

 

O advogado dativo pouco argumentou em seu favor.

"Tava" nem aí, não guanhava nenhuma "merreca" mesmo...

Só, amargurado, sem parentes ou amigos Juventino “curtia os dias do pensionato prisional”.

 

Alguns anos depois a liberdade condicional.

Ah...LIBERDADE...LIBERDADE...

Não sabia se sorria ou chorava, tudo lhe era grandemente indiferente e sem sentido.

 

Aprendera um pouco de artesanato na “universidade prisional”, afinal guardara algum bagulhinho.

Tornou à terra natal, ao bairro ...o casebre não mais existia.

 

Perguntou para um antigo morador:

 

- sua mulher e sogra escafederam-se daqui, deixaram muitas dívidas, desaforos e desavenças...

 

Voltou à rodoviária.

 

Pediu um cafezinho e um pão amanteigado.

 

Devorou em segundos o “banquete”, saciou-se.

 

Foi conferir o resultado da mega sena:

 

05 – 08 – 18 – 20 – 55 – 56

 

Incrédulo pediu à moça da lotérica que confirmasse a aposta.

 

- O senhor é um vencedor, parabéns, está bilionário pois ganhou o premio maior.

 

Bem que Juventino tinha um palpite:

 

05 – Fora abandonado no orfanato;

 

08 – O número de filhos de seus pais e os anos de prisão;

18 – Saída do orfanato e casamento com a Flora;

 

55 – A idade de sua amada mulher;

 

56 – Sua idade atual.

 

Lágrimas encheram-lhe os olhos, um tremor tomou conta de seu corpo, enfim a felicidade batera-lhe a porta...

 

Que lástima, não foi assim...nosso injustiçado herói teve um infarto fatal.

 

A mulherzinha e a “querida” sogra foram localizadas no Cabaré da Florzo em Belford Roxo.

THE END : uma cruz de madeira no túmulo de terra batida com os dizeres:

 

“aqui jaz um homem honesto, feliz e muito amado”.

 

Hoje na mansão de Campos do Jordão Flora e Orozima( a senhora gorda e flatulenta), ouvem Beethoven, degustam chocolates (importados da Suiça),  sorriem aquecidas pela lareira e  brindam ao futuro com um encorpado Cabernet Sauvignon... à “Dolce Vita”.

 

By: Maurélio Machado