O retrato de Irma Grese
Os cães estavam muito nervosos naquela manhã gelada de agosto e não entendia o motivo. Mas deveria ser novamente a visita de um dos malditos gatos do novo vizinho. Não gostava dele, nem de seus bichos. Lembrava o pai, nem tanto por ser leiteiro, mas por tratar-se de um mulherengo, todo sorrisos para as senhoras do bairro, enquanto a mulher vivia sua clausura em casa, a cuidar dos filhos. Quem sabe um dia ainda não lhe oferecesse aos cães famintos, como dejejum?
- Schnell! – Gritou, abrindo a porta de uma das baias do canil, soltando o
Fleischfresser, seu pastor alemão de quatro anos, adquirido e treinado para defender o quintal.
O cão correu louco por todo o quintal, farejando e babando, parando defronte a uma árvore de cocos nicifera ricamente carregado com vários cachos. Arranhava o tronco e precipitava-se nele, tentando inutilmente escalá-lo. Às vezes fazia uma pausa e, olhando para cima, ladrava e rosnava ameaçador. Mas que diabos o animal vira na árvore? Seria o gato do vizinho? Bem que poderia ser! Uma hora teria de descer e aí o Fleischfresser poderia fazer jus ao nome! Mas logo percebeu que tratava-se apenas de um esquilo, que deveria estar perdido por ali.
Bom cachorro o Fleischfresser. Um excelente investimento aquele que fizera. Quando filhote, chegara a duvidar que um dia pudesse se tornar feroz, frágil e dócil como chegara. Mas muitos dias no quarto escuro, faminto e aterrorizado duas ou três vezes ao dia por batidas na porta, tornaram-no aquilo que deveria ser: um predador de invasores. É certo que nunca precisara agir, tamanha a dissuasão causada por sua presença, mas se precisasse...
Estava frio ao ar livre e abrigou-se novamente no interior aquecido da casa. Seu bunker contra o mundo! Saía apenas para ir trabalhar no sanatório. O mais do tempo era em casa que gostava de estar, entre suas coisas, treinando seus cães. E olhava para seu quadro predileto, posto à direita da entrada, contrastando com a parede clara. Era a foto de uma mulher. Cabelos bem cuidados e presos, olhos castanhos claros, trazia o charme e a elegância daquele conturbado final da primeira metade do século XX. O que lhe agradava na figura, entretanto, era aquele olhar altivo, algo superior mesmo, como que impondo ao outro sempre uma sensação de que seria prudente aceitar o comando. Uma postura pouco convencional para uma mulher se datada a foto. Uma lembrança do pai aquele quadro. Uma lembrança que se embaralhava com tantas outras. Inclusive com o suicídio da mãe traída. Mas ela sobrevivera a todas essas crises familiares. Sobrevivera para nunca pensar em constituir uma família, era bem verdade!
***
Naquele mundo de homens que era o sanatório – parece que as mulheres ali só serviam para internas! –, irritava-a aquele olhar guloso dos colegas de trabalho. E mesmo em sua posição superior, sentia-se assediada pelos subordinados, que não perdiam oportunidade para usar as palavras ou os olhos para deixar transparecer seu desejo. Era natural esse frenesi hormonal nos homens diante de um corpo feminino de 20 anos como o seu, bem sabia. Mas, no seu íntimo, as palavras e olhares ensejavam nela desejos bastante diversos. Imaginava-se a sós com esses canalhas – que no mais das vezes deixavam em casa as mulheres a cuidar de seus filhos e a lavar suas roupas de baixo, – na sala de isolamento do sanatório, injetando neles uns 2 mililitros de Amytal. Desgraçados! Decerto soltariam a língua e falariam sem qualquer embargo sobre suas taras, sobre como gostariam de manipular seu corpo como um objeto que se usa e joga fora! Poderia arrancar seus testículos com um alicate de corte e lança-los ao Fleischfresser como aperitivo, antes de deixar que o cão estraçalhasse aquele corpo amolecido pela droga. Bem, quem sabe um dia?!
Mas naquela tarde recebia o Diretor Geral do sanatório ali na sua ala feminina. Sentia com ele muita sintonia, muita cumplicidade, e chegara mesmo a dizer-lhe o quanto odiava o assédio masculino e o quanto desprezava a fraqueza das mulheres que se ajoelhavam e saciavam o desejo de carne desse algozes. Ele sorrira ternamente, como o pai que gostaria de ter tido e não teve. Confessara que se um dia fosse possível concretizar seu desejo, que ela o convidasse para a plateia. Por hora que servisse de plateia para sua intervenção com a Maria Biscate, pela décima vez internada ali em uma das suas crises esquizofrênicas.
***
Fleischfresser parecia ter cansado, ou perdera o interesse por Maria Biscate depois que ela parou de debater-se. O corpo dilacerado, que ninguém decerto reclamaria, destinado a ser enterrado como indigente em caixão fechado, já que a causa-morte seria declarada como sendo doença contagiosa, lutara muito até entregar-se ante a fúria do cão. A loucura fortalece as pessoas de tal modo, que a mulher aos poucos tentava morder o animal com a mesma fúria com que esse a dilacerava, no que por vezes ela precisara intervir na batalha, para que o animal não acabasse ferido, coitado! E os urros? Nada se compara aos gritos desesperados de um animal que morre! Mesmo em sua loucura, a criatura pressente o fim e agarra-se a vida que lhe resta, lutando com a morte enquanto não se esvai tudo o que lhe resta de energia vital. Mas o que era a morte para alguém que vivera uma vida de tormentos como a Maria Biscate? Não haveria outra alternativa senão a caridade da morte para abreviar-lhe aquela existência deletéria, exponencialmente deteriorante, progressivamente ameaçadora aos outros, tanto quanto a si própria!
- Komm schon, hund! – Gritou, e o Fleischfresser apressou-se em aproximar-se dela, lambendo sua mão com a boca ensanguentada.
- Menos uma vida desgraçada nesse mundo! – Comentou o diretor, saindo da sala. – Não esqueça de fazer a limpeza com a competência de sempre, mein angels.
- Wir sehen uns, mein herr! – Respondeu, acariciando o cão.
***
Não compreendia como se havia planejado e executado aquela revolta. Como aquelas loucas podiam ousar tal indignidade contra ela? Logo ela, que poupara tantas ali! Quantas listas fizera para o diretor, indicando aquelas que mereciam viver e tentar uma cura! E agora estava ali, amarrada e amordaçada, prisioneira dessas criaturas infames, presa como um bicho, toda suja com o sangue que sobre ela haviam derramado as loucas!
- Mexe não! – Alertara-a aquela que a vigiava, apontando a parede suja. – Aquele homem da parede disse que Deus botou essa faca na minha mão para proteger seu reino dos infiéis!
Que desgraça caíra sobre si! Logo ela, sempre tão ciosa no cumprimento de seu dever! Sempre tão temente a Deus na sagrada função de o melhor buscar para quem não mais pode saber o que é o melhor para sua desgraçada vida. Logo ela! Bem que pressentira algo de ruim logo ao despertar naquele dia. Mas não soubera interpretar os sinais. Como pudera ser tão descuidada? Deveria ter percebido algo de errado no sanatório logo al chegar. Poderia ter se precavido, pedido apoio ao diretor. Só que refugiara-se tanto na segurança que construiu, que não percebera os cupins que corroíam sua porta por dentro e davam ao ladrão a fragilidades necessária para penetrar em sua casa.
- Assassina! – Gritou uma interna, de nome Sol, apontando para ela e olhando para umas outras cinco internas que se sentaram diante dela, uma das quais enrolava caprichosamente três lençóis finos como quem tece uma trança. - Peço pena máxima!
- Mas e aquelas que ela salvou! – Retrucou a outra, como quem simula ser advogada de defesa.
- Matou muitas com seu cão do inferno! – Voltou à carga a outra. – Pergunte à Cassandra o que lhe disse o homem da parede?
- Ele falou sim! – Apressou-se em intervir aquela que havia sido posta na vigia. – Falou que Deus é justo e que sua justiça é nós aqui! Falou que essa aí veio para matar, roubar e destruir!
- Pois peço a pena máxima! Quem está comigo?
Em pouco tempo os lençóis trançados haviam-se transformado em corda e esta posta no entorno do pescoço de mein angels, estrategicamente posta de pé sobre um banco alto. Ao pé do banco foi lançado o Fleischfresser, recoberto de sangue e completamente perfurado por inúmeras facadas. E Cassandra então retirou a mordaça de sua boca, facultando-lhe as últimas palavras.
- Schnell ! – Gritou mein angels, sentindo o tranco no pescoço, assim que o banco foi retirado com um pontapé.