Como abutres em voo descendente

Quando fui visitar Ira Sanders, depois de sua última ida à Filadélfia, notei que agora havia um aparelho de rádio no estilo dos anos 1930, caixa de madeira lustrosa na feição de uma catedral gótica, decorando a mesa da sala de estar.

- Onde encontrou essa preciosidade? - Indaguei, genuinamente encantado.

Sanders falou vagamente sobre ter ganho o rádio numa rodada de pôquer em Filadélfia, e suspeitei que a jogatina havia transcorrido numa residência privada; em desespero de causa, o proprietário havia apostado o aparelho - e perdera.

- Quanto vale um rádio desses, para você ter aceito como pagamento? - Sanders não jogava por tostões, então o rádio deveria valer uma boa soma.

Outra resposta evasiva, mas agora eu sabia que o aparelho era um Atwater Kent modelo 206, fabricado uns vinte anos antes e originalmente vendido por uns 50 dólares; um modelo de luxo, ressaltou Sanders, com seis válvulas e capacidade para captar não só ondas curtas, mas transmissões da polícia.

- Essa última parte é interessante - ponderei. - Pode ligar, para uma amostra da qualidade do som?

Sanders atendeu minha solicitação, mas de modo relutante. O mostrador à frente da caixa de madeira iluminou-se quando as válvulas receberam energia e ele girou o botão de sintonia de estações. Não demorou muito para uma voz masculina surgir, alta e clara, no alto-falante.

- Você conhece Violet Hodges, da farmácia? - Inquiriu a voz num tom conspiratório. - Está tendo um caso com Tony, o padeiro.

Olhei para Sanders, surpreso.

- Essa é uma rádio local? - Indaguei. - Um programa de fofocas sobre residentes da cidade?

Sanders balançou negativamente a cabeça; não, aquilo não era nem uma rádio local, nem um programa de fofocas. A voz do rádio estava realmente falando segredos escusos dos habitantes da cidadezinha.

- O pastor Ramsey é um bígamo, casado no Novo México - prosseguiu alegremente a voz. - A primeira mulher pensa que ele morreu.

- Começo a entender como o proprietário desse rádio teve que perder no jogo para abrir mão dele - gracejei, puxando um bloco de notas do bolso do paletó e começando a anotar os podres dos moradores. E para Sanders:

- Ainda não usou alguma informação dessas para levar vantagem?

Sanders fez que não. Não havia provas de nada daquilo, admitiu sorumbático, por mais convincente que a voz soasse.

- Nada que um pouco de jornalismo investigativo não descubra - redargui confiantemente, guardando o bloco de anotações.

Sanders desligou o rádio e ficou sentado, em silêncio. Perguntei-lhe que mal o afligia.

- É esse maldito rádio - admitiu. - Desde que o ganhei e comecei a ouvir as fofocas da cidade, tenho dormido mal.

O rádio não parecia saber de tudo apenas sobre os outros, declarou, mas também sobre ele, o novo dono. E, talvez, sobre mim, ponderei, embora não houvesse falado uma única palavra a meu respeito enquanto estivera ligado.

Ao menos, enquanto eu estivesse ali, refleti.

- O que o rádio falou sobre mim, Sanders? - Questionei apreensivo.

Quando ele finalmente me respondeu, eu sabia que estava mentindo.

- [22-07-2022]