Vovô viu o diabo
“Qualquer um de nós crê facilmente em tudo o que teme e em tudo o que deseja”.
Jean de La Fontaine
Vovô disse que ainda se lembra do que viu, mas já não sabe se acredita ou não. Porque não é mais jovem para acreditar em tudo. De vez em quando, ele disse, vem um medo e se recorda:
—Veio vindo, filho, um fuscão. O motorista freou ligeiro. E o carona, falou bem assim:
—Entra aí! Você não chamou a gente?
Meu avô disse que se recorda de ter tomado todas naquela tarde. Depois pegou a caixa de compras, pôs nas costas e saiu do bar. Caminhou até o ponto de ônibus na saída da cidade e esperou, mas o último ônibus já tinha ido. Não aparecia ninguém, somente a lua no céu iluminando os arredores. Então resolveu caminhar e caminhou até ficar exausto, ou seja, cinco quilômetros adiante.
Foi o tempo necessário para os conhaques subirem pra cabeça e se misturarem com a ignorância que já estava lá. Isso ele me falou. Disse também que se sentou à beira do caminho e, muito injuriado, começou a xingar:
—Arre, que hoje vou embora nem que seja montado no cão. Se não aparecer carona, vou no carro do diabo.
Ele falou que não se passaram nem dez minutos quando o clima ao seu redor começou a mudar. Logo ouviu um ronco de motor ao longe, estalos de escapamento e um fumaceiro como névoa que subia no caminho, vindo em sua direção. Que tremeu dentro das botas, ele me contou, enquanto o carro se aproximava engolindo a estrada e varando a noite com dois olhos vermelhos.
Vovô disse que o carro vinha como uma seta e o alvo era o seu coração. Chegando perto freou com tanta força que fez o vento quente dele balançar as barras de sua calça. Nessa hora vovô já estava suando tanto que a camisa branca colou na sua pele preta e ele se sentiu como uma zebra na jaula dos leões.
—Valei-me Nossa Senhora — ele disse que gritou e o seu grito não era só de medo, mas de arrependimento. Arrependeu-se de tudo o que tinha dito e feito e do que ainda ia dizer durante toda a vida.
Vovô afirmou que o carro era um fuscão vermelho e os dois sujeitos lá dentro pareciam dois bichos numa maçã. Eram dois galegos que ficaram tão rubros quanto o carro, quando abriram a boca para falar. E falaram:
—Entra aqui, sem demora! Queremos sua alma e de troco o seu couro que não vale um centavo furado.
Foi nessa hora, ele me disse, que se lembrou de que gostava da sua pele e tinha amor à sua alma, por isso entregou a alma aos cuidados de Nossa Senhora e a pele aos ventos do mundo e correu como um doido no meio do mato, deixando para trás a caixa de compras, o carro e os diabos.
Vovô falou que chegou à casa de madrugada, sem sapatos, com as roupas rasgadas e o corpo todo marcado e arranhado por espinhos. Parecia um Cristo, ele disse, só lhe faltava santidade.
Vovô contou que se passaram alguns dias até se recuperar completamente do susto, no entanto demorou muito mais tempo para convencer a vovó de que falava a verdade. Ela pensava que vovô tinha gastado o dinheiro do pagamento na zona da cidade e que inventou a história toda como uma desculpa. Vovó era muito religiosa e, nessas condições, acreditava em Deus, anjos e diabo.
Eu nunca acreditei no diabo, mas tinha uma ideia a respeito dele no meu pensamento. Eu imaginava que o diabo era igual ao que eu ouvia todo mundo falar que ele era. Por isso, questionei vovô:
—Vovô, o diabo não é preto?
Ele olhou para mim, balançou a cabeça e sorriu. Depois, respirou fundo e falou:
—Para quem é preto como eu, o diabo é branco.
Ainda hoje penso no que ele disse aquele dia. Depois de algum tempo cheguei à conclusão de que cada um pinta o diabo à sua maneira. Eu, como não acredito nele, não lhe dou cor alguma e nem cartaz.
Entretanto, as pessoas tendem a acreditar em qualquer coisa. Estão no direito delas. Só não podem querer que as outras pessoas acreditem também. Por isso, eu gostava muito quando vovô contava essa história. Eu percebia no seu rosto uma expressão de sagacidade que poderia significar muita coisa, mas não significava tolice.