Entre lobo e poço
- Peter? É você? - Indaguei baixinho. Afinal, quantos lobos poderiam existir na Savana Vana, não é mesmo? Bom, na verdade, muitos, como descobri logo depois.
- Eu não sou um escravo da Feiticeira da Torre - rosnou o lobo, orelhas empinadas e dentes à mostra.
Sim, pois se tratava de um lobo falante e eu não viera preparada para esse tipo particular de ameaça; sigilos de proteção são ferramentas efetivas, mas tão específicas quanto cláusulas de contrato, não havendo como prever todas as possibilidades, mesmo que se tenha recursos para pagar a mais por isso. E quem diria que Sybell Wexcombe seria um dia conhecida como "Feiticeira da Torre"? Oh, aquilo soava bem ameaçador para quem não a conhecesse na intimidade...
- Também não sou amiga dela - declarei enfaticamente, erguendo as mãos. - Na verdade, discordo profundamente dos métodos da tal Feiticeira e só vim aqui para tentar descobrir algo que pudesse usar contra ela.
- Mas você também não é uma seguidora da deusa Vana - avaliou o lobo, abaixando as orelhas.
- Fui sequestrada pela Feiticeira da Torre, - apressei-me em dizer, o que era uma meia verdade; afinal, eu fora até a torre voluntariamente, e teoricamente poderia aguardar até que ela estivesse ao alcance do sinal de celular para poder pedir um veículo de aplicativo - mas já ouvi falar muitas coisas da deusa Vana. Aliás, o que houve com ela?
O lobo inclinou a cabeça de modo curioso, como se estivesse medindo a verdade nas minhas palavras. Depois, deitou-se calmamente na entrada da câmara antes de responder:
- Alguns dizem que a deusa morreu; outros, que ela tirou um ano sabático e que vai voltar algum dia. O certo é que as coisas por aqui na savana andam bem caóticas depois do seu desaparecimento. O surgimento da Feiticeira da Torre é a melhor prova disso.
- A Feiticeira da Torre tem alguma implicação com o sumiço da deusa? - Questionei, intrigada.
- Não, não creio - ponderou o lobo, patas da frente cruzadas como um cão doméstico. - Vana deixou de ser vista há gerações, e o aparecimento da torre é bastante recente; mas o meu povo acredita que ela não teria acesso às nossas terras se a deusa ainda reinasse por aqui. E, principalmente, não teria a capacidade de atrair um dos nossos e transformá-lo num humano como você.
Então, Sybell se aproveitara de um vácuo de poder para criar Peter Key, calculei; e os parentes dele pareciam não ter ficado nada satisfeitos com o desenlace, embora toda a intervenção local da assim denominada Feiticeira da Torre não parecesse ter ido além disso.
Ao menos, por ora.
- Mas Peter Key não circula entre vocês, quando a torre aparece? - Questionei. - Não conseguem convencê-lo a abandonar a feiticeira e voltar para o seu povo?
O lobo tornou a inclinar a cabeça, me avaliando com seus olhos amarelos.
- Grogan, o escravo da feiticeira, sabe que não poderá recuperar sua forma real sem que ela permita... ou que alguém possa quebrar o feitiço. Portanto, finge se submeter à vontade dela, enquanto procura pela libertação.
Ou assim Grogan/Peter Key havia dito aos seus antigos companheiros; e se, na verdade, ele estivesse satisfeito com a vida ao lado de uma mulher humana? Poder dormir entre lençóis, não ter que comer carne crua...
- E é por isso que ele vem sempre ao templo, procurar por uma solução? - Indaguei.
- Este templo é, na verdade, um portal para outros mundos - revelou o lobo. - Mas somente humanos podem usá-lo e voltar; para o meu povo, é uma viagem de ida sem volta.
Agachei-me à beira do poço quadrado e olhei para seu interior obscurecido, tentando extrair algum sentido do que o lobo acabara de me dizer. Percebi então que havia uma escada entalhada em cada parede vertical; uma escada que, embora com certa dificuldade, poderia ser galgada por uma criatura dotada de mãos, jamais por patas. Um lobo que caísse ali dentro, não poderia voltar à superfície por seus próprios meios.
- E o Pe... Grogan o está utilizando agora?
- Grogan transformou sua maldição numa bênção - ponderou o lobo. - Já que ele agora possui mãos, pode pesquisar um novo lugar para relocar seu povo.
Muito nobre da parte de Peter Key, pensei; e que Sybell continuasse ignorante sobre as reais intenções do seu musculoso familiar, ou certamente haveria problemas.
- Foi uma conversa realmente incrível e reveladora, - agradeci, erguendo-me - mas acho que agora está na hora de voltar para a torre, ou a feiticeira poderá dar pela minha falta...
O lobo espreguiçou-se, pondo-se de pé.
- Mas você não disse que havia sido sequestrada por ela? - Indagou, a cauda meneando preguiçosamente. - Por que agora quer voltar para o cativeiro?
De modo algum parecia disposto a permitir a minha passagem, e a única outra saída, se podíamos descrevê-la assim, era através do poço/portal.
- Digamos que a Feiticeira da Torre está de posse de um artefato mágico muito poderoso - elaborei. - Ela ainda não sabe como usá-lo por completo, mas com o pouco que já aprendeu, pôde enfeitiçar o seu companheiro, Grogan.
- E você é a humana que pode detê-la? - Questionou o lobo.
- Não me apresentei como voluntária para a missão, mas aqui estou eu - declarei, tentando parecer convincente.
- [Continua]
- [28-05-2022]