A MOÇA DA FOLHINHA (um conto dos tempos da pandemia)
Texto extraído do livro do autor “Tute – Brincadeiras de papel”
Todos os finais de ano, o Senhor Geraldo cumpria o mesmo ritual: passava na farmácia do bairro — a Santa Clotilde — e retirava uma folhinha, nome popular do tradicional calendário gráfico que, além de registrar as datas do ano, serve para divulgar nome, endereço e telefone do estabelecimento que o patrocina. As folhinhas da Santa Clotilde eram especiais, pois, desde os anos da década de 1960, passaram a ser produzidas com mais esmero, no capricho, coisa fina, mesmo. Confeccionadas em papel cartão em tamanho grande, tinham dimensões próximas das de uma página de jornal no formato standard. Na parte superior, traziam a identificação da farmácia, no centro, a foto comportada de uma bela jovem esbanjando saúde e, na parte debaixo, os doze meses que estavam por vir. Ano após ano uma infinidade de belas garotas — morenas, ruivas, loiras, negras — famosas, formosas,anônimas, animadas — passou pelos calendários da farmacia.
Na casa do Senhor Geraldo, lar simples e aconchegante como tantos lares comuns e felizes, a folhinha tinha um lugar cativo — a marca do seu espaço estava praticamente emoldurada na parede, entre a porta de entrada da cozinha e a geladeira. Concorria acirradamente com os espaços destinados ao pôster do time campeão, com as fotos da família espalhadas pelas paredes e, com o perdão da palavra, largada a um canto qualquer a Santa de devoção, uma profanação. Terminado o ano, a antiga era deposta e, imediatamente,substituída pela atual, tal qual uma nova rainha. Assim, a cada período findado, o Senhor Geraldo, em um ato solene, retirava a antiga, fixava a nova e carinhosamente acomodava a substituída em uma caixa de papelão forrada, com veludo, junto às demais, como se estivesse arquivando o passado. Na verdade, nunca ninguém se atrevera a perguntar por que a solenidade em manter simples calendários confeccionados com papéis, mas no íntimo o homem sentia-se poderoso, em sua cabeça passava, se ele não era senhor do futuro, ao menos tinha o passado em seu poder.
Ainda que nunca tivesse sido anunciado, para todos da família estava claro que aquele era um espaço quase sagrado, portanto, jamais alguém ousaria mudar a folhinha de lugar. Dezenas desses calendários acompanharam toda a geração dos três filhos do casal, fazendo parte do mobiliário da casa. As estampas das moçoilas exerciam forte influência na vida da família, que era corriqueiro as mulheres da casa seguirem as tendências apresentadas por elas, nas roupas, nos penteados e eventuais bijuterias, sem contar as tentativas de imitar os sorrisos das modelos.
Incorporados na rotina visual da casa, tornaram-se peças decorativas do ambiente. Dias, semanas, meses, anos foram se sucedendo e, ao longo de décadas, uma quantidade considerável de calendários foi descartada, enquanto a vida das pessoas da casa seguia seu curso. O destino se encarregou de fazer com que cada habitante da residência seguisse o seu caminho. O primeiro a partir foi o patriarca Geraldo e, em seguida, morreu a viúva. As duas filhas casaram-se quase ao mesmo tempo e foram morar em cidades distantes, deixando para Adoniran, o filho caçula e ainda solteiro, a antiga moradia.
No final do ano de 2019, ele por lá continuava e, então, pela primeira vez, coube ao solitário rapaz a honra de, apesar de sua quase indiferença, dar continuidade ao ritual e, religiosamente, fixar o calendário da Farmácia Santa Clotilde na parede. Adoniran o fez mais por respeito à tradição patriarcal do que por necessidade. Chamou, porém, sua atenção a estonteante beleza da moça fotografada para o calendário do ano seguinte. Se tivesse um concurso das beldades que estiveram naquela parede, com certeza esta venceria a competição, ele pensou. Ela seria a miss de todas, reconheceu. Passado o primeiro mês do ano de 2020, um “xis” é traçado com a caneta sobre o janeiro e, depois, o segundo “xis” cobre os 29 dias de fevereiro. Março apenas se iniciava e a catástrofe que teve origem na China e parecia tão distante começava a espalhar-se pelo mundo. Causada pelo Coronavirus, a pandemia obrigava as pessoas a se resguardarem. Para Adoniram, não seria diferente. Embora jovem, ele integrava os grupos de risco, uma vez que tinha a tal comorbidade — diabetes e hipertensão — o que o obrigava a cumprir a quarentena. Ele se apavorava diante do fato de que, se ficasse doente, poderia morrer. Para piorar, perdera o emprego, e, por ter a carteira assinada, não se enquadrava nos critérios para receber a ajuda emergencial dos seiscentos reais. Por isso, pensava negativamente — Desgraça pouca para mim é bobagem! — murmurou.
Nos primeiros tempos da quarentena, fez raros contatos com as irmãs. Resolvera manter o isolamento à risca, pois, como sabido, a possiblidade da morte lhe aterrorizava. Com os poucos e raros colegas, com os quais já não mantinha um relacionamento estreito, o distanciamento, agora obrigatório, apenas amplificara. Constatara que infelizmente teria que se entregar à sorte e se virar sozinho e, em seus pensamentos tentava contornar a situação — antes só que mal acompanhado — era o que o confortava naquela solidão. Os parcos recursos que recebera da empresa na demissão já não atendiam às suas necessidades básicas e alimentava-se cada vez mais precariamente. Por falta de pagamento, cortaram o gás, a energia elétrica e o telefone, ao contrário do que as autoridades governamentais haviam prometido. Só não interromperam o fornecimento da água. Diante de tantos dissabores, Adoniran repetia dezenas de vezes ao dia: — Desgraça pouca para mim é bobagem! — A expressão tornara-se um mantra.
Solitário, com o passar dos meses parecia conformado. Habituara-se à situação e ao isolamento. Sequer saia para levar o lixo, deixando que os detritos produzidos ao longo do tempo se acumulassem a um canto na área de serviço. Raramente trocava de roupas e, as peças sujas, quase sempre depositadas na lavadora, transbordavam espalhadas pelo chão, ou largadas pela casa. Dias após dias, noites após noites, foi perdendo a noção do tempo e não se preocupava mais em riscar no calendário o período vencido. Por vezes, estabelecia um monólogo animado em voz alta, como se outro o ouvisse: — Viverei como se não houvesse o amanhã, porque o amanhã está demorando a chegar.
Embora na flor da idade, Adoniram se transformara em um ser cadavérico, quase um zumbi. Dormia fora de hora e já não discernia em qual mês estava, o que era noite e o que era dia. Com a escassez de alimentos, emagrecera vertiginosamente. Também perdera os hábitos da higiene pessoal. Devido à fraqueza, passou a ter alucinações. Conversava com a geladeira, tratando-a por dona Frígida. Como esta se mostrara gélida, não lhe respondendo, procurou conversa com o forno de micro-ondas, que também o deixou falando sozinho. Ainda que o Senhor Borralho possuísse quatro bocas e, por mais que insistisse, nada o fazia responder. Sem obter êxito, trôpego caminhava pela sala e tentava cumprimentar o televisor — por ele chamado de Tevelisão — que não proseava e nem mudava de feição. Nem mesmo o seu inseparável companheiro dos bons tempos, o tagarela celular, o ouvia. Emudecera por completo. Isso o deixava muito irritado:
— Ninguém me ouve e, se ouve, não responde. Desgraça pouca para mim é bobagem!
Foi em umas de suas idas ao banheiro que mirou o espelho e filosofou diante de sua imagem: — Acordo todos os dias pensando que já é amanhã. Aí, me dou conta que ainda é hoje. É o hoje mais longo da minha vida. Fui escravizado pelo hoje, preso em uma redoma de vidro. E, você, das longas barbas, há quanto tempo está aí do outro lado? — Sem obter resposta, desferiu um tapa no vidro e saiu às gargalhadas, gritando: — Comigo é assim, perguntei e não respondeu, o pau comeu!
Numa noite, após ter devorado compulsivamente uma samambaia, o remorso tomou conta do homem e, aos prantos, ele pediu desculpas a um vaso de xaxim: — Perdão minha querida Sama, eu não aguentava mais de fome. Eu perguntei se podia comê-la e com toda delicadeza você me respondeu que sim, não pude evitar. — Até aquele momento, a planta fora a única a lhe responder quando chamada para conversar. Amanhece e, enquanto o calendário da folhinha registra friamente mais uma data no existir de Adoniran, a vulgar rotina se faz ainda mais presente na árdua trajetória pela qual o jovem está passando, cuja lucidez a esta altura se perdera no labirinto do que chamamos por racional. Mais uma noite, mais um dia. Quem sabe, menos uma noite, menos um dia...
No entardecer de uma data qualquer e sem importância no calendário — ao menos para Adoniran — a luz tênue se mistura ao silêncio frio da cozinha e encontra-o desolado, sentado à mesa após outro jantar desprovido de iguarias, sem ninguém para acolher seu pranto, escutando apenas o ranger da cadeira puída. Nesse momento, julga ter ouvido um “psiu”. Mira, então, o olhar em direção à folhinha e percebe que a moça da foto dera uma piscadela. Com as duas mãos ele esfrega os olhos, não acreditando no que via. Fixa ainda mais o retrato e, dessa vez, recebe um sorriso envolvente que desperta seu interesse. Ainda desconfiado, firma o olhar ainda mais forte e observa o nome da donzela estampado sobre a foto e a chama: — Então, a moçoila é a Senhorita Clotilde? — Muito prazer, eu sou o Adoniran!
Neste instante, percebe que, com as mãos abertas, a mulher lhe manda um beijo. Conclui, então, que rolara um clima e retribui o flerte com uma piscada. Na sequência, um sorriso e um beijo saem de sua boca, ele os apara com uma das mãos espalmada e, num gesto carinhoso, lança um “smack” voador em direção à figura. Em seguida, ouve o sussurro chamando-o. — Adoniran, meu amor, não fique aí parado, aproxime-se e beije-me, abrace-me como se não houvesse o amanhã. Envolva-me em seus braços, vamos bailar a canção, esta canção que está no ar. Venha, não perca o compasso, são dois pra lá, dois pra cá!
Sentindo um frio em sua alma, ele pôs-se a dançar, aquela voz o acalmava, depois de tantas noites vazias e com a cabeça rodando, não se fez de rogado, vai em direção ao calendário e diz: — Eu agora, me embriagando com a sua voz murmurando, percebo que você esteve aí por todo esse tempo e somente hoje, este eterno hoje, fui capaz de notar a sua presença. Meu pai as tratava com tanta devoção, eram as guias dos seus dias. Por que não observei antes que estava aí, o tempo todo a me observar?
A moça da folhinha responde: — Estou contigo todos os dias, mostro a passagem constante do tempo, aviso que o ontem não volta e que ele é riscado constantemente e, logo, substituído pelo amanhã, que não vem se você não se apoderar do hoje. Impetuosamente, Adoniran arranca o papel da parede e o abraça fortemente. Subitamente, o solo frio recebe a queda do corpo do jovem agarrado ao calendário que ecoa pelo vazio silencioso do ambiente, por lá permanecendo inerte na escuridão da noite que chegara com o negro véu, cobrindo mais um hoje em viagem para a eternidade do ontem.
Como era de se esperar, ninguém da vizinhança notara qualquer anormalidade naquela habitação, haja vista que todos estavam na mesma situação, sofrendo com o isolamento e o distanciamento obrigatório ocasionado pela pandemia, que insistia em ceifar vidas daqueles que desacatam regras impostas pelas autoridades, até que descubram um antídoto capaz de combater o nefasto vírus.
Passados alguns dias, o odor fétido exala da casa, incomodando a vizinhança. Os bombeiros são acionados e, com muita dificuldade, arrombam a porta e se deparam com o cenário horripilante, além da quantidade enorme de lixo tomando as dependências da casa, o cadáver em adiantado estado de decomposição estendido no chão da cozinha, abraçado à folhinha como quem envolvesse carinhosamente a mulher amada pela derradeira vez. Embora o corpo apresentasse um alto estágio de putrefação, misteriosamente ficara estampado no rosto do rapaz um sorriso de felicidade, perceptível a todos.
Talvez, pelo estado do corpo, cientificamente não teria como concluir a causa mortis, mas pairava no ar uma certeza, a certeza de que Adoniran fora infectado por um poderoso vírus, o vírus do amor.