OS TRÊS HERDEIROS

Ivar veio do Norte e hospedou-se na casa do ferreiro. Por puro acaso, o ferreiro tinha uma filha, que também por puro acaso, era a moça mais bonita de toda a vila. Madalena, todos a chamavam de Madá, como não poderia ser diferente. Mas Ivar, Ivar não a chamava assim, chamava antes Madalena. Às escondidas, chamava dona Madalena. Ou doninha Madalena. Madá sentia o fogo subir-lhe pelas pernas, quando o forasteiro usava o diminutivo de dona, referindo-se a ela, a doninha.

Quando Ivar chegou à vila, não sabia ele que era tempo da colheita de arroz. Os arrozais estavam amarelos que pareciam o sol no chão. Um sol que não era redondo, mas comprido e por vezes largo, como um campo sem fim para todos os lados. O arrozal lembrava os cabelos de Madá, o que fazia o jovem camponês ou músico ou poeta, ninguém sabia o que ele era, ficar horas perdido em pensamentos, olhando para longe, pensando na cabeleira longa da menina, a mais moça das filhas do ferreiro. Eram três ao todo. Dir-se-iam que belezas comparáveis, embora alguns discordassem efusivamente. Para Ivar não havia comparação, Madalena era inigualável em qualquer disputa empreendida entre as irmãs.

Nos primeiros dias na casa do ferreiro, Ivar não sabia o que dizer, ficava quase o tempo todo calado, olhando para o nada, como se esperasse o momento certo. Mas momento certo para quê? Ninguém sabia ou sequer se interessou em saber. Ivar era dono de si, assim como parecia estar perdido. Ninguém se importava, nem mesmo o ferreiro. O que o velho queria, ele tinha em Ivar, um trabalhador para seus campos de arroz. Ivar cumpria perfeitamente o acordo tácito firmado com o ferreiro: casa, comida, dormida em troca de mãos hábeis na colheita, que naquele ano parecia não ter fim.

*****

As pessoas da casa acordavam cedo, muito cedo, antes mesmo do galo cantar, mas nunca encontraram, mas sempre encontravam Ivar acordado, Ivar dormindo. Ele já estava pronto para a lida do dia, lida que começava com o nascer do sol e só terminava quando o sol morria por detrás do morro que podia ser visto dos campos de arroz. Eles tomavam um café com bolo, que era feito com massa do próprio arroz, que colhiam e pisavam e faziam de tudo, do bolo ao cuscuz e a todo tipo de especiarias que se pode pensar com pensamentos que alcancem um mundo ilimitado de possibilidades. Só depois do café o dia começava realmente.

Mas entre Ivar e Madalena existia algo além de uma amizade recém-nascida? Para Ivar existia amor, um amor que ele intuía mais do que podia sentir ou provar. Para Madá, existia um sentimento de inocente depravação, que ela sequer sabia o que era, mas que deixava mole e com o corpo levemente aquecido, que ela atribuía ao calor que fazia naquela época. O tempo da colheita era o mais quente de todo o ano, e aquele ano estava mais quente do que o normal. Algumas pessoas achavam que era o fim dos tempos que se aproximava. O que fazia com que os mais céticos caíssem na gargalhada. O fim dos tempos é o fim do arroz, diziam, sorrindo ainda mais.

Além de Ivar e Madalena, o que mais poderia nos interessar nessa história? Talvez o arroz, a imensa plantação, que naquela época de colheita, brilhava feito ouro. E resplandecia como se a terra estivesse queimando, um fogo amarelo e que nunca apagava. A plantação de arroz era um mundo à parte, um mundo em que Ivar passava a maior parte do seu dia, sobrando pouco tempo para fazer qualquer coisa que não fosse descansar. Isso numa rede que estava armada numa espécie de galpão, que ficava por trás da casa principal do ferreiro. E onde ele, o ferreiro, guardava também parte do arroz, porque todos os outros galpões já estavam cheios. Para Ivar tudo bem, enquanto sua rede ali coubesse, ele não se incomodaria.

Um dia, porém, antes mesmo dele acordar, ele sentiu um sopro no rosto, sopro que cheirava à menta e ele descobriu mesmo antes de abrir os olhos que aquele sopro vinha da boca de Madá. Ele sabia que seu hálito cheirava à menta, porque muitas vezes sentiu quando ela falava perto dele. Ivar chegou a pensar que estava sonhando, mas ao abrir os olhos viu a menina ali, perto, a olhar atentamente para ele. Ela não dizia nada, apenas mantinha seus olhos negros, estranhamente estranhos para uma loira, atento a atenção dele, que ele também mantinha atenta a atenção dela. Ele pensou por um momento que Madá lhe beijaria, pois, seus lábios estavam muito pertos dos dele. Mas ela recuou vagarinho, devagarzinho, sem querer, mas querendo, e num rompante se foi. Ele ficou triste, mas não muito, sabia que um dia ela ia voltar. Desde então, esperou.

*****

O ferreiro costumava dizer que a vida não é fácil. Do que será que ele estava falando, se perguntava Ivar. Os outros trabalhadores apenas ouviam, não pensavam a respeito, caso pensassem, considerariam uma blasfêmia vinda do ferreiro, que era o homem mais iluminado de todo o povoado, e que nunca fora ferreiro de verdade, mas sempre vivera às custas de sua imensa plantação de arroz, que além de ser a maior, era sempre a que dava a melhor colheita, mesmo quando as chuvas não ajudavam tanto. Não ajudava aos outros, o ferreiro e seu arroz, pareciam estar acima dessas dificuldades de cunho natural. Se a vida do ferreiro não era fácil, imagine dos outros, Ivar pensava sem, no entanto, pensar, mas só lembrar que da sua parte a vida era tão simples quanto qualquer coisa.

Coisa nenhuma o incomodava, aliás, antes de chegar ali, naquele lugar, naquela casa, com aquela menina. E sentir aquele hálito fresco de menta, que talvez nunca pudesse ser mais do que apenas um hálito que se aproxima e foge em meio a escuridão da noite sem fim. Ele não entendia do que se tratava a vida, ainda mais depois daquele dia, antes de amanhecer, quando ela chegou tão perto que ele sentiu o calor que emanava do seu corpo, mesmo que lá fora estivesse frio e o vento fizesse com que o tempo ficasse ainda mais frio. O começo do dia, aliás, era sempre a hora mais fria, ou talvez a única. Mas ele dormia sem lençol, sem cobrir-se, porque, coberto, não conseguia dormir.

*****

O ferreiro havia chegado ao povoado muito tempo antes, quando havia poucas casas, e ele era ferreiro realmente, diferentemente do que muitos pensavam, quando chegou ganhava a vida trabalhando numa pequena oficina em que fazia todo tipo de ferramenta. Inclusive as facas que hoje ele e seus trabalhadores usavam na colheita de arroz. A vida era boa, ele dizia naquele tempo, isso porque ele era jovem e quando se é jovem, a vida parece realmente boa. Ele tinha uma bela mulher e a primeira filha, chamada de Isadora, que era conhecida por Isa, como também não poderia ser diferente. Tempos depois, nasceu a segunda filha, Cassandra, que somente algumas pessoas chamavam de Sandra, para diminuir o trabalho da pronúncia daquele nome grande. As duas eram tão bonitas quanto a mãe, que beirando os trinta anos, era considerada por todos uma verdadeira dama, digna de outras terras, terras mais afortunadas do que aquele mundo perdido.

A mulher dele não queria mais ter filhos, porque estava desiludida com a ideia de ter apenas filhas mulher, queria um menino, se não fosse para ser menino, que não fosse filho nenhum. Mas o destino ainda guardava, o destino ou isso que alguns sonhadores chamam de, uma surpresa, a última para a bela dama, se não a melhor a mais significativa, porque seria a que selaria o fim de sua fertilidade, pois nunca mais sequer um sinal de vida, de outra vida, advinda de sua própria, surgira de seu ventre, nem mesmo o menino que tanto queria.

Madalena era um sonho às avessas, porque veio tarde demais, mas não tanto que não pudesse ainda conhecer sua mãe em todo o esplendor de sua beleza e ser a única a se equiparar a ela, ou talvez até superar, era o que alguns achavam, mas que os eternos apaixonados da matriarca discordavam sem pensar muito no assunto. Apenas por querer que ela fosse sempre insuperável. O que o ferreiro pensava disso? Não pensava a respeito, não era um tipo de questionamento que lhe ocorria, não fazia parte do seu modo de ser: prático. Nunca pensara em sua mulher como uma mulher que tinha uma beleza acima de qualquer média, mas apenas como uma companheira, que era a mãe de suas filhas e que isso era o que importava no fim de tudo. A companhia, o companheirismo e nada de amor ou outro sentimento que pudesse ofuscar sua razão e seus propósitos no mundo. Propósitos esses que ele também não pensava a respeito, mas que estavam automatizados em seu espírito e que o faziam acordar todos os dias com o cantar do galo e fazer o que devia ser feito. Por pensar assim, ou por não pensar, nunca passou pela sua cabeça que não seria uma boa ideia aceitar Ivar, um total desconhecido, em sua casa. Ivar estava de passagem, mesmo não sabendo para onde, o que fez com que o convite do ferreiro parecesse um convite irrecusável. Ele teria um lugar para ficar e ainda ganharia algum dinheiro para um futuro que ele sabia incerto como tudo nessa vida.

Madalena era tão doce que diziam, alguns, chegava a arrepunar, uma palavra que ninguém realmente sabia o que significava. Mas que muita gente usava. Uma palavra que talvez nem mesmo os dicionários soubessem o que queria dizer. Mas quem dizia sabia e dizia sabendo. Ela era doce de um jeito bom, de um jeito meigo, de um jeito triste e por vezes perdido, como uma estrela que cai do céu e some na escuridão do espaço. Madalena seria um ente que nunca se saberia, que, se se soubesse, seria apenas dogma e nunca realidade, o que não se pode medir, mensurar, conhecer com toda a inteligência. Porque vago, e sombrio, e luminoso a ponto de ofuscar. Talvez alguém, algum dia, a salvaria de si e de sua alma brilhante.

*****

As três irmãs eram muito parecidas, tanto que se não olhassem atentamente, diriam, alguns, tratar-se de uma pessoa só. E tinham um cheiro em comum, o cheiro de flores que só existiam ali, naquela vila perdida. No escuro, não dava para reconhecer diferenças. Talvez isso, ou as vontades esquisitas das pessoas, tenha sido a causa do problema ocorrido depois. Uma noite, Ivar foi visitado por alguém. Estava muito escuro, mas ele sentiu o cheiro, era de Madá, mas não era Madá, era Sandra, com o mesmo cheiro. Ele fez amor com ela, pensando que fazia com a irmã. Mas não era a irmã.

Em outra noite veio Isa, que Ivar pensou novamente se tratar de Madá, engano novamente. Engano justificável pelas razões já apresentadas. Assim, Ivar fez amor com duas das três, mas com quem ele realmente queria fazer, não fez. Madá também estava inocente nessa história, pois de nada sabia. Elas não conversavam muito, ou quase nunca, pelo menos não sobre assuntos amorosos. Ainda mais sobre Ivar, que era apenas, querendo elas demonstrar desafeto, um forasteiro.

Ivar continuava ali, agora com certa felicidade, mas também certa tristeza. Porque estava fazendo aquilo que prometeu a si mesmo que não faria, trair a confiança do ferreiro. Inocente, não sabia que também traía o amor de Madá. Embora ela também ainda não soubesse, porque tudo era feito no silêncio e escuro da noite. Um dia Sandra, no outro, Isa. Noites sucessivas. Amor e loucura em corpos jovens e atraentes e tão iguais que nunca Ivar pressentiu qualquer diferença. Elas chegavam caladas, porque se falassem, trairiam seu segredo. Quando Ivar queria falar, conversar, elas colocavam o dedo sobre seus lábios, para que ele não dissesse nada, pois assim elas poderiam também continuar em silêncio. E continuavam repetindo aquele ritual amoroso-lascivo, sem intenção de algum dia dá-lhe fim, caso as circunstâncias lhes permitissem, o que era praticamente impossível a longo prazo. Uma hora tudo acabaria por ser descoberto e as complicações de seus atos eram totalmente ignoradas ou refletidas por ambas.

Algum tempo depois as duas começaram a apresentar sinais estranhos, como que doentes, mas não, era outra coisa. A mãe das jovens já sabia o que era e não demorou a contar ao ferreiro, que pareceu estranhamente pensativo depois de ficar sabendo. Aquele silêncio começou a causar apreensão na esposa, que pensava que o marido meditava alguma vingança contra Ivar. O que era verdade, mas ele nada dizia, nem mudara seu jeito com o forasteiro, que agora era realmente, para ele, um forasteiro, não era mais o Ivar, jovem e trabalhador, que o ajudava tanto e tinha sido seu fiel companheiro durante aquele longo período de colheita de arroz. Ele matutava uma vingança, talvez mataria o jovem numa emboscada, ou cara a cara, tentando a sorte. Eram pensamentos, coisas nebulosas que passavam em sua cabeça, cujo o significado ele não compreendia. Não atinava em sua totalidade, como causa e consequência, como produto de uma traição. Não era o que ele queria, mas era o que ele precisava fazer. Como tudo na sua vida simples, um ter-que-fazer, sem abertura para reflexão.

Era um caso que exigia solução, embora fosse algo cuja a solução não seria viável de forma alguma, porque qualquer solução acabaria de certa forma trazendo um novo problema. O Ferreiro não sabia exatamente o que fazer, só sabia que precisava fazer alguma coisa. E que essa coisa não poderia ser uma coisa boa, mas uma coisa necessária dentro das circunstâncias dos fatos ocorridos ali, praticamente sob seu teto, sendo que ele mesmo era o grande culpado de tudo, mas que não poderia nunca fazer justiça a si mesmo ou vingar-se do que ele mesmo fizera. A vítima seria outro, que também era culpado, culpado por não pensar, por deixar o corpo mandar na cabeça, por deixar a emoção tomar posse da razão e ferir a inocência da família.

Ivar continuava sua rotina, trabalhando de sol a sol na colheita de arroz, colheita essa que já estava perto do fim. Havia uma pequena faixa, que ainda faltava colher. Madá nunca mais lhe procurara, ele pensava que fosse ela, mas não era. Todos estavam meio distantes dele, ele não cogitava o motivo. Só uma vaga premonição lhe percorria a mente, como que dizendo que todos sabiam de suas aventuras com a filha mais nova do Ferreiro. O problema era bem maior do que ele supunha, mas ele estava tão atrelado àquela ideia que sequer atinava o real motivo de todo aquele silêncio entre todas as pessoas da família, inclusive entre eles mesmos, pois ninguém já dirigia à palavra a ninguém. A casa vivia imersa num silêncio profundo, como que um cemitério abandonado, onde ninguém mais sequer visitava seus entes. Algo mudou gravemente, mas Ivar seria o último a saber o que realmente causou essa mudança. Talvez viesse a saber tarde demais, quando nada mais pudesse ser feito. Um pouco antes, quem sabe, do fim.

*****

Quando Madalena ficou sabendo da história, primeiramente ficou triste; depois, resoluta, procurou Ivar para tirar a limpo, mesmo não existindo entre eles qualquer tipo de relação que pudesse justificar interrogação desse tipo. Isso em seu pensamento, para Ivar existia a relação, mas ele estava errado, Madalena nunca tinha sido sua, apenas em seus sonhos mais loucos isso ocorrera.

O certo é que a jovem o procurou nas horas tardas da noite, para que ninguém pudesse ver, mas o ferreiro estava atento a todos os passos de Ivar. E viu quando sua filha entrou no velho galpão, sem saber o que realmente ela tinha ido fazer.

A jovem parecia brava, notou Ivar, que tentou abraçá-la, sendo fortemente repelido por ela. Ele questionou o que havia acontecido. Ela não falava coisa com coisa, pelo menos para ele, que não sabia que estivera dormindo com as outras e não com ela aquele tempo todo. Quando ele enfim compreendeu tudo o que ocorrera e tentou se explicar, a jovem saiu correndo no meio da noite, rumo ao arrozal.

Ele foi atrás, a alcançando já no meio da plantação. A segurando forte e ela se debatendo. Os dois caíram agarrados, ela dizia não, mas Ivar já não ouvia suas palavras, atento apenas ao desejo que lhe percorria o corpo inteiro. Foi aí que ele começou a beijá-la, primeiro onde fosse possível, até chegar à boca, que ela quis desviar por um instante, cedendo em seguida. Quando ela percebeu, estava completamente nua, entregue ao primitivo desejo de se entregar. Os dois fizeram amor ali mesmo, em meio aos pés de arroz, de um jeito alucinante e febril.

Ficaram abraçados, entre sussurros e juras, sentindo uma brisa leve que vinha com a doce claridade. O dia já mostrava um pouco de sua cara, além das montanhas distantes. O sossego da cena foi quebrado pelo uivo de alguém, que Madalena vislumbrou se aproximando.

Era o velho ferreiro, ela reconheceu logo. Assustada, tentou se levantar rapidamente, mas não conseguiu, porque Ivar a segurava, ainda sem entender o que acontecia. Quando, então, percebeu o ferreiro a sua frente, empunhando um velho revólver, quis se levantar e explicar, de alguma forma a cena que o velho presenciara. Mas um estampido foi ouvido e ele sentiu uma dor fina no peito. Madá, por pura sorte, não foi atingida, mas de certa forma também deixou de viver naquele momento.

Ivar estava morto. O ferreiro fez justiça, mas não sabia ele que a filha já levava no ventre mais um descendente daquele estranho homem, que viera do nada e para o nada retornara. Como um sonho, um sopro, deixando atrás de si uma lacuna que seria preenchida por seus próprios filhos, um dia.

João Barros
Enviado por João Barros em 04/05/2022
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