O PIJAMA AZUL (um conto dos tempos da pandemia)
Extraído do livro do autor: "Tute - Brincadeiras de papel"
Vários motivos se somavam para deixar Conrado ainda mais ansioso naquela segunda-feira da penúltima semana de dezembro de 2019: a despedida dos colegas da empresa, após 35 anos de trabalho; a tão esperada aposentadoria que finalmente chegara; e, o mais importante, em breve ele se tornaria avô — Estela, a única filha, estava grávida e lhe daria o primeiro neto. Dormira muito mal na noite anterior, face às expectativas que o dia prometia. Contudo, acordara disposto ao despertar pontual do rádio-relógio com o agudo miado do gato de um famoso e tradicional programa radiofônico, como fizera por mais de 3 décadas. E com as constantes reclamações de Adelaide, sua companheira, que sempre se incomodou com o som do felino, e invariavelmente repetia o discurso matinal: — Querido, um dia ainda atiro o pau no gato!
Estavam casados há pouco mais de 30 anos e faziam planos para o ano que estava para chegar. Modestos para alguns, porém, para eles, ambiciosos, dentro de suas possibilidades financeiras. Após a árdua batalha de todo esse tempo juntos iriam curtir a chegada do netinho e viajariam para Poços de Caldas para uma segunda lua de mel. Tinham outros sonhos de consumo, mas igualmente modestos.
Na empresa, diante de tantas honrarias, Conrado se emociona com as homenagens. Recebe efusivos cumprimentos dos colegas de trabalho e, do presidente, um minúsculo pin banhado a ouro, onde com muito esforço podia-se ler a inscrição “sucata de ouro”, um relógio de pulso com a logomarca da firma, e a Carteira Profissional com a devida baixa.
A volta para casa naquela tarde parecia ser mais longa do que em todos os anos passados. Ao volante, sabe que o caminho é o mesmo. No entanto, a distância para a residência parece ter, inexplicavelmente, aumentada. Sente um aperto no coração,uma secura na garganta e uma enorme vontade de chorar.
O pensamento é um turbilhão onde se misturam as sensações de satisfação pelo dever cumprido e de angústia com o novo, com as incertezas e om ócio que agora o assustava. Finalmente em casa, Adelaide, Estela, a filha gestante e o genro o surpreendem com uma recepção amável, um jantar especial — estrogonofe de frango, salada verde, vinho branco gelado, e de sobremesa um delicioso sagu, especialidade da patroa.
As primeiras semanas de folgas passam despercebidamente, em virtude das festas do final de ano. Presentes foram trocados. Da esposa ganhara um pijama azul com as iniciais do seu nome bordadas e, da filha, a estadia em um hotel de Poços de Caldas marcada para março. Aconselhado pela mulher, guarda o pijama para usar na viagem.
Passado o período das festas, nos dias que seguem, Conrado se esforça, em vão, para se adaptar à nova rotina. Para desespero de Adelaide, todas as manhãs se repetem os miados do gato atrevido que, por décadas, a incomodou. E ela insiste na mesma fala, como uma ladainha: — Querido, um dia ainda atiro o pau no gato!
Os dias parecem longos para Conrado. Porém, passados quase 2 meses desde a última vez que esteve no escritório onde trabalhara, Estela dá a luz ao um lindo bebê, que vem preencher o vazio do mais novo vovô. Agora, é só esperar mais duas semanas e partir rumo à segunda lua de mel. No entanto, mal começa o mês de março, uma avalanche de más noticias toma conta da imprensa. Desaba sobre o mundo um vírus funesto sem precedentes na história moderna que ameaça o planeta dizimando vidas e causando incertezas. O “Coronavírus” provoca alvoroço e torna-se o principal assunto de todos os dias.
Medidas drásticas afetam o sossego e a rotina da humanidade, alertas são dados pelas autoridades, instruções em profusão sobre como preservar a vida contra o Convid-19. Para Conrado e Adelaide, não seria diferente. Embora ainda não fossem idosos — tampouco obesos, diabéticos ou hipertersos —ambos estavam se aproximando desse ”grupo de risco”. Por isso, mais que depressa, aconselhado por Estela, o casal vai às compras e abastece suas despensas. Para tristeza do casal, o netinho não poderia mais ser visitado.
Mesmo mantendo-se em quarententa, passada a primeira semana, Adelaide contrai o vírus. Em poucos dias, a doença se manifesta, evoluiu rapidamente e ela não escapa. Sem que se tenha explicação, Conrado é preservado. Sozinho no apartamento, ele se desespera pelo isolamento. Poucos moradores permanecem no edifício. Muitos foram para chácaras ou casas na praia. Segregado em seu próprio lar, sente que, sem a companheira, a vida não faz mais sentido. Às vezes abre a embalagem do presente recebido, o pijama azul, e, fica, por horas, absorto a contemplá-lo.
No andar apenas a moradora do apartamento 85, Dona Raquel, permanece em companhia de Latino e Priscila, seus cãezinhos. Poucas vezes o casal cruzara com ela. Tratava-se de uma mulher de meia idade, de aparência simples e muito discreta. Descia periodicamente com os animais e se limitava a cumprimentar os vizinhos em esporádicos encontros. Durante semanas, além dos telefonemas diários da filha, ele mantinha contato via interfone apenas com a portaria que, vez por outra, avisava da chegada de alguma encomenda enviada por Estela. Aguardava que o funcionário do prédio subisse com o pacote, para, em seguida, proceder ao ritual da descontaminação. Televisão, rádio, leituras, internet já não continham mais sua ansiedade. Conrado pouco sabia sobre a arte de cozinhar.
Transcorridos 8 meses do início da quarentena, trocara a noite pelo dia, pouco se alimentava, perdera alguns quilos, já não tomava banho com frequência, e a barba, tal qual erva daninha, invadira todo o seu rosto. Quando a filha telefonava, era evasivo em suas conversas.
É nessa angústia constante que uma ideia desesperada lhe vem à cabeça: suicidar-se. Veste o pijama azul pela primeira vez, dirige-se à sacada, olha para baixo e, nesse instante, uma brisa suave exala no ar o perfume de Adelaide. Recua da ideia e, aos prantos, deita-se e adormece por horas. Conrado não se sente vencedor por não ter saltado do oitavo andar para fugir do cativeiro. Ao contrário, considera-se covarde. Anoitece e, subitamente, a energia elétrica sofre um apagão. No período de isolamento, os apagões vinham, mas a energia voltava rapidamente. Dessa vez, a demora preocupa. Sem o que fazer devido à falta de luz, a vida torna-se ainda mais modorrenta para o pobre diabo. As oscilações dos sinais da internet também passam a ser corriqueiras e com o abastecimento de água não é diferente. Estava cada vez mais difícil obter gêneros alimentícios e medicamentos. O caos se instaurara. Soubera através da filha que alguns parentes, amigos e conhecidos partiram para a outra dimensão.
Uma vez mais o pensamento do homem é invadido pela ideia do suicídio. Pensa, então, em outra maneira de tirar a vida. Veste o pijama azul, destampa um frasco de um produto de limpeza e leva-o à boca. Porém, como da ultima tentativa, do recipiente exala um perfume que remete ao odor do perfume usado pela esposa. Mais uma vez, foge da ideia de tirar a própria vida. O sentimento é de um ser fracassado, sem atitude.
Num dos, agora, raros banhos, uma ideia lhe vem a cabeça: o gás, isso mesmo, se inalado, ele pode matar. Seca o corpo, veste o pijama azul e se dirige ao fogão. Levanta a tampa do forno, abre o dispositivo do gás e introduz a cabeça para inalar. Entretanto, seu olfato capta uma vez mais o perfume de Adelaide se espalhando pelo espaço. Nesse instante, ouve a campainha e, de imediato, atende a porta, deixando-a semiaberta. Para sua surpresa, a vizinha ao lado, Dona Raquel o aborda:
— Desculpe senhor, senti o cheiro de gás vindo do seu apartamento e vim saber se estava bem. Acreditava que o imóvel estivesse desocupado. Então, toquei na portaria e me informaram que havia gente.
Com o semblante assustado e com os cabelos desalinhados, Conrado agradece e se desculpa.
— Obrigado por sua intervenção. Perdão em recebê-la assim, de pijama!
Nesse instante, ele se dá conta de que a vizinha trajava uma minúscula camisola e nota também o quanto ela era linda e jovial. Ouve, então, da vizinha:
— Não tem de que! A propósito, muito bonito o seu pijama. — Foi presente da minha finada mulher. — responde prontamente.
— Eu acreditava que não tivesse ninguém — explica Raquel —, por isso nunca fiz contato. Agora que sei que tenho um vizinho, por favor, pode me procurar sempre que desejar. Estou cumprindo a quarentena e, embora tenha 2 cãezinhos para me fazer companhia, a solidão tem sido intensa. Temos que celebrar a vida. Não estamos mortos, ainda!
Despedem-se cordialmente. Conrado é tomado por uma sensação agradável, sente-se leve. Imediatamente, dirige-se ao banheiro e, enquanto apara a barba, não consegue esquecer-se da fala da mulher: — “Temos que celebrar a vida, não estamos mortos, ainda!”
Pela primeira vez, nos últimos meses da quarentena ele consegue ter um sono tranquilo. Acorda com a figura da vizinha em seus pensamentos. Minutos depois, ouve o som da campainha. Na porta, Raquel com uma xicara de café, um pedaço de bolo e um sorriso angelical oferece tudo aquilo ao homem, que outrora parecera desanimado. Isso se repetiria por vários dos dias da quarentena, que fora prorrogada até o natal. O noticiário também informara que, quem estivera em completo isolamento nos últimos meses poderia compartilhar do mesmo ambiente com pessoas nas mesmas condições. Uma vacina estava sendo testada em alguns países e o resultado parecia animador. As autoridades informaram que os heróis anônimos seguiriam na linha de frente, enquanto que os demais continuassem em isolamento, tomando os devidos cuidados de sempre.
Para comemorar os avanços da ciência, Conrado convida Raquel para brindar a ocasião com uma garrafa de vinho que há muito mantinha guardada. A mulher aceita desde que ele esteja trajado com o pijama azul. Nessa noite, toda a preocupação acumulada durante o período de confinamento é amenizado com sorrisos, carinhos, cumplicidades e sonhos. O que ambos não esperavam diante das incertezas enfrentadas ao longo do período de confinamento era um alento, e que seriam seriamente infectados pelo vírus da esperança.