PANDEMONIO NA PANDEMIA (um conto dos tempos da pandemia)
Extráido do livro do autor: “Tute – Brincadeiras de papel”
Após meses em quarentena em função da Covid-19, Esmeralda se convenceu de que poderia deixar o isolamento e decidiu ir às compras. Fazia parte do dito “grupo de risco” e tinha ouvido em várias ocasiões que não deveria descumprir recomendações dos especialistas em doenças infecciosas. Mas, ainda assim, saiu para as ruas - a primeira vez depois do longo cativeiro. Na sua vazia cabeça não estava desobedecendo ninguém, mas cumprindo a ordem de um imbecil desgraduado que, em todas as oportunidades, reforçava que a pandemia era apenas uma gripezinha.
Pelo sim, pelo não, a incauta - uma vez que quem tem “u” tem medo — tomou providências para evitar a contaminação: vestiu um agasalho de flanela apesar do escaldante calor; uma capa de chuva para se proteger; botou um tênis da hora (da hora da morte); um gorro vermelho; calçou luvas (aquelas de jardinagem); colocou um frasco de álcool em gel e lenços dentro da pochete e a prendeu na saliente barriga. Por último, colocou a enorme máscara que guardava há meses — deveria conservá-la, afinal pagou o olho da cara. Impossível descrever no que se transformou: um arremedo de gente, caricata e horripilante.
Toda pimpona, saiu de carro rumo ao supermercado e dirigiu com muita dificuldade, pois, embaçados, os óculos de sol ofuscavam sua visão. No estacionamento, ao sair do veículo chamou a atenção. Não pela beleza ou formosura, mas pela aberração. Com dificuldade, empurrou o carrinho e sofreu a cada retirada de produto da gôndola - as luvas atrapalhavam o manuseio. Demorou a realizar as compras e, toda desajeitada, aguardou na fila do caixa, sempre obedecendo a distância marcada no piso. À sua frente, uma senhora elegante, muito bem vestida e carregada de joias, estava prestes a efetuar o pagamento e conferia o dinheiro. Vendo a ação da cliente, automaticamente Esmeralda abriu sua pochete para certificar-se de que o dinheiro estava guardado. Toda atabalhoada devido a indumentária, sofria para manusear a bolsinha, quando percebeu que duas notas de cinquenta reais estavam sob os pés da mulher. Deduziu que, com a dificuldade que teve com a pequena bolsa, o dinheiro caíra de suas mãos. No mesmo instante que se abaixou para recolhê-lo, a senhora da frente, mais ágil, apanhou as cédulas.
— Senhora, esse dinheiro é meu — afirmou, com firmeza, Esmeralda.
Sem se dar ao trabalho de encarar Esmeralda, a mulher retrucou:
— Seu coisa nenhuma. As notas são minhas e, uma vez no chão, é de quem pegar primeiro.
Rapidamente recolheu as suas sacolas, dispensando o carrinho e, apressada, caminhou em direção ao Estacionamento não olhando para trás em nenhum momento.
Inconformada, Esmeralda não deixou por menos. Não levaria o desaforo e nem ficaria no prejuízo. Intempestivamente largou seu carrinho e seguiu a mulher. Essa parou diante de um raro automóvel vistoso, importado, colocou as sacolas no chão e acionou o alarme para abrir o porta-malas. Lépida apesar do traje, Esmeralda não titubeou e tomou posse das pesadas sacolas.
A mulher se voltou e, aos gritos, interpelou Esmeralda.
— O que pensa que está fazendo? Sua ladra, monstra! As sacolas são minhas!
— Suas, o caramba! Uma vez no chão, não têm dono. Você as pagou com meu dinheiro — respondeu Esmeralda. E, no mesmo instante que esbravejava, involuntariamente levou uma das mãos à pochete.
Aterrorizada diante da figura surreal à sua frente, a mulher acreditou que a outra estivesse armada e que fosse louca. Temendo uma agressão, rapidamente entrou no carro e saiu velozmente do estacionamento deixando tudo para trás.
A gritaria desperta a atenção dos que passavam no estacionamento, enquanto um segurança se dirigiu à Esmeralda.
Essa não perdeu tempo, ignorou o funcionário, apanhou as sacolas e, sem nada responder, as colocou em seu automóvel. Chegando a casa, livrou-se das fantasias — ou melhor — das roupas — e conferiu os pertences. Ficou extasiada com os produtos, todos importados.
Três garrafas de vinho português, variados embutidos italianos e espanhóis, sete tipos de queijos, todos franceses, duas peças de picanhas maturadas, dois quilos de bacalhau legítimos da Noruega, chocolates suíços, meia dúzia de garrafas de cervejas holandesas e outras guloseimas. No fundo de uma sacola se deparou com o tíquete da aquisição. Ficou boquiaberta com o valor, muito mais alto que sua frugal aposentadoria.
Enquanto pensava no que fazer com aquela fartura, examinou a sua bolsinha e se surpreendeu: as suas duas notas de cinquenta estavam juntas à sua lista: um quilo de arroz, um quilo de feijão, um pacote de bolacha maizena, meia dúzia de ovos, duzentos gramas de mortadela, uma lata de sardinha,dois pacotes de macarrão instantâneo e um envelope de suco em pó.
Tardiamente percebe o equívoco que cometera.