A SENHORA DAS ERAS
O sino da igreja badalou várias vezes.
Sentiu todo o seu corpo estremecer.
Estava sentada naquela sala vazia já fazia bom tempo.
Sentou-se para descansar um pouco, antes de tomar um banho e comer alguma coisa.
Ultimamente andava exausta.
Já sentia as mãos lentas para realizar tarefas, até mesmo as corriqueiras e que não exigiam muita destreza.
No início pensara que devia estar doente.
Como não sentiu mais nada além do cansaço e a dificuldade de realizar algumas atividades, não mais se preocupou.
Acreditou que um período de férias, ou uns minutos para relaxar todos os dias fariam com que a antiga disposição voltasse.
Fez uma viagem de quinze dias, à Fortaleza, no inverno passado. Descansou, conheceu lugares paradisíacos e provou culinárias exóticas, mas voltando para casa, percebeu estar vivendo a mesma situação.
Derrubava louças ao lavá-las, ofegava para subir a velha escada de oito lances e limpar a casa a deixava largada no sofá ou na cama, e a coluna ficava enrijecida.
Sentada ali, à meia luz, quando o sino badalou, ela, como que emergiu de um lago profundo, e arregalando os olhos, percebeu que havia se jogado ao fundo, sem consciência de mais nada que pudesse ocorrer.
Ficou em estado de choque ao perceber-se ser a traidora de si mesma, e o seu pior carrasco.
Como podia ter feito de si, aquele ser insensível e de forma monstruosa ter roubado todos os seus anos dourados, dias ensolarados e a aventura de viver de forma plena, se enfurnando cada vez mais naquele oco existencial.
Seu corpo já estava dando mostras de estar a sucumbir, fazia tempo, mas como ignorava a si mesma, estranhou, mas não fez uma análise minuciosa da situação.
A quem servia?
Por que se descuidava?
A quem queria enganar...
Apoiou o rosto em suas mãos e chorou copiosamente.
Enfim, descobrira o quanto de mentiras criou para si mesma e o quanto carregava de cicatrizes de cortes profundos.
E o mundo?
Sempre ignorou...
Sequer teve alguém que a alertasse de quanto mal fazia a si mesma.
Não tinha nenhum amigo, inclusive, nem a si mesma, tanto que terminou por se tornar uma espécie de sua própria refém...
A si mesma fazia promessas e a si mesma dava desculpas esfarrapadas.
Tentou se situar na exata condição.
Tinha sessenta e dois anos e mais nada.
Só lhe sobrara as sombras daquela verdade que sempre ignorara.
Abraçou as pernas em posição fetal e sentiu o despertar de si, que acabou por permitir seu renascimento como uma nova mulher.
Levantou-se, tomou seu banho, colocou seu roupão branco e encheu uma taça de vinho Tempranilho Argentino.
Olhou-se no espelho e diante da imagem sorridente, refletida, com a taça de vinho nas mãos, mandou tudo às favas.
Deixou a velha bruxa gargalhar seu prazer reprimido por séculos.
Era a senhora das eras e quem exatamente era.
E era só o que importava.