O PINTOR DE GELADEIRAS

Assim que virei a esquina dei de cara com o guardador de carros me pedindo cigarro e dinheiro. Fato estranho, ele nunca havia me pedido dinheiro antes, só cigarros.

“Hoje o negócio foi fraco, no meio da semana é assim, a gente não ganha nem o do cafezinho”, ele disse, enquanto pegava o cigarro e o isqueiro que eu lhe estendia num gesto inconsciente, mecânico.

Ele trabalhava há anos guardando carros numa rua secundária de uma região comercial e turística da cidade. Era duro com a concorrência e não admitia novatos ali; chegou a passar uns meses preso depois de rachar a cabeça de um sujeito que tentou usurpar-lhe o ponto sem sequer anunciar a presença. Só admitia dividir o espaço e parte da clientela com os mais antigos, ainda assim mediante o pagamento semanal de uma “taxa de usufruto”. Era o único no lugar que, além da função de vigia, podia ganhar um pouco mais lavando os carros dos clientes. Todos sabíamos que ele também agenciava prostitutas que atuavam no calçadão da praia próximo dali, e recepcionava produtos de pequenos furtos praticados nos fins de semana por moleques que preferiam mulheres sozinhas e turistas desprevenidos.

Costumávamos nos cumprimentar, sempre que eu passava por ali, a caminho da delegacia onde trabalho; porém, nunca conversávamos. Eu sabia o suficiente sobre ele e ele absolutamente nada a meu respeito. Quase todos os dias, o sujeito sempre me abordava para pedir cigarro e saia calado, sem agradecer – e sem saber o meu nome.

Hoje, porém, além de pedir cigarro – e dinheiro - resolveu puxar assunto. Fato ainda mais estranho.

“Tu trabalha com imóveis?”, ele perguntou.

Respirei fundo e procurei um cigarro para mim na carteira, até perceber que já tinha um aceso entre os dedos. Não esperava uma pergunta daquela assim tão de repente. Além do mais, sou um tipo ordinário, que poderia facilmente se passar por bancário, advogado, contador, comerciante, pastor, servidor público..., porém, inexplicavelmente, nunca havia me imaginado como corretor de imóveis.

Respondi ao sujeito que não trabalhava com imóveis e retomei o passo tentando fechar qualquer brecha pela qual pudesse escapulir um fio de diálogo.

O sujeito não se deixou vencer.

“E tu faz o que mesmo?”

Parei, olhei para o último andar de um prédio ali ao lado, olhei para uma senhora que passeava com três poodles na calçada oposta e, por fim, encarei sem querer o sujeito. Todo esse percurso durou tempo suficiente para que eu esquecesse o que estava fazendo ali, sob o seu olhar perscrutador.

“Hã?”, foi tudo o que consegui dizer para o meu interlocutor.

“Tu trabalha nesse negócio de imobiliária?”, ele emendou, sem me dar tempo de recuperar a lucidez.

“Não, sou pintor.”

“Meu pai foi pintor da Prefeitura, e dons bons!”

“Não esse tipo de pintor... Eu pinto quadros...”

“Quadros? Sei... Então tu é artista? Tu não tem cara de artista. Tu pinta mulher nua?”, a última pergunta saiu com um sorriso maligno e com poucos dentes.

“Só pinto imagens de geladeiras”, respondi apressando o passo e encerrando de vez a conversa.

João Pegado
Enviado por João Pegado em 21/03/2022
Código do texto: T7477841
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2022. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.