Os dias seguintes
“Libertei mil escravos. Poderia ter libertado outros mil se eles soubessem que eram escravos.”(Harriet Tubman)
O velho preto continuava rondando a fazenda todos os dias, tentando entender o por quê de o Nhozim ter mandado todos os pretos embora do dia para a noite, deixando o cafezal aos cuidados daqueles branquelos que chegaram falando uma língua estranha e cantando aquelas músicas horrorosas.
Trabalhara por tantos anos no eito do Nhozim Arcanjo D’Azevedo, de quem herdara inclusive o sobrenome, e não podia entender o porquê de tamanha ingratidão. Sequer lhe era permitido agora voltar à fazenda para rever os lugares nos quais vivera toda a vida, já que o capataz mantinha dois cães ferozes no portão, para que nenhum preto ousasse entrar. Era muita covardia!
Assim, acampado na beira da estrada, a mercê da fome e de todas as agruras, sobrevivia amargurado mais a mulher, Nha Carmela, sob a barraca coberta com palha de indaiá que construíra havia umas cinco ou seis luas. Para enganar o estômago, vez por outra colhia umas jacas, umas bananas ou algum fruta-pão ou pescava uns lambaris no remanso. E, quando o dia manifestava-se mais iluminado pela sorte, apanhava um jacupemba para lembrar o gosto da carne.
Como era hora de almoço, Nha Carmela cozinhava, naquele dia ensolarado do final de primavera de 1888, um fruta-pão, que começava a cheirar. A fumaça do fogão à lenha, erguido com pedras e argila, encostado em um barranco, era sempre fonte de preocupação, por que os branquelos ou os homens do capataz poderiam vir de novo e destruir tudo. Será que aquela maldade era de conhecimento de Nhozim, ou seria coisa da cabeça dos carcamanos e daqueles metidos a capitão do mato do capataz? O velho preferia crer na última alternativa. Na verdade, sempre acreditara que Nhozim fora obrigado por obra de força. Não entendia o porquê de aquele santo homem pôr os pretos para fora para alojar aqueles brutos, cerrando porteiras para seus protegidos. Não, Nhozim não era esse desalmado! Não, ele mesmo vira Nhozim chorar disfarçadamente quando da partida dos pretos. Deveria ser refém o Nhozim nas próprias terras que tinha pela graça de Deus!
Desperto dos pensamentos pelo canto das rodas de um carro de boi, que se aproximava lentamente pela estrada, o velho pôs-se em posição de defesa, sinalizando para que Nha Carmela se escondesse, facão em uma das mãos e, na outra, a lança que orgulhava-se de ter feito ele mesmo. Era uma espera angustiante, porque o carro aproximava-se muito lentamente vindo do poente. Mas o aumento do som dos cascos logo deu a perceber ao velho preto que não se tratava apenas de um carro de boi, e sim de uma pequena tropa. Mas uma tropa por ali? Nunca passara uma tropa por aquelas bandas desde que ali estacionara! Topa mesmo só a de Nhozim, entretanto como não saíra da fezenda, não poderia ser ela que voltava.
- Ajude! – Gemeu o homem que cambaleava sobre um burro, trazendo a tropa atrás de si. – Ladrões! – Gemeu mais forte, com aquele sotaque paulista igual ao de Nhozim.
***
Bartolomeu D’alencastro morrera com o dia, não obstante os emplastos que Nha Carmela lhe fizera para abrandar as dores dos ferimentos. O corpo permanecia deitado na palha, iluminado pelo frágil feixe de luz que emanava da cera de abelha, cuja chama exalava aquele odor que tanto agradava o olfato do velho preto. Todavia, não era para agradar o olfato que ele mantinha a luz acesa. Desde pequeno ouvia que o corpo morto deveria ser velado sob luz durante a noite, para que o Capiroto não se aproveitasse da escuridão para roubar a alma do finado.
E enquanto velava aquele infeliz que lhe coubera enterrar e dar um cristão descanso, sua cabeça dava voltas em torno do acontecido e de seus desdobramentos. O homem estava morto, é certo, fato irremediável, mas isto, se resolvera ao passado o problema do cumprimento de seus dias, legara-lhe, doído dilema, a difícil decisão de inventariar seu espólio. O que faria com aquela tropa que tinha agora estacionada defronte à sua humilde e improvisada morada e que não lhe pertencia por qualquer direito que fosse? Afinal, não seria direito tornar-se herdeiro de um homem só por acolhê-lo e lhe dar um leito de morte!
- Drome, véio! – Sussurrou-lhe Nha Carmela. – eu zóio um poco o morto e despois ocê zóia e eu drumo... drome, Zé Curisco!
Não queria dormir: queria pensar, resolver aquele problema que o morto trouxera-lhe. Aquela tropa não era dele, não sabia o que fazer dela! Como poderia ele, um velho preto, protegido de Nhozim, arvorar-se de dono de algo se estava, inclusive, em terras alheias quando lhe veio o fardo cair sobre as costas cansadas? Isso, as terras!... Aquela tropa pertencia por direito ao abençoado dono das terras na qual perderam seu legítimo dono! Lógico, a tropa teria de ser entregue o mais breve possível ao seu Nhozim Arcanjo D’Azevedo, legítimo dono daquilo tudo pela graça de Deus!
***
A tropa estacionou defronte ao portão da fazenda D’Azevedo pouco antes das sombras aprumarem-se na marca do meio-dia. Os cães ladraram ameaçadores, correndo circularmente em torno da tropa. O velho preto Zé Curisco vinha à frente, sobre o carro arrastado pelos bois postados em junta. A visão da fazenda, na qual vivera por toda a vida, imprimia-lhe uma sensação de volta para casa, Mas os homens que logo apareceram com as espingardas apontadas deram-lhe a perceber como as sensações podem ser ilusórias.
- Meia volta, preto! – Gritou-lhe um homem, engatilhando a arma. – Não aceitamos vagabundos por aqui!
- Só trussi essa tropa pra modo de entregar a Nhozim, seu dono por direito e graça de Deus!
- Se é de Nhozim, desce, dá meia volta e vai andando pelo caminho por onde veio! – Ordenou o homem, ainda apontando a arma e pitando um cigarro de palha. – Deixa aí e vai dando o fora, infeliz! Ou espera recompensa por devolver aquilo que, como você mesmo diz, é por direito de Nhozim na graça de Deus?!
Zé Curisco cumpriu as ordens que lhe foram dadas. Desceu amargurado do carro de boi e foi andando de volta, ouvindo o principiar do canto das rodas do carro de boi que entrava onde deveria entrar para cumprir o direito e servir ao senhor que o Pai destinara-lhe. Mas não entendia como um homem tão fiel como Nhozim, um temente a Deus como seu benfeitor, que o criara, abrigara e lhe dera a oportunidade do aprendizado do eito, poderia estar cercado por tantos malfeitores agentes do Outro, do Mão Esquerda. Deus que pusesse a mão sobre a cabeça daquele pobre homem e o protegesse da opressão da qual era refém!
***
Chegando à cabana com um cacho de bananas que colhera pela estrada na volta para casa, Zé Curisco notou logo que havia algo errado. A mulher veio-lhe ao encontro, arrastando a perna doente, roupas rasgadas, cabelos desgrenhados, choramingando discretamente, porque em verdade nunca fora dada aos arroubos ou aos escândalos. O quê acontecera em sua ausência? Fora molestada? Quem fizera aquilo? Por quê?
Demorou algum tempo até que Nha Carmela conseguisse responder às indagações do companheiro da vida inteira. E suas respostas foram daquela imprecisão que lhe era característica, peculiar às pessoas de poucas palavras e muito sofrer como ela. Todavia, o preto percebeu que a mulher fora visitada por três homens violentos e armados durante sua ausência, cujo interesse seria exatamente o tropeiro morto e sua tropa. A velha, usando de malícia que não lhe era própria nem esperada, mentira, dissera que estivera sim ali aquele homem, que tratara-lhe os ferimentos e que o um dali partira pronto, indicando o rastro da tropa. Os homens teriam acreditado e partido, mas, para não perder a viagem, antes a haviam violentado e saqueado as cabaças com a pouca farinha de mandioca que guardavam.
De fato, Zé Curisco lembrava agora que, enquanto saíra da estrada para colher o cacho de bananas na margem, ouvira passar um tropel de cavalos, que de onde estava não pode visualizar. E amaldiçoou-se por não ter intuído aquilo que se passara, por não ter feito seu papel de homem e rasgado o ventre daqueles malfeitores um a um na faca. Deus decerto o absolveria do pecado por lavar com sangue a honra maculada com tão aguda ofensa. A mulher de um homem jamais poderia ser violada debaixo do céu sem que esse home tivesse o direito à justa vingança selada com a morte do agressor!
- Donde ocê invai, meu véio? – Indagou a mulher, lendo nos olhos do marido os contornos de um tragédia.
- Agora que o Diabo está sorto, muié, Deus tá de forga, num sabe?! – Respondeu, juntando as facas, um facão velho e a lança, rumando sem se despedir pela estrada, indiferente à noite que caía.
***
Já se haviam passado sete dias desde que partira no rastro dos indignos, Perguntara aqui e ali sobre os três, muitas vezes recebendo pistas da passagem do tropel há cinco dias, três dias... ontem à tardinha! E por fim, um velho cego, esmolando à beira da estrada, dera-lhe a informação mais importante: “passaram não faz uma hora!”.
Como caía a tarde, decerto fariam parada para pernoitar. Quiçá à beira do riacho que margeava a estrada. Por suposto não estariam aguardando visita, seguros de que corriam na impunidade e descrentes do peso da mão divina. E, quando adormecessem, a mão santa de Deus guiaria a sua e a faca apressaria o encontro daqueles pecadores com o Capiroto!
Dito e feito! Topou-os acampados próximo ao remanso, no exato momento do banho, brincando na água feito crianças. Aninhou-se numa moita próxima, num elevado de onde podia ver tudo no entorno, bastante perto para ouvir o que diziam os condenados:
- Finalmente um banho! – Comemorou um dos malditos, fazendo um dente de ouro brilhar à luz dos últimos raios do sol. – A catinga daquela preta ficou agarrada em mim a semana inteira!
- Bicha fedida! – complementou o outro, um menino ainda, que não deveria contar mais de quinze, talvez dezesseis anos. – Mas muié nem não dá pra iscoiê, num é?
- A farinha valeu mais que aquela preta nojenta! – Emendou o terceiro, homem já na idade de ter juízo, mostrando os cabelos brancos e uma calva que não chegaria a tomar toda a cabeça.
Riram muito e Zé Curisco teve o ímpeto de pular do mato e fazer justiça logo. Mas estavam os homens demasiado perto das armas. Poderia ser que até conseguisse sangrar dois. O problema era o risco de um terceiro ter tempo de alcançar as armas e queimá-lo sem concluir o trabalho. Segurou-se, trêmulo, sentindo a mão de Deus guiá-lo. Haveria de dominar-se, de não confundir o ódio com justiça, porque o ódio seria manifestação do Outro e a justiça a presença de Deus! O que lhe se incumbia fazer não poderia ter nada com ódio e precisava ser feito com piedade para ser justiça.
Enquanto espreitava, lutando contra os mosquitos que pareciam querer comê-lo vivo, veio-lhe de novo a lembrança da vida na fazenda D’Azevedo, das alegres jornadas nos cafezais para produzir a riqueza de Nhozim para a graça de Deus. Vira tudo aquilo prosperar e Nhozim envelhecer em sua bondade, apenas castigando aqueles que manifestassem o pecado da preguiça ou que abandonassem a proteção divina para ameaçar seu senhor e benfeitor.
Era certo que o homem não podia ser onipresente, que seus representantes, traindo sua confiança, às vezes maltratassem e humilhassem seus protegidos. Ele mesmo, não raro, fora castigado com crueldade por ordem do capataz a serviço do Canhoto, cujo objetivo manifesto consistia em espalhar o horror entre os pretos e desviá-los da benção, voltando-os contra o iluminado senhor que Deus lhes destinara. Mas seu entendimento permitia-lhe ver aquilo que estava manifesto, agradecendo pela vida que tivera e suplicando ao Pai que, se chegasse ali a sua hora derradeira, que o perdoasse por seus pecados e continuasse a trazer paz e prosperidade para Nhozim, afastando-o daqueles homens maus que tinham-no por refém.
E, em meio a essas reminiscências, conjecturas e inventários, o acampamento foi silenciando e a fogueira apagando. Dois dos homens, ao que parecia, já haviam adormecido e o terceiro principiava os preparativos para deitar-se. Mas, súbito, começou a caminhar em sua direção e, quando chegou bem perto, começou a urinar. Era a providência manifestando-se! Sacou a melhor faca, levantou-se sorrateiro e, pé ante pé, achegou-se ao homem pelas costas, prendendo a respiração. Foi tudo muito rápido: a faca rasgando o pescoço do infeliz enquanto a mão encobria-lhe a boca para que não se ouvisse qualquer barulho.
Agora só restavam dois!
***
Cambaleando sobre o cavalo, o velho preto sabia que não sobreviveria. Queria apenas alcançar a cabana e morrer nos braços da companheira de toda a vida. Estava perto, mas não sabia se conseguiria chegar. Maldito moleque, que mesmo com a garganta rasgada conseguira alcançar a arma e alveja-lo antes de cair morto, enquanto executava o último infiel! Deixara-os todos boiando no riacho, mas o disparo que recebeu no abdômen certamente provocara uma hemorragia in terna que também encerraria sua existência. Sua missão cumprira-se!
Como o dia raiara, os olhos cansados de Zé Curisco enxergaram uma caravana que vinham na direção contrária pela estrada, com uma carroça ao centro. Era a carroça de Nhozim, tinha certeza. Estava salvo! Certamente Nhozim o reconheceria e faria com que chamassem seu médico de confiança para que lhe salvassem a vida: aquela alma boa a quem servira com tanto empenho por toda a vida, fora novamente enviada por Deus para resgatá-lo do vale da sombra da morte.
- alto! – gritou o ponteiro da comitiva, ao perceber a aproximação do velho preto que esforçava-se para permanecer sobre o cavalo. – Identifique-se, preto!
A voz não saía da garganta. E ao levantar os olhos, uma vertigem derrubou-o do cavalo, mas não se deixou desfalecer, sentindo o cano frio da espingarda cutucando-lhe.
- É aquele velho preto louco que levou a tropa ainda outro dia! – Reconheceu um dos homens. – O tal de Zé curisco... doido manso! – Complementou rindo divertidamente.
- Pelo amor de Deus!... – Conseguiu balbuciar, sentindo aquela friagem que tomava todo o corpo. – Frio... água!
Os outros homens de Nhozim riam muito também, enquanto dois deles tiravam seu corpo moribundo da estrada para liberar a passagem. Um deu-lhe água a beber, enquanto outro pegava seu cavalo para integrar à comitiva de Nhozim, comentando que aquele infeliz não precisaria mais do animal.
- Nhozim! – Gritou o preto, quando passou a carroça com o senhor da vida inteira, sentado ao lado do cocheiro.
Mas Nhozim não parou. Apenas passou, sem olhar para a sua desgraça, seguido por todo o séquito. E o som dos cascos foi-se distanciando, até desaparecer completamente. Como Nhozim não o reconhecera? E por que aqueles malditos homens não lhe disseram que ali jogado para morrer estava o mais fiel de seus servos? O homem já era velho, não enxergava bem, era preciso dizer aquilo que os olhos cansados não deixavam ver. Só que os malditos nada disseram e ele nada viu!
E naquele frio todo, a noite caiu lentamente, mergulhando tudo na escuridão. Sentiu que estava prestes a deixar aquele corpo de tantas dores. À sua frente, uma longa estrada aparecia, avançando e perdendo-se no horizonte. Mas não estava mais só. Caminhava em uma onda de muita gente, sempre em frente, sem a necessidade de pensar para onde seguia, quem eram aquelas pessoas todas e que lugar era aquele. Tudo passara a estar à frente! E aquilo que estava para trás ia-se apagando, como se nunca tivesse existido.