Casa à venda
Não consigo esquecer o dia em que papai queria vender a nossa casa. Éramos seis a viver ali, saboreando a felicidade que aquele rincão sempre nos proporcionou. Eu era o mais velho dos três homens e Rinalda nossa caçula. A rotina do nosso pai era sempre a mesma desde que se aposentou do corpo de bombeiros. Sempre me perguntava: 'por que ele compra e devora tantos livros sobre plantas e jardinagem?' Entendi a razão mais tarde. Ficar inativo nunca passou pela sua cabeça. Talvez por isso tenha vivido 98 anos nesse mundo de Deus. Quando olho através da janela do meu quarto que dá para o nosso quintal não consigo conter a emoção diante de tanta beleza. Por isso gostaria de narrar esse fato que mexeu com a nossa família.
Os pensamentos corriam soltos dentro da minha cabeça no momento em que me desloquei da mesa do café, que eu havia acabado de tomar, para a janela. Não sei porque, mas a depressão queria tomar conta de mim e eu não iria deixar que isto acontecesse. A vista externa de nossa casa constituía o meu maior refrigério. Foi o que fiz. Deixei-me debruçar sobre o parapeito da minha janela e passei a hora seguinte na contemplação do Jardim. A placa ainda se encontrava no mesmo lugar; intocável, saudosa. CASA À VENDA. Não me deixava esquecer aquele dia, aquele momento. Isto me angustiava e eu desviava dela os olhos como a fugir de mim mesmo.
O pedaço de terra que separava nossa varanda do Jardim principal amanheceu ainda molhado da chuva que caíra à noite. Os pássaros aproveitavam o silêncio da manhã e a falta de movimento para beliscar a terra e engolir grãos lançados pelo vento que ainda não se acalmara. Eu viajei no tempo e contemplei papai agachado, arrancando, com as mãos enluvadas tufos de grama e, ao tirar em seguida as luvas, puxar com as pontas dos dedos todo e qualquer vestígio de erva que pudesse roubar de sua plantação o mínimo de nutriente, indispensável ao seu crescimento. Era esse, dizia ele, o segredo para se obter a melhor colheita.
Como começou muito jovem a trabalhar, cedo se aposentou e, muito maior do que a profissão de bombeiro, foi a influência que sua dedicação às flores causou na vida de todos nós. Sua floricultura ainda hoje é referência de nossa cidade e todos os filhos, com exceção de Tadeu, herdaram o gosto de papai pelas flores. Mas foram elas, as flores que me levaram a narrar essa história que tanto mexeu com a nossa família. Vou contar o que aconteceu.
Mamãe morreu quando ainda éramos crianças e nosso pai relutou muito em aceitar conselhos para que arranjasse uma companheira.
-Ninguém nessa vida vai conseguir substituir Miramar. Foi e sempre será o grande amor da minha vida.
-Mas o senhor ainda é jovem. Com certeza precisa de uma mulher - eu dizia, na minha parca sabedoria de quinze anos, mas muito desejoso de ver papai sorrir novamente.
-Mas não sei, não sei. Não vamos falar nisso agora. Tenho um trabalho pelo qual sou apaixonado. Isso preenche completamente os meus dias.
Não insistimos. O tempo passou. Até que, um fato, por um lado auspicioso para papai, mas desastroso para nossa família, mudou totalmente o rumo de nossas vidas. Ele namorava. Já desconfiávamos, mas não queríamos, eu pelo menos, que isto se confirmasse porque em se tratando de quem era não via com bons olhos aquele relacionamento. Ela já vinha, há anos, trabalhando em uma das filiais de nossas lojas e eu, pelo pouco tempo que trabalhei ali só adquiri antipatia por aquela mulher. E o que aconteceu mais tarde veio provar que não eram falsos os meus sentimentos.
Era de vinte e dois anos a diferença de idade entre papai e aquela mulher. Eu detestava seu jeito autoritário de se dirigir a mim e a meus irmãos depois que papai a trouxe definitivamente para dentro de nossa casa. A paixão de papai era cega, mas ele não via, como não vê quem se encontra cego pela paixão. O segundo ano de convivência foi a gota d'água. Para mim, especialmente. Numa fase em que os negócios iam de mal a pior, papai exagerou e cometeu o maior desatino de sua vida, do qual muito se arrependeu, mas já era tarde demais.
No ano anterior, quando as brigas eram constantes, agora não só comigo, mas também com meus irmãos, demos a papai um ultimato. Ameaçamos sair de casa; seríamos nós ou ela. Ele cedeu. Ele, naquela fase ruim dos negócios, deu a ela uma casa, cujo valor abalaria suas finanças. Sua saída foi um alívio. Mas começou a queda de nosso pai. Sua presença em nossa casa passou a rarear cada vez mais. Como pode alguém, iludido pela paixão, empregar uma enorme fortuna para enfeitar com flores toda uma residência, interior, exterior, entrada, saída e de alto a baixo apenas para homenagear uma aniversariante? Não somente nós, seus próprios amigos e funcionários achavam que papai estivesse louco e parecia estar mesmo, pelo que aprontou em seguida.
Quando recebemos a visita do agente imobiliário nos convidando a deixar o imóvel, fiquei perplexo e aturdido.
-O que está acontecendo? - eu disse. Esse imóvel nos pertence, é de nosso pai.
- Não é mais - disse o agente mostrando a carta de venda. Quando vi o nome Samara, a mulher de meu pai como suposta compradora, minha indignação não teve limite.
-Vocês vão morar nesse imóvel a partir de hoje. Foi alugado por seu pai e é muito confortável, segundo ele nos informou.
Descobrimos a fraude. Ela não comprou a nossa casa, mas a conseguiu de papai em mais um golpe sentimental, alegando que a mãe precisava de um canto só seu para os seus últimos dias. A placa de venda foi colocada uma semana depois de deixarmos o imóvel e pensaram que não a veríamos. Mas, aconselhado por Tadeu fui até lá e constatei a verdade ao ver a placa. Ela queria mesmo o dinheiro da venda, uma vez que não mais conseguia de papai a vida nababesca que ele sempre lhe dera.
Mas a vida não deixa de dar aos justos o seu quinhão e aos desonestos a sua justiça. Antes que ela perdesse o interesse por nosso pai, já que amor nunca houve, ele o perdeu primeiro por ela, ou melhor acordou a tempo de seu pesadelo amoroso e largou aquela mulher. Um gesto inteligente para um homem que já havia vivido o verdadeiro amor. Não perdemos o imóvel. A placa foi retirada. Papai voltou para nós. Conheceu depois uma mulher de verdade que o fez feliz e muito contribuiu para o retorno da sua prosperidade e conquista de uma vida longa e pura. Assim como as flores que tanto amou.