SÓ SAUDADE É QUE NÃO TEM CURA

 

     Quando voltei para casa depois de dois meses de andanças inúteis pela região do Caparaó, encontrei Madalena chorando.

            Sua mãe havia morrido de uma doença desconhecida. Assim que desci do meu cavalo, ela veio ao meu encontro, atirou-se em meus braços e desabou em lágrimas e soluços.

            Confesso que fiquei desconcertado. Nunca esperava que a mulher com a qual eu estava convivendo maritalmente apenas nos últimos cinco meses, dos quais dois estive ausente, pudesse ter-me como refúgio do seu lamento.

            Eu havia concordado que durante minha ausência a mãe dela lhe fizesse companhia. Uma mulher e apenas uma criança de seis anos, fruto de um relacionamento anterior em que ela foi terrivelmente mal amada, teria pouca segurança naquele sertão sem fim.

            — De que ela morreu? — perguntei passando a mão suada em seu rosto entristecido, limpando as lágrimas com delicadeza, gesto que confesso ter me assustado. Eu nunca toquei no rosto de uma mulher daquele jeito. Eu sou um matuto de mãos fortes.

            — Não sei o que dizer. Ninguém sabe que doença é essa que está levando o nosso povo embora. Nem a Rosa Benzedeira e nem o Jorge Raizeiro conseguem explicar e muito menos curar. Com mamãe já são sete os mortos por esta banda. Entra e toma um banho e descansa. Vou fazer um café fresco para você.

            Afastei-me da pele morena de Madalena e entrei no casebre. O sol já estava arrastando para detrás do morro os seus últimos raios. Acredito que assim que meu corpo se aquietar o sono vai me roubar. Passei a mão pela cabeça do meu enteado ao beirar o menino que brincava com sua imaginação, fazendo maxixe virar boi.

            O banho foi no cômodo retirado, com chão forrado de duas tábuas. Fui um banho de cavalo daqueles bem bom. A poeira de tanta estrada cedia a cada punhado de água lançada contra meu corpo sovado pelo sol. Em rotas pela serra o frio ajudava um pouco. Mas quando se aproximava das baixadas o sol castigava os tropeiros sem dó.

            Fui até a um embornal de tecido grosso e peguei um pacote de bala doce, entreguei para o moleque de Madalena que sorriu com o meu agrado. O menino era de pouca fala. Passava o dia pelos cantos e fazia tudo que lhe era pedido. Mas estando vago, começa a brincar o que lhe está ao alcance. Nos poucos momentos que tenho para observá-lo, lembro da minha infância e sinto saudade dos meus pais. Fazer o quê? A vida tem seu ciclo para tudo o que é vida no mundinho que cabe todo mundo.

            Cheguei em casa sabendo que só teria dez dias junto com a família. Minha nova família.

            Nas três noites que se seguiram fiquei sem jeito de pedir um chamego para Madalena. O luto dela pela perda da mãe sem dúvida seria demorado pelo amor que ela tinha pela progenitora.

            Na quinta noite foi ela que me procurou. Sussurrou baixinho em meus ouvidos indagando se eu queria amor naquela noite. Não me fiz de rogado, disse que sim e tivemos a noite mais abrasadora no curto tempo que estamos juntos.

            Na tarde do dia seguinte percebi que o menino estava amuado. Parecia não querer brincar com os maxixes e nem com as cerquinhas feitas com talo de mamona e vareta de bambu. Madalena também percebeu e perguntou para ele o que estava sentindo. Ele disse que o corpo doía todo e sua respiração estava fraca. A mulher expressou um “aí meu Deus” e respirou fundo.

            Com rapidez Madalena foi até a hortinha e pegou agrião. Depois do chá pronto fez o menino engolir uma boa colherada com mel. Pegou de dentro de uma lata o vidrinho com óleo de copaíba e pôs sobre a mesa. Entendi que seria o próximo remédio a ser dado se a mistura de agrião com mel não funcionar. E não funcionou mesmo.

            Acabei dormindo por causa do cansaço da capina e acordei com Madalena me sacudindo. — Acorda homem, o menino está mal.

            Peguei a roupa que pude vestir no momento e saí com ele. Mas não teve jeito, assim que passei pela primeira tronqueira, ele faleceu. Pelos relatos que ouvi assim que voltei, era a maldita doença misteriosa que agora leva o meu enteado. E eu já estava o considerando meu filho.

            Depois que sepultamos o pequeno no cantinho dos anjos no cemitério próximo, recebi a notícia de que não viajaríamos mais. Com a doença misteriosa nenhuma vila na região do Caparaó iria nos receber com medo de que fôssemos agentes de contágio, espalhando a nova peste por toda região. Dois dos meus companheiros de tropa já haviam sucumbidos depois que chegamos. E como partir deixando para trás, neste sertão sem fim, nossas pessoas queridas? O risco era voltar e não encontrar mais ninguém, a não ser cadáveres espalhados e devorados pelos urubus.

            Dois dias se passaram e Madalena cada vez mais lamentosa. Perder mãe e filho em pouco espaço de tempo não deve ser fácil para ninguém. Eu a senti muito amuada. Parecia o filho há dois dias. A noite chegou e minha morena se prostrou de vez. Eu é que corri até a hortinha e peguei o agrião. Fiz o chá e misturei com mel. Óleo de copaíba sobre a mesa. Minha mente se abriu. Por que somente agora me lembrei disto? Sim, deve estar no fundo da caixa de madeira.

            Certa vez, oito anos mais ou menos, eu me encantei com uma ciganinha e ela se encantou comigo. Tivemos um momento breve e profundo. Ela me entregou um pedaço de cipó seco, 25 cm ou menos.

            — Para que isto, minha linda?

            — É para você se lembrar de mim. Isto é um pedaço de Cipó Tesourinha, conhecido também como Cipó-cura-tudo.

            — E cura tudo mesmo? Até saudade de você?

            — Saudade de mim acho que não. Se você sentir saudade de mim vai se curar somente quando me encontrar novamente. Mas se aparecer alguma doença desconhecida, raspa e esfarela, ponha na água quente e faça o chá.

            A lembrança deste fato brotou na minha mente e ficou me apunhalando a curiosidade. Revirei a caixa de madeira onde guardamos nossa roupa e achei o tal Cipó-cura-tudo.

            Fiz do jeito que a ciganinha tinha me ensinado e dei para Madalena beber. Depois de um suadouro que lhe ensopou toda a roupa, ela foi sentindo-se melhor.

            Agora somos três na região: A Rosa Benzedeira, o Jorge Raizeiro e o João Curandeiro. É assim que fiquei conhecido, mas o pedaço de cipó está cada vez menor. E o diabo é que não sei onde encontrar o bendito Cipó Tesourinha. Sem falar da saudade da ciganinha que está cada dia maior em meu peito.

           

             

Cláudio Antonio Mendes
Enviado por Cláudio Antonio Mendes em 20/01/2022
Reeditado em 20/01/2022
Código do texto: T7433741
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