A Rave da Tumba
A Rave da Tumba
O que eu queria mesmo era estar aí! Foi esta a frase que pedi aos meus entes queridos que pusessem na minha lápide.
Parti num desses dias ensolarados de verão e sei que, mesmo contra minha vontade, atrapalhei a programação dos mais chegados. Não me culpo. Afinal, isso só acontece uma vez na vida e, tenho em minha defesa o fato de não ter sido uma escolha pessoal. Aliás, se me fosse franqueada tal prerrogativa é provável que ainda não tivesse encontrado uma data adequada. No entanto, se o fatídico fosse inapelável, teria, ao menos, escolhido um dia de chuva fina e vento frio. Daqueles bem propícios para se meter entre lágrimas e orações. Embora não tenha a menor afeição por eventos desta natureza.
Pois bem! Meu funeral se deu com todo rigor litúrgico. Até a escolha dos melhores amigos para a condução da urna ao seu destino final foi cumprida à risca. E mesmo contrariado, mantive comportamento exemplar, digno de um lorde, durante todo o evento. Porém, os organizadores que, com esmero, cuidaram de todas as pompas e tradições, acabaram por desprezar meu pedido e puseram em minha lápide um desses clichês funérios que aludem à saudade e eternidade. Teria sido um sofrimento daqueles que se sofre pra sempre não fosse por Afonsinho, um amigo mais atento que, dias depois de me deixar na tumba, procurou por meus familiares, a fim de, em meu nome, cobrar tal empreendimento.
Soube que enfrentou resistências, mas graças a sua resiliência e depois de se comprometer com os custos da empresa, obteve o aval e tomou, ele mesmo, todas as providências para a instalação da frase, em letras grandes e prateadas. Cuidadoso, Afonsinho ainda afixou, pouco abaixo das letras, em moldura de alumínio e protegida por vidro, uma fotografia do meu rosto, esbanjando sorriso galhofeiro. Imagem recortada de um dos nossos muitos momentos pelas alcovas da vida mundana.
As visitas e Afonsinho, dali em diante, passaram a ocorrer com frequência. Vez por outra aparecia acompanhado de alguns dos nossos antigos pares das noites. Costumavam levar alguma bebida e ficavam por ali, sentados no primeiro patamar da tumba, de forma que minha fotografia me representasse na roda, jogando conversa fora entre um e outro gole. Normalmente, quando secavam o carregamento do dia, despediam-se de mim e partiam. Provavelmente, em busca de lugares mais movimentados.
Sabe? A morte aqui não é tão ruim como diziam. O lugar é sossegado a maior parte do tempo. Mas tem gente de mudança pra cá todos os dias. As dores que me afetavam nos últimos dias de vida desapareceram por completo. Aqui eu não preciso acordar tão cedo. Passo descansando a maior parte do dia. Fiz um grande amigo aqui, o Wagner. Um negro corpulento de barba espessa e um sorriso enorme. O sorriso do Wagner aparenta ter uns cinquenta e quatro dentes, só na fachada. Ele é o zelador aqui do meu setor. Não foi fácil conquistar a amizade dele. Na primeira abordagem ele se assustou e saiu em disparada. Chegou a ficar uns dias sem aparecer. Depois eu fui com mais jeito. No inicio ainda se assustava um pouco, fazia o sinal da cruz e pedia à providência divina que o ajudasse, pois precisava daquele trabalho. Até que, aos poucos, foi percebendo que eu era um sujeito bacana e que não lhe queria mal. Agora passa horas batendo papo comigo enquanto lustra os mármores da minha residência. No final do expediente, antes de sair, sempre passa para um último dedinho de prosa. Mais ou menos no horário em que desperto daquele cochilinho da tarde. No inicio da noite eu costumo dar umas voltas pelas redondezas. Gosto de assistir às peladas no campinho ali na frente. E mais tarde, antes de me recolher, me divirto um pouco assustando os casais que se despojam em saliências aqui pelos muros do condomínio. Outro dia o Wagner me aconselhou a não fazer isso. Eu prometi pensar no assunto. Mas é tão divertido! Ver aquela gente correr, meio vestido, meio sem roupa. O Wagner me disse que eu tenho que ter mais empatia. É... o Wagner sabe o significado de muitas palavras difíceis. Quase concluiu o ensino médio.
O fato é que me sinto bem por aqui! Muito bem, aliás. Graças às providencias do meu amigo Afonsinho, em pouco tempo, meu túmulo passou a ser o mais visitado do cemitério. As pessoas o indicam umas as outras. Chegam a conduzir pelas mãos aqueles que ainda não o conhecem. É bem verdade que logo no início não foram só flores. Alguns dos primeiros visitantes agiram com certo estranhamento. Até medo. Uns olhavam ao redor, outros se benziam e citavam trechos de textos sagrados antes de se afastarem. Mas nada como o tempo. As divulgações dos primeiros simpatizantes foram mais convincentes e, sobretudo, eficazes do que as pragas dos maldizentes tradicionalistas. Chegam curiosos de todos os cantos. Tem muita gente que vem aqui só pra ver aquela frase e o meu sorriso bandalho. Hoje, posso me orgulhar de ter a minha morada como o ponto turístico mais fotografado do Irajá. Fotografado e frequentado. Recentemente o Wagner me contou sobre o sucesso que faço nas redes sociais. Ele disse que a imagem do meu castelo, com a frase e o meu belo sorriso já atravessaram fronteiras. Fiquei pensando, como é engraçado esse negócio de ser famoso e poder andar por aí sem ser molestado. Coisas da morte!
Não chega a ser um mar de rosas. Tem umas coisas que são meio chatas. O tal dia dos finados mesmo é insuportável. Isso aqui fica lotado, parece um formigueiro. Só que um formigueiro de gente chata e sem educação. Sujam tudo. O condomínio amanhece cheio de restos de velas e flores murchas pra tudo que é lado. O Wagner odeia o dia dos finados. Eu também não gosto. Mas fora essas pequenas chateações, de resto, não tenho do que reclamar. A vizinhança é boa e minhas visitas estão cada vez mais divertidas. Estou gostando muito dessa coisa de ser uma celebridade.
Outro dia apareceu por aqui um grupo de jovens, uns dez, mais ou menos. Todos vestidos de preto. Usavam uns cabelos coloridos, muitos anéis em todos os dedos e brincos como eu nunca tinha visto. Brincos no nariz, na orelha, na sobrancelha e até na língua. Botaram pra tocar uma música meio estridente. Mas não era ruim. Alguns subiram na minha casa, outros ficaram embaixo. Faziam uma dança esquisita com um dos braços entreaberto e o outro coçando a barriga. Giravam o pescoço, ou balançavam a cabeça pra frente e pra trás, jogando os cabelos. No inicio eu achei estranho, mas depois acabei gostando. Fiz até a dança deles. Meio desajeitado, mas fiz. Ninguém viu mesmo.
Dias depois eu comentei sobre essa turma com o Wagner. Ele sorriu, balançou a cabeça e zombou de mim. Disse que eu estava meio velho e fora de moda. Mas em seguida me atualizou. Disse que aquela era a galera do metal, e que aquela visita teria sido para reconhecimento do ambiente, uma espécie de evento teste para uma coisa maior. Segundo o Wagner, está bombando nas redes sociais – palavras dele – uma tal de Rave da Tumba, organizada por aquele grupo de jovens e, vai acontecer no próximo mês, aqui mesmo, no quintal da minha casa.
Nossa! Isso me deixou animado. Mal posso esperar por esse dia. Vou me preparar bem. Ficar bem descansado pra bater cabeça a noite toda.
Até lá eu vou levando minha mortezinha em paz. Do jeito que dá.
Tom Lira
11/01/2022