Onde a loucura mora
“Este passeio por esta mesma sala já o dei antes, não me lembro quando mas vou pisando as minhas próprias pegadas”.
Campos de Carvalho
Casas não são árvores, mas muita gente se enforca nelas. Esse pensamento passava pela cabeça do homem enquanto estava deitado sobre a grama.
Antes, lá na cidade, tinha pensado muitas coisas desconexas. Entre elas, um pensamento recorrente era o de que toda casa é um monstro: as janelas e as portas são olhos e bocas prontas para devorar humanos.
Na lista de coisas pensadas por ele constava que os quartos se parecem com o estômago de uma besta onde são misturados e digeridos os corpos. Por vezes, cogitou o homem, as camas se assemelham a tarântulas de ventres felpudos lançando seus braços ao pescoço das pessoas. Os que escapam destes cômodos são atirados na sala ou na varanda, locais de sonhar sentado em poltronas ou cadeiras.
A cozinha, pensou ele, é o local onde se fabricam as poções, os venenos para amolecer a carne humana. É o paraíso das facas afiadas que atravessa o caule das plantas e a carne dos bichos.
Tremendo e retorcendo-se como um fio elétrico em curto circuito, saiu da cozinha com um gosto de metal na boca, deu a volta à casa e foi para a garagem onde pensou que poderia se esconder de um monstro na barriga de outro. O carro ostentava um para-choque sinistro, espelhando terror. Afastou-se de costas, olhando para o capô prestes a se abrir e abocanhar sua pessoa.
Dirigiu-se ao banheiro, sentou-se com a cabeça entre as mãos e pensava vagarosamente, mas sem paz e com uma ansiedade atroz. Veja só, dizia a si mesmo, meu lugar de refúgio o banheiro, é uma espécie de câmara em que os corpos são limpos e expurgados, esvaziados de si, para serem preenchidos e sujos novamente. Ficou com um medo visceral do banheiro. Levantou-se de um pulo.
Abandonou a casa como quem abandona um pesadelo. Saiu a pé, quase trotando. Antes de cruzar o portão, vê as roseiras apontarem seus espinhos e botões para ele, como guardas de uma fortaleza. Miríades de insetos zumbem nas flores parecendo pedir água enquanto os espinhos pedem sangue. A casa gargalha sob o sol e desprende um sopro que atravessa o jardim levando cores e odores em sua direção. De olhos arregalados ele vê a onda se aproximar e pensa que o perfume só é bom quando é escasso. Mas a enxurrada de cheiro que chega até ele queima como folha seca.
Num átimo sai correndo alucinado deixando entreaberto o portão – velhas garras de um vigilante inerte – e para na esquina, ofegante e suando frio.
Com as mãos nos joelhos e o coração palpitando, arregala os olhos ao ver um jabuti conduzindo a casa nas costas. O bicho caminha à sombra do muro, indiferente a tudo. Com aquele casco às costas o jabuti se basta. Para o homem também é o bastante aquela visão. Quase desacredita do que vê, pois os olhos estão marejados e dançam loucamente nas órbitas, pressentindo liberdade. Por fim e portanto o homem toma um grande fôlego, apruma o corpo e desce a rua com passos trôpegos, lançando olhares esquivos para a fileira de monstros que ladeiam o caminho de um lado e de outro.
Depois de um tempo, reúne um resto de coragem, dá um grito, mostra os punhos em direção às residências e corre desembestado até os limites da cidade. Cansado, deita-se debaixo de uma árvore. Antes de dormir pensa que a árvore é uma casa também: casa de pássaros.
Ao acordar, horas depois, está sendo conduzido - amarrado e medicado - até à boca sem dentes de uma clínica psiquiátrica. Lá, acordará debaixo de um teto e entre quatro paredes. Quem sabe o que pensará depois?