Sonho dos justos

Sentado em sua cadeira de sua sala, que parece apenas combinar com o tom moribundo do ambiente, está um homem a sentar de pernas cruzadas e com os braços igualmente amarrados. Suas roupas são da cor da indiferença e o rubro do seu rosto apenas lhe dá um ar mais triste ao invés da vida que o bombear do sangue costuma trazer.

Este homem é um daqueles esquecidos pelo tempo, esquecido pelos amigos, esquecido pela juventude. Apesar de visualmente morto sua mente fervilha com todas as feridas que a vida, e as pessoas nela, lhe trouxeram. Este ser estava a refletir sobre pessoas que profetizaram na sua cara, profecias de morte e solidão, não muito pela necessidade de dizer, mas pela insistência em partir apenas depois de ferir, macular, retorcer e chacoalhar este homem velho e rabugento, com certeza cada um deles tiveram os seus motivos. As profecias pareciam ter se concretizado sem muita dificuldade ao longo de sua vida, e ao homem apenas cabia lembrar de um passado em que ele se permitia sonhar. lembranças de cenários, de uma vida que passou e até de uma vida que nunca pode ser vivida e que por isso mesmo fazia seus olhos avermelharem. Com tudo isso em mente e em experiência, o velho pensou em apenas uma saída, apenas uma, pra lidar com a dor que o afligia vindo dessas lembranças... derramar todo o ódio que tinha sobre essas pessoas do passado que insistiam em viver na sua cabeça recitando os poemas de desgosto por cada um deles, dia após dia. Hoje era mais um desses dias que ele estava se dedicando a sua arte de odiar, arte de revidar por uma longa porção de seus dias, sempre sentado na cadeira dura de sua sala de estar, apesar de estar a horas nessa pratica era só o começo de um longo trabalho.

Em seu trabalho o homem mastigava os dentes, amassava a pele do rosto até o ponto de esticar o pescoço. De todo o seu corpo a única parte que se movia livremente era a veia na testa que saltava vermelha da direita pra esquerda, as vezes pulava pra nuca e quando isso acontecia se sufocava por alguns minutos, quando num salto ela voltava pra testa o alívio de respirar era abafado pelo ar quente e pesado que queimava as narinas, estava totalmente absorto na sua vingança e sem nenhum indicativo que sairia desta tarefa tão cedo ou nessa vida. Foi quando sem aviso o homem recebeu um pequeno presente; uma dor aguda, uma agulhada, uma mordida na língua, ardida e com gosto ferroso e quente.

Os braços, antes amarrados, correm ao socorro da boca ferida, o retorcido vira alívio e até a cadeira parece macia quando a dor branda e é quando o homem abrandado pensa e recita: "Eu sou o mais presente em minha pequena vingança". Estava certo nesse pensar, experimentava todos os venenos antes de dar aos fantasmas que vivem na sua cabeça, mas que nunca viveram nas lembranças de seus aniversários. O abrandado de súbito se paralisa com sua boca ardida aberta e respira o silêncio de anos da sua vida e decide fazer algo que muito tempo não fazia... tentou algo novo.

Ao invés de se fazer presente no ódio, na vingança, no mal dizer, começou a pensar em todos os fantasmas no mesmo salão vestido de brancos dançando em uma festa que ele era proibido de entrar, é claro, mas todos eles eram muito mais que bem vindos um na presença do outro. Todos eles sorriam com uma boca que abria mais que a metade do rosto. Todos estavam dançando em ritmos diferentes até que pouco a pouco, pouco a pouco ficam em sintonia. Um movimento de braço aqui encontra uma sacudida de quadril acolá, um samba no pé de um desengonçado termina no pé de uma bailarina. Todos eles em um grande círculo, se amparando no olhar um do outro, dançando e esperando, respirando e esperando, vibrando e esperando, mas afinal o que esperavam tanto? O que vieram fazer no salão? A espera começa a se findar e com isso a resposta começa a clarear, todo cortejo percebe que o cortejado está para chegar, mas este não é gente e não vem pra ficar por muito tempo, o que esperam com tanta luta e vibração é simplesmente aquela fração de segundo onde a vida perde o seu peso, a dor perde sua contração e o corpo infla como um pulmão de mergulhador que enfim cruzou o espelho d'agua.Todo esse pesar sai no grito em conjunto que expele o ardor do peito em uma grandiosa harmonia barulhenta, e tudo se finda rápido como um abraço de cílios. O que resta? Apenas os braços esticados de todos tentando tocar as nuvens para medir o tamanho da alegria ,da planta dos pés até as palmas da mão e ficam ali, como estatuas de triunfo. até todo mundo, enfim , poder relaxar. O que o pensador tenta funciona e ele experimenta todos esses sentimentos antes de dividir com os fantasmas de sua vida, com a vantagem de poder estar no conforto de sua sala de estar.

Finalmente ele se levanta do tombo que tomará a tanto tempo aprecia um copo de água e naquele momento ele não sabia mas na manhã seguinte ele finalmente entenderia como o famoso sono dos justos era por si só uma grande e preciosa recompensa.