A claraboia
Ela, uma senhora, próxima dos oitenta. Ele, um joão-de-barro, o passarinho. No compasso da solidão e da carência um deslumbramento pode acomodar-se de inopino num coração. O coração é um poço de extremidades. Por lá cabe quase tudo. Ela sozinha, viúva há pouco mais de um ano, a solidão havia-se em uma carga demasiada. Certa manhã qualquer de um dia sem especificidades, como sempre na rotina repetida no rés do retraimento, no recôndito âmago do afastamento, na hora da higiene matinal, na pequena claraboia lateral do banheiro, à frente da ainda tênue luz do sol, ele, o joão-de-barro. Na primeira vez ela não deu importância, além da cantoria. Mas ele voltou e voltaria todos os dias, depois daquele. Olhares cruzados cromados caridosos, e incitantes insistentes notas resilientes de um canto telúrico e renitente. No tempo se evidenciam as evidências, e tudo era evidente, mesmo que não aceitasse qualquer explicação, a relação. Ele ficava ali na claraboia durante todo o tempo, nunca enfadonho, sempre com novidades, o canto variava e se renovava, ela acompanhava os passos de altivo cavalheiro pela claraboia. O aconchego de um intervalo trêfego na solidão, fremente. Foram meses a fio, sem interrupção, e nem as agruras, os lapsos, as aragens do tempo ou desvãos do esquecimento, impediram, sempre no mesmo horário, o reencontro. Até uma primeira manhã seguida de infinitas outras em que ele encontrou a claraboia fechada.