Veneração - Conto extra - CLTS 17

Creatura sou, sem a dádiva da existência, forma sem corpo, repouso no âmago de um infinito. Sei que sou pulsante, é porque o creador me quer fora dele, ou melhor, me quer diante de si, me quer criatura, e eu anseio esse momento. Enquanto isso, sigo com ele por onde vai e por onde pensa, me sinto, às vezes, mal por isso, como se as minhas raízes invadissem outras terras. Culpa minha ou dele? Não fiz nada, ainda, sei só que creatura sou, não tenho mãos, pés, nada, apenas um existir ilusório. Não tenho culpa de nada, nada fiz, nada posso fazer.

Vivo sem viver verdadeiramente, minha vida é algo sem vida e, mesmo existente, não-vivente será. Sou deus impotente, minhas creações não podem criar. Tudo o que quero, assim mesmo, é ter, mesmo que não possa ser; algo, ao menos, será satisfeito.

Buscas, seleções, estudos, refinamentos - há-de ser perfeito.

Brutidão, paciência devo ter. Veio-me logo os pés, assim que deveria ser, não? Pra quê coração ou coisa assim? Mais útil é o que me fará não cair - e me dará mínima liberdade para agir, contudo, será apenas direção, sei bem o caminho.

Meu sonho toma jeito, como falei: ficará perfeito.

Sorrisos e até lágrimas - veio a perna.

Cheguei à metade, paciência! Tristeza, também, admito. Ficar nisso, cada vez mais só. Tudo foi sumindo, uma escuridão tomando conta de tudo. Não posso chorar, objetivamente, pelo motivo que parece ser óbvio e também por ainda não ter chegado a essa parte. Deve de querer deixar por último.

Acabo até me esquecendo de mim, mas deve ser mesmo assim! Nem que quando à rua for, buscar o que devo, me olhem com desgosto, nojo e medo. Me importa só uma coisa!

Essa coisa faz parte de ti - deveria ser assim.

Sinto que agora uma graça maior recai sobre mim, um cuidado que nunca senti. Deve de estar caprichando, talvez considere a parte principal. Bem sei, os outros provaram (a parte que implica quando vivia), que pode estar "errado". Vi que passaram a desviar o olhar não para o que tanto esmero dedica, não posso reclamar, também. Fico como foi dito, porém eu sei bem que agora há capricho além.

Tem de ser minucioso trabalho, atento sempre! Mas, meu Deus! Despertai-me quando, estonteado, perder a consciência. Vivo me hipnotizando com essa proximidade toda. Uma hora o cuidado e, de repente, me vem o fascínio.

Está pronto - olha tua perfeição.

Tenho tudo, enfim. Meu tudo, porém, ainda se limita a ser um corpo, quero ter vida, alma; não fazer parte de uma, pois não tenho força própria. Sumirei quando ele morrer? O que hei de ser, depois? Mera obra? Não será assim, certeza tenho, não deixarei sucumbir o que hoje julgo ser a essência do meu tudo.

Já chorei, sorri. Era tudo o que eu queria. Está bem diante de mim! Minha perfeição, minha criação. Aos seus pés me coloco e os beijo, olho para ti, apesar de continuar a olhar reto. Mas subo e ponho novamente meu rosto em frente ao teu. Assim será para todo o sempre, não preciso de mais nada, tu já és meu tudo!

Zela por tua vida - teu tudo é o quê?

Vago nesse meu mundo que está em meu poder, minha soberania. O caminho, eu disse e lembro, sei qual é. Chegou a hora de tomar o que é meu; não porque já era, mas me foi dado.

Aos teus pés de novo, que deus sou eu? O que criei tem mais poder do que eu? Me responda, por favor. Agora você olha pra mim? Por que petrifico-me enquanto você faz o que nunca poderia fazer? Sinto que morri.

À meia-noite uma estátua foi vista caminhando nas ruas.

~

ñ.r.

Rodrigo Hontojita
Enviado por Rodrigo Hontojita em 17/12/2021
Código do texto: T7409571
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