Luz no breu
O tempo passava, ele continuava a encarar o teto e a luz nauseante - às vezes falha - oriunda da lâmpada; único entretenimento. Contar, talvez, quantas vezes aquele lume se ia no dia era bom para esquecer o que se foi, mas, diferente da luz, não voltava mais. E olhava, olhava, olhava... Se lembrava de, certa vez, de joelhos, sozinho, no quintal escuro, via pelas fechadas venezianas a luzinha vinda da sala de jantar, onde se ouvia talheres batendo em porcelanas e algumas conversas e risos. Só conseguia ver a lâmpada, depois, bem depois, quando não se ouvia mais barulho, aí que as janelas de madeira se abriam e um rosto sem boa emoção lhe encarava rapidamente, depois recebia uma sacola com sua comida. Aquela, naquele dia, era uma ótima comida, jantar raro! Comeu que sujou as mãos e a boca além do que normalmente sujava. Para se limpar que foi complicado, mas se virou, com um pano velho e áspero que lá tinha. Ai, mas são lembranças tão distantes... Tinha nem dez anos.
Passou a lembrar, então, de quando já era um pouco mais crescido. Foi numa noite - para ele só havia noite -, quando andava desajeitado pelos cantos. Há poucos dias que fazia isso, mas, mesmo desacostumado ao luzeirão das lâmpadas, tinha de andar, o mais rápido possível, direitinho. E, numa dessas andanças - ou tentativas de -, por descuido e desconhecimento, tropeçou num canto errado. Ai, meu pai! Caiu sobre uma mesinha... de vidro. Parecia ter um valor imenso, mesmo fininho, de madeira sem cor. Quebrou. Cortou-se um pouco, entretanto o desespero sentido foi mais pelos cacos espalhados do que pelo sangue derramado, mesmo sendo o seu próprio. A luz é tão rápida para chegar, tanto quanto é ligeira para sumir; daí, no mesmo instante, apareceu o dono daquele rosto, só que agora mostrava sua emoção. O braço fino, quase esmagado por aquela mão, foi puxado em direção a um cômodo, mais confortável ou não do que o quintal, e lá sumiu aquele corpo esguio numa das portas do guarda-roupa. Os gritos também não se ouviram, mas existiam. Ficou a ver a luz pela frestinha do meio.
Que lembrança ruim... Será que era costume? Se esforçou para lembrar de outra coisa, o Sol já estava em aparência de despedida. No entardecer, que tal lembrar de algo que remetesse a isso? O crepúsculo da vida, não? E começou a forçar a mente. Foi num momento como esse que, dentro do carro, olhava a luz eterna e profusa que ilumina a Terra. Bem queria uma assim para dissipar a sua escuridão o tempo todo, já que as suas noites não tinham lua. E a estrada, meio vazia, alargava o seu pretume. Parou o carro e escutou um suspiro de alívio do motorista, que plenamente não conhecia, mas reconhecia o semblante; era aquele, mas revigorado. Olhou, sorridente, ele sair do veículo e dar a volta, indo à porta de trás e abrindo-a, dando sinal para que saísse. E foi. Tinha de receber auxílio para andar, não se acostumara com o andar nem com as bengalas, desde cedo oferecidas. Passou pelo portão, onde recebido foi por uma mulher, de trinta anos, no máximo, de branco e máscara, toda simpática. Essa tomou parte na ajuda, o outro, mais uma vez suspirante, soltou-se e seguiu. Havia um belo pátio, com uma macieira e algumas florzinhas, muitas pétalas, flores e finos galhos no chão. Fascinante - pela primeira vez. Entrou num quartinho, onde, naquele dia, só ele havia, mesmo tendo outros três lugares. Deitou-se na cama ao lado da janela e bem embaixo da lâmpada; queria sempre olhar para ela, já que agora podia. Se distraiu enquanto a encarava e, quando sentiu fome, tirou os olhos dela e, quando percebeu, a porta estava fechada. Chamou, mas ninguém respondeu, como quando lhe trancaram no guarda-roupa. Tentou ver o que acontecia pela janela, mas só ouviu o som do motor, mais nada; como naquela vez do quintal? Pelo menos a lâmpada estava ali, emitindo sua luz, bem em cima de si.