Rholla 

 

Faltavam poucos meses para eu aposentar. Pelas minhas contas, seis meses, talvez mais talvez menos. 

 

Os dias tinham se tornado muito mais que rotina, era um ritual atrás de outro; nesses últimos meses antes de aposentar, quando me levantava de manhã pra trabalhar, já previa tudo e acontecia exatamente como tinha imaginado: vou chegar e fazer assim, assim e depois vou pra tal lugar. Volto pra casa e meu dia de trabalho estará encerrado. 

 

As conversas, os assuntos, as atitudes e até as reações dos colegas sobre determinadas questões já eram totalmente previsíveis, para mim isso era mais que rotina, era o fluir natural de uma pessoa experiente e um tanto acomodada pelos longos anos no mesmo lugar. 

 

Na quarta-feira, o dia amanheceu chovendo com poucos relâmpagos. como a chuva escorria muito lentamente e constante, eu já sabia que o dia todo seria assim. A natureza tem lá os seus caprichos, às vezes a chuva é como um asno velho solto na caatinga ou como um cavalo selvagem sendo domesticado. 

 

Equipado de capa e galocha pra chuva, caminhei lento com os braços encolhidos por debaixo do capote para o trabalho. Fui a pé, gostava de ouvir os pingos baterem no capuz de plástico e escorrer pela capa até chegarem nas galochas. Ao chegar no destino, não segui direto para o meu departamento, apenas passei o ponto eletrônico e me dirigi para o setor de recursos humanos. 

 

Ao passar pela porta do R.H, encontrei com uma colega, Valentina: não estava muito certo se era esse o nome dela, todavia, comecei a conversar, pois quando me viu já me disse: 

 

— Olá, Benjamim, faz tempo que não te vejo, tudo bem com você? 

 

— Estou bem, afinal de contas, depois de tantos anos aqui, a gente conhece todos os atalhos pra evitar aborrecimentos, deixo-os de lado simplesmente ou que os novatos se divirtam com eles. E você, como tem passado? Você está com uma aparência ótima: por acaso viu passarinho verde? 

 

Como não me lembrava do nome dela, não estava convicto que seu nome era Valentina, improvisei uma piadinha sem graça pra disfarçar; me senti um pateta depois que disse "... passarinho verde". 

 

— Estou ótima, já faz cinco meses que me aposentei, passei aqui cedo pra rever umas amigas que sumiram, isso é normal, afinal, minha vida mudou totalmente; posso dizer que sou um passarinho fora da gaiola. 

 

— Mas, Benjamim, o que lhe traz aqui? Quem sabe posso te adiantar alguma coisa! 

 

A calma em situações difíceis sempre foi uma ferramenta que usava com maestria, o nome dela não vinha à minha cabeça, então sempre pegava o atalho mais convincente e seguia como se tudo estivesse perfeito. 

 

— Então! Que coisa boa você dar essa notícia da sua aposentadoria, fico feliz e tenho certeza de que pode me ajudar, e muito. Estou aqui justamente pra saber quando posso solicitar a minha aposentadoria. 

 

Minha amiga de longa data já tinha muitas primaveras nas costas, agora contava outonos e invernos. Tinha cabelos loiros, porém, notava-se uma carga de tinta, a pele lisa e bronzeada, olhos grandes e ligeiros, nariz pequeno, mas esborrachado como um ovo frito, sua voz era suave e preguiçosa. Um corpo bem cuidado, notava-se que malhava constantemente, os dedos das mãos longos, mas as unhas aparadas próxima das ponta dos dedos. Os olhos verde-claros.  

 

— Benjamim, você vai primeiro na Rosangela, aquela morena, apontou o dedo e deu um sinal pra ela, ela vai fazer a contagem do seu tempo. Depois ela vai te orientar a procurar a Matilde, aquela moça lá no fundo, está vendo? Aquela de jaqueta, ela vai te orientar a fazer a solicitação, caso você já tenha tempo suficiente de contribuição. Mas preciso lhe falar uma coisa muito importante; vamos para aquela mesa no final da sala. 

 

— Não duvide, muitos duvidam e depois têm sérios problemas psicológicos, você precisa se preparar para aposentar. Programe trabalhos antes de aposentar, seja de meio período, seja de duas horas, seja como colaborador em alguma ONG, qualquer coisa, mas não pare de imediato. 

 

Até o momento em que ela me orientou como fazer a solicitação foi perfeito, mas quando começou a falar, falar e falar mais e mais sobre como eu deveria me preparar para a aposentadoria, aquela conversa começou a soar como uma ladainha, um verdadeiro rosário, a impaciência começou a me ferroar, comecei a remoer pensamentos e não percebi, estava distante dela. O terço não acabava mais, quanto tempo seria meu calvário? Oh Deus! 

 

De repente, levantei-me da cadeira num repelão, estava devaneando tanta coisa enquanto ela falava, que me assustei quando fixei o olhar na pressuposta Valentina, seu rosto estava igualzinho um maracujá de gaveta. A pele toda enrugada, careca e o nariz parecia um ovo cru numa frigideira fria sem óleo. Realmente, a mulher era um maracujá de gaveta. 

 

— Muito obrigado por tudo, mas preciso ir, ainda estou no horário de trabalho, você entende? 

 

Corri o mais rápido possível até a Rosangela, nem pensei em olhar para trás, sei lá, vai que aquele maracujá de gaveta venha no meu encalço. 

 

— Bom dia, Rosangela, tudo bem com a senhora? Meu nome é Benjamim e estou precisando de informações sobre a minha aposentadoria. 

 

— Bom dia, Benjamim, vou fazer uma pesquisa aqui. Olha, hoje em dia as coisas se tornaram rápidas e fáceis demais com o computador, em menos de cinco minutos e você já vai saber se já pode solicitar ou não a sua aposentadoria. 

 

— Benjamim, preciso te falar uma coisa, aposentadoria pode ser muito bom ou não; você já está se preparando pra ter uma ocupação regular quando aposentar? Uma similar como você tem hoje? Vou te contar uma coisa: tenho uma tia que mora na casa de minha mãe, quando aposentou achou uma maravilha, ficava à toa o dia todo em casa, acordava tarde, suas refeições eram quando dava vontade, via televisão..., mas depois de uns dois meses, já estava cansada de não fazer nada! Devido à idade, não conseguiu emprego como dantes, caiu em depressão, queria o emprego anterior de qualquer jeito, mas isso era impossível. Pouco mais de dois anos depois, teve um infarto, hoje, anda pela casa chorosa arrastando uma perna. 

 

Olhei com mais atenção naquela figura que tinha destrambelhado a falar e notei que seus dentes eram perfeitos, mas todos eram afastados um do outro. Quando falava, a língua esticava além dos lábios, esse movimento parecia que ela estava chupando um pirulito, picolé, alguma coisa parecida, era uma mulher morena, uma mulata, alta e bonita. 

 

Olhei bem mais de perto nos olhos castanhos dela e levei um susto. Lembrei da Rholla! Uma senhora louca, era negra e se vestia muito bem, usava colares, brincos, passava batom e um pó branco nas maçãs do rosto, devido à sua demência, passa muito pó de arroz. Às vezes parecia um fantasma, ela era muito magra.  

 

                                                                       II 

 

 

Quando eu era criancinha, morria de medo da Rholla. De tempos em tempos aparecia em minha casa, minha mãe tinha pena dela e a acolhia, ela chegava com duas ou três malas tipo de mascate, deitava-se na minha cama e ficava lá. Aquilo me irritava, e minha mãe falava: 

 

— Menino! Respeite a Rholla, logo logo ela vai embora, respeite os mais velhos e principalmente os doentes. 

 

Quando Rholla zarpava de minha casa, eu ficava feliz, e mais ainda quando ela nunca mais voltou. 

 

Saí o mais rápido de perto de Rosangela e corri para a mesa de Matilde. 

 

A chuva agora estava tão fina que parecia um nevoeiro, mas não era, chovia continuamente, as janelas estavam quase todas fechadas e o ar começava a ficar estragado devido à falta de ventilação. 

 

— Matilde, bom dia! Estou com a contagem de tempo para minha aposentadoria, por favor, pode me dizer se já posso solicitar? 

 

Matilde não tinha mais que vinte anos, cabelos curtos, estava com uma gandola por cima de uma camiseta vermelha com uma estampa preta de um rapaz de boina, calça jeans e uma bota tipo coturno. Ela era muito bonita, principalmente os olhos e os lábios, a sobrancelha tão fininha, que parecia ter sido desenhada; belíssima a menina.  

 

Ela olhou os papéis que entreguei, leu meu nome e após alguns minutos disse: 

 

— Senhor Benjamim, falta exatamente um mês para o senhor aposentar. O senhor que fazer sua solicitação agora? O tempo que leva pra concluir o processo é pouco mais de um mês, assim, quando sair a resposta, o senhor poderá se aposentar. 

 

— Sim! Por favor faça isso. 

 

Após alguns minutos, Matilde me pediu pra assinar uns documentos, sem demora ela me entregou uma cópia assinada por ela e por mim e disse: 

 

— Agora, senhor Benjamim, é só aguardar, em breve o senhor estará aposentado. 

 

Fiquei tão feliz pelo atendimento de Matilde que não conseguia levantar da cadeira. Ela fez tudo de forma tão eficiente que me senti abobalhado, fiquei parado ali como um poste. Ela fazendo seu serviço sem olhar pra mim. E eu... lembrando das outras duas... 

 

 Lembrei também quando entrava em uma loja e pedia uma camisa branca de manga curta; o vendedor me trazia várias camisas de outras cores e calças, e eu tinha que repetir várias e várias vezes, eu só quero uma camisa branca de manga curta. Por favor! 

 

Os dias passaram normalmente, não falei com ninguém sobre a minha ´última jornada no R.H.  

 

                                                                        III 

 

— Benjamim, dá um pulo lá no recursos humanos e procure a Matilde, ela pediu pra você passar lá pra pegar um documento — disse Antonov. 

 

O relógio martelava já umas nove horas da manhã, entrei e me sentei numa cadeira giratória de frente pra Matilde. 

 

— Bom dia, Matilde, recebi o recado e vim o quando antes! 

 

__ Senhor Benjamim, o senhor está aposentado desde ontem. O senhor não precisa retornar mais ao trabalho. Por favor, assine esse documento. 

 

Agradeci à moça de botas tipo coturno e saí devagarinho. Queria olhar para trás, mas achei melhor não remoer o passado, não queria olhar para um passado de mais de trinta e cinco anos naquele serviço, olhar o horizonte é sempre melhor. 

 

Naquela manhã, após saber que estava aposentado, não retornei para a minha secretaria; se voltasse lá, com certeza encontraria um balaio de maracujás de gavetas, segui direto pra casa. 

 

Quando cheguei em casa, abri todas as janelas e as portas, tomei banho e vesti um pijama novo, me deitei na cama e dormi profundamente. Acordei lembrando da Rholla! Quando ela falava, colocava a língua muito pra fora da boca. Me lembrei muitíssimo bem dela e fiquei triste. Ela se chamava Rosa, ficou tresloucada porque o marido foi condenado injustamente. Pouco tempo depois, o marido morreu na cadeia.  

 

Rosa surtou definitivamente porque, depois do julgamento, nunca mais viu o marido. Todos os dias ia pra frente do fórum aguardar a saída do marido. A carência de amor do marido levou-a à loucura.  

 

Como será que foi o fim da Rholla? Abandonou sua casa, os amigos que a acolhiam quando perambulava conturbada pela cidade. Encolhi o corpo na cama, chorei baixinho e voltei a dormir pensando na Rosa.