Possessão agendada

O celular de Michael, o Caça-Fantasmas, tocou enquanto ele colocava uma embalagem de lasanha congelada no micro-ondas. Antes de atender, o rapaz regulou o timer para 14 minutos e depois de apertar o botão de início, sentou-se numa banqueta da cozinha, cotovelos apoiados na mesinha dobrável à sua frente.

- Serviço de Caça-Fantasmas do Michael! - Apresentou-se.

- Michael? Ouvi dizer que você é capaz de invocar demônios - disse do outro lado da linha um homem com sotaque italiano.

- A minha especialidade é expulsar demônios - afirmou Michael, desconfiado. Poucas pessoas além da namorada, Glenda, sabiam do acordo que ele tinha com Rodney, o demônio que gostava de viver no meio dos humanos - mas não exatamente possuindo seus corpos.

- Um amigo me contou que você fez um trabalho para o Hospital da Misericórdia... havia um paciente em coma, e você conseguiu fazer com que um demônio entrasse no corpo dele e dissesse aos médicos exatamente qual era o problema. O sujeito foi salvo graças a você, não foi?

Definitivamente, Michael não costumava incluir aquela história no seu portfólio, pois podia levantar suspeitas indesejadas. Mas, já que o estranho havia tocado no assunto, não custava nada perguntar quem ele era e o que queria.

- Evodio Del Bianco. E preciso que me faça algo semelhante... tenho um amigo em coma numa clínica em Nordhafen. Sabe onde é?

Michael olhou para a embalagem de lasanha rodando no prato do micro-ondas; o cheiro da massa começava a se espalhar pela cozinha.

- Sim, sei onde é Nordhafen. Mas aquele foi um serviço especial... só fiz porque uma vida corria perigo.

- A vida do meu amigo também corre perigo... - replicou Del Bianco - e você vai ser muito bem pago pelo seu trabalho, se tudo der certo.

Michael não estava particularmente interessado em repetir o processo de "possessão terapêutica", mas Del Bianco citou um valor que certamente lhe permitiria quitar todos os boletos em atraso. E ainda sobraria dinheiro para remodelar a quitinete...

- Cinquenta por cento adiantado - arriscou.

- Mande seus dados bancários por SMS - redarguiu prontamente Del Bianco.

* * *

Michael desembarcou de um táxi em frente à uma estilosa clínica particular no balneário de Nordhafen, corrida paga pelo cliente. Na recepção, dois guarda-costas em ternos pretos e óculos escuros, o conduziram até um quarto onde estava o paciente em coma - e Del Bianco, um homenzinho calvo e rechonchudo.

- É um prazer conhecê-lo pessoalmente, Michael - disse afavelmente Del Bianco ao vê-lo. - Vou lhe dizer exatamente qual informação quero que extraia do meu amigo aqui.

Michael começou a desconfiar que o paciente talvez não fosse exatamente um amigo do seu cliente.

- A possessão não é para orientar o trabalho dos médicos? - Questionou.

- Nada; - desdenhou Del Bianco. - Lorenzo teve morte cerebral declarada. Só não mandei desligar os aparelhos porque preciso que recupere algo importante da cabeça dele.

Michael olhou para trás, mas a porta do quarto estava bloqueada pelos dois guarda-costas, braços cruzados.

- Faça o seu trabalho - ordenou Del Bianco, estendendo-lhe um pedaço de papel.

Eram as informações que teria que pedir a Rodney que recuperasse.

* * *

- Rodney, você está aí? - Indagou Michael, sentado ao lado da cama hospitalar onde o paciente em coma jazia, ligado a instrumentos de monitoramento.

Por um instante, nada aconteceu, mas subitamente Lorenzo abriu os olhos e os cravou no Caça-Fantasmas.

- O que quer saber?

Del Bianco bateu palmas, polidamente.

- Você é realmente bom, Michael, tenho que reconhecer. Faça as perguntas!

- Não é necessário - disse Rodney/Lorenzo, encarando-o. - Me dê papel e caneta, vou escrever para facilitar.

Del Bianco passou um bloco de recados e uma caneta para Lorenzo, que começou a fazer anotações que logo encheram uma folha inteira. Ao terminar, colocou o bloco nas mãos de Michael.

- Guarde isso, conversamos depois - recomendou.

- Ei, isso me pertence - atalhou Del Bianco, estendendo a mão para pegar o bloco.

Lorenzo foi mais rápido e o segurou pelo pulso, começando a apertar com força.

- Me solte! - Guinchou Del Bianco.

- Acho que vou gostar de ver vocês três lá embaixo - disse Rodney/Lorenzo com um sorriso feroz.

Como se tivesse o corpo feito de molas, deu um pulo da cama, e usando Del Bianco como se fosse uma bola de boliche, atirou-o contra os dois guarda-costas que haviam saído da frente da porta.

- Corre, Michael, eu dou conta deles! - Gritou Rodney.

Michael não pensou duas vezes. Em segundos, passou pela porta e chegou à recepção da clínica, onde os funcionários o encararam atônitos.

- Melhor vocês chamarem a polícia! - Alertou, antes de sair para a rua. - Se isso não for o apocalipse zumbi, não sei mais o que poderá ser!

E fez sinal para um táxi que ia passando.

- [20-09-2021]