CÉREBROS DERRETIDOS

Guilherme muito cedo descobriu sua habilidade. Ainda criança, a conduzir o carrinho de compras no supermercado pela primeira vez, olhava uns brinquedos distraidamente, quando sentiu o baque em seu corpo.

Um garoto maior do que ele havia batido um carro no outro, de forma proposital, o que se evidenciava em seu olhar zombeteiro e provocador. Não satisfeito, o agressor ainda perguntou: “e aí, cara? Sai logo da frente!”

Guilherme olhou para o valentão com imensa raiva. Não deu outra. Seu desafeto levou as mãos à cabeça e começou a dar gritos de dor enquanto dobrava o corpo e estirava-se no chão do mercado. Feliz da vida pelo desfecho pressentido, Guilherme desviou seu carrinho e passou com ar de triunfo pela vítima do merecido castigo, vendo-a gemer e estrebuchar no solo.

Tempos depois, na escola, ele e dois colegas de turma viram-se assediados por um dos grandalhões da última série que tinham prazer em maltratar os alunos menores. Guilherme não titubeou. O receio inicial converteu-se em raiva fulminante, que dirigiu com seu olhar para o brutamontes.

Sentiu grande prazer em ver o inimigo moribundo a contorcer-se no chão empoeirado e a sufocar-se ainda mais com a poeira. Lembrou-se do provérbio ensinado pela professora aos alunos dias antes: o pó que fizeres na estrada cairá em tua cabeça. Quem mandou o brucutu bulir com ele e seus amigos?

Sem que guardasse qualquer remorso nesse particular, a cena repetiu-se quatro ou cinco vezes ao longo da infância e da adolescência do jovem. Para sua sorte, as circunstâncias sempre se caracterizaram pela legítima defesa diante de indesculpáveis e covardes tentativas de agressão. Possivelmente, nenhum tribunal, nesta ou em outra dimensão, chegaria a condená-lo por derreter os cérebros dos ameaçadores algozes. Em sua defesa, frise-se também que jamais fulminou algum de seus professores, irritado por eventual nota baixa.

Guilherme teve sorte, ademais, em nunca despertar a mínima suspeita de ser o autor dos derretimentos de miolos que intrigaram mais de um médico. A exemplo de outras ciências… inexatas, a Medicina não encontrou explicação adequada para as estranhas mortes.

À medida que se tornou adulto e adquiriu crescente experiência, o especialista em derreter cérebros aprendeu a melhor controlar suas iras ocasionais, passando a extravasá-las com admirável espírito de seletividade. Soube poupar, dessa forma, seus pais, irmãos, parentes e amigos do olhar punitivo que possui.

Louve-se, em especial, o comedimento que invariavelmente demonstrou em seus amores. Tratou namoradas, companheiras e amantes com elevadas doses de compreensão e desprendimento, jamais cedendo a um acesso de raiva nas inevitáveis rixas que a intimidade maior e real tende a produzir. Nas raras vezes em que suspeitou de traição, simplesmente retirou o time de campo, sem acusar o golpe.

A única mulher penalizada por Guilherme fez por merecer o castigo. A famigerada personagem impingiu-lhe plano canhestro de telefonia, ou de saúde (persistem lacunas de informação mais fidedigna a esse respeito), o que importa é que o cidadão viu-se insuportavelmente ludibriado e lesado em seus direitos. Não conseguiu, pois, conter a fúria arrebatadora que dizimou aquela vigarista. Consta que até os cabelos da falecida apresentaram sinais de chamusco, fato sem precedentes ao que se saiba.

Pode ser, entretanto, que o derretimento dos miolos de um sórdido empregador de Guilherme haja sido o mais extremo de todos os casos. Como o homem era calvo, a perícia tão-somente registrou o exacerbado estado de cozimento do cérebro, sem tocar na situação dos exíguos pelos restantes na nuca.

Esse tipo, mais do que qualquer outro, angariou forte repulsa de Guilherme, não só pelas maldades diretas que lhe fez, mas também pelas constantes desfeitas com os demais colegas da empresa. Patrão perverso e temido, que atemorizava a todos e perseguia uns tantos de modo sistemático.

Seu descalabro ultrapassou os limites ao aprontar a demissão, por “justa causa”, da mais antiga servidora da companhia. A pobre senhora não resistiu ao infarto poucos dias após o ocorrido. Logo a seguir à partida da injustiçada, o temível demitente foi encontrado morto em sua sala, com expressão desesperada e secreções já solidificadas nas narinas, ouvidos e boca.

Agora cinqüentão, Guilherme ambiciona servir-se de sua habilidade peculiar para punir outros membros da escória humana cotidianamente denunciada pelos meios de comunicação ou comentada a boca pequena nos círculos sociais que frequenta. Até então, ele apenas derretera os miolos das figuras desprezíveis que cruzaram seu caminho.

Apraz-se com a ideia de converter-se em justiceiro de tantas roubalheiras e perversidades que permanecem impunes. Não obstante, descrê da possibilidade de chegar próximo dos figurões sobre os quais recaem acusações e fortes indícios de velhacaria e malvadeza. Sem falar nos meliantes de paradeiro desconhecido.

Resolve experimentar algo diferente. Pensar em tais criminosos e dirigir-lhes sua raiva mentalmente. Durante sucessivas noites, concentra-se nessa atividade de maneira empenhada. A estratégia falha, contudo. Os alvos de sua ira telepática escapam incólumes.

Considerável é a frustração do pretenso herói. Desaponta-se com sua impotência inicialmente. Depois, resigna-se à realidade dos fatos.

O cansaço da idade costuma ser fatal, no entanto. Certo dia, Guilherme irrita-se consigo por um erro à toa e morre com o cérebro derretido.

Agosto 2021.