Inconsequências

CAPÍTULO - I

Complexidade

Desci na Rodoviária de Salvador. Não tinha a menor noção do que me esperava naquela cidade a partir daquele momento. Eram quase seis horas da manhã. Já tinha estado naquela capital anteriormente, mas em momento totalmente distinto e adverso daquele ali agora. Há quase três anos, ali estive de férias, agora era o contrário, eu estava ali para me empregar, atrás de uma colocação profissional, já que em Belo Horizonte, que era onde eu residia e antes tinha um emprego na região, o mercado de trabalho estava sofrível, as empresas continuavam demitindo e não havia nenhum horizonte favorável. Tinha que dar um jeito naquilo tudo, teria que sair daquele círculo vicioso, fugir daquele marasmo, daquela prostração. Deveria ir atrás de uma empregabilidade qualquer.

A primeira providência que teria que ser tomada seria saber onde pernoitar. Tinha que procurar uma pensão ou quem sabe um hotel, desde que tivessem preços módicos. Não poderia jamais esperar a noite para assim proceder. O dinheiro que tinha no bolso era proveniente de uma cota de um clube da minha cidade que tive que vender abaixo do preço, e um pouco que me restava de meus direitos trabalhistas de quando fui demitido da fábrica de tratores da Fiat, em Contagem, há mais de dois anos.

Não temia, não tinha receio em dirigir-me às pessoas para obter informações onde se localizavam os hotéis mais baratos naquele lugar, pensões, posto que, era mês de janeiro, mês de alta temporada turística, e aquela era uma cidade turística, de veraneios, sendo assim nem existia a chance de poder contar com alguma acomodação mais satisfatória. Disseram-me que hotéis naquele padrão se localizavam em maior escala na Cidade Baixa, em um bairro chamado curiosamente pelo nome de Calçada.

Segui então para aquele lugar. Informava-me daqui e dali, e estava eu agora diante daqueles hotéis que por sinal, se existissem classificação para eles, teriam quantidade de estrelas negativas. Hospedei-me por três dias em um, e de imediato já me foram solicitados seus pagamentos antecipados. No dia seguinte a minha chegada à cidade, eu já estava em mãos com cópias de diversos currículos meus para serem distribuídos para quais empresas fossem. Na realidade eu já tinha até uma profissão, desenhista técnico, mas naquele momento eu trabalharia em que aparecesse, no que viesse. Por dois dias percorri todas aquelas empresas que se situavam nos arredores daquela capital, sendo que, em todas elas entregava meu currículo e ficava na expectativa de quem sabe, ser convidado para alguma entrevista ou algum teste técnico.

Fiz amizade com o porteiro daquele modesto hotel e ouvi dele que o setor que mais empregava naquele estado era o petroquímico, e que existia um polo industrial neste ramo em uma cidade próxima de nome Camaçari. Três dias depois de eu estar em solo baiano, resolvi então ir onde localizava aquele polo, e tive informações que hotéis com preços amenos eu os encontraria em Dias D’ávila, distrito que, assim que lá cheguei, fiquei sabendo que seus cidadãos estavam querendo se emancipar da cidade de Camaçari. O polo petroquímico ficava entre aquelas duas localidades.

Quando ali cheguei, via-se que Dias D’ávila não tinha mesmo como ser considerada nada mais além do que um simples distrito, e que se distanciava 60 km da capital Salvador. Era chamada de “Cidade das Águas”, e assim denominada por causa de suas fontes de águas e da lama das águas de um rio ali de nome Imbassaí, lama essa que era considerada por muitos como tendo propriedades curativas, terapêuticas, de uso medicinal. Tinha um clima afável, de um leve frescor e muito agradável, o que fazia daquele lugar um convidativo local de descanso, de lazer, e principalmente, propício para tratamento de saúde, trazendo para si, veranistas de todos os lugares, motivo pelo qual tornou-se uma Estância Hidromineral.

Dias D’ávila era, e é até hoje, considerada uma cidade dormitório, pois a maioria de sua população são de pessoas de outras cidades que ali estavam para trabalhar naquele polo petroquímico. Por causa de sua proximidade com a capital, os soteropolitanos que trabalham naquelas empresas do polo preferem ir e voltar todos os dias, em vez de morar naquela cidade, ou mesmo Camaçari. Todas as empresas de porte ofereciam confortáveis ônibus para esse fim. Hoje a cidade desenvolveu, expandiu, e a sua população é alguns milhares de vezes maior que naquela época. Virou uma cidade “grande”.

Ali existiam diversas mansões que ocupavam quarteirões inteiros. Estilos casas de campo. Eram magníficas e portentosas casas de veraneios com piscinas, garagens para vários carros, campos de futebol gramados, belos jardins, e com aqueles diversos metros quadrados de área construída.

Mais tarde passou a existir entre essas casas algo em comum. Estavam em sua maioria abandonadas, muitas até em ruínas. Pareciam que os bairros onde se localizavam tornara-se um lugar fantasma. Parecia como naqueles filmes onde um lugar é inteiramente abandonado em virtude de alguma doença, peste ou alguma epidemia. Um local totalmente negligenciado, que não recebia atenção ou trato algum, como se ali existisse algum tipo de gás tóxico, ou mesmo pelo vazamento de algum produto radiativo. E foi esse foi o retrato de alguns bairros ali, que antes eram nobres, e que os encontrei naquele estado.

Via-se claramente que aquelas mansões não lhes eram dadas mais nenhuma manutenção, estavam totalmente entregues ao abandono. E a razão para todo aquele desprezo foi a construção em seus arredores de um polo petroquímico. Construir um polo petroquímico, símbolo maior da poluição, principalmente a atmosférica, próximo a uma Estância Hidromineral, seria um contra senso aqueles ricaços insistirem em manterem ali aquelas suas casas de campo. E foi o que fizeram. Deixaram-nas ao acaso, à sorte, ao Deus-dará. Porque aqueles ricaços insistiriam em morar em um local totalmente afetado por uma extrema poluição?

Simplesmente eles abandonavam toda aquela ostentação e as deixavam sob a responsabilidade de caseiros. Óbvio, um abandono integral, por inteiro, faria com que elas fossem invadidas, e no mínimo seriam furtadas suas portas, telhas, janelas e demais materiais os quais serviriam de construção. Isso sem contar com a possibilidade de alguém as invadir para morar, nunca mais sair, o que provavelmente deve ter ocorrido com diversas delas.

Na realidade tudo aquilo quando observado por um cidadão comum, o estado e o visual daquelas casas davam até dor no coração, mas para aqueles abastados elas se tornaram objetos descartáveis, desprezíveis. Vale salientar que em sua quase que totalidade seus proprietários eram senadores, deputados, vereadores, ou outro tipo de sangue suga qualquer do erário. Era o ano 1984, os militares continuavam dominando o cenário político nacional com seus generais, e naquele estado, seu principal líder político era um aliado de primeira hora daqueles mandatários de fardas cor verde oliva, como também de outros golpistas de 64. E carregava consigo uma súcia de políticos oportunistas que por anos já dilapidavam o patrimônio público da Bahia.

Procurei então um hotel ou mesmo uma pensão para hospedar-me. No centro da cidade tinha um hotel naqueles moldes e que cabia dentro do meu enxuto orçamento. Chamava-se Hotel São Luíz. Era um casarão alugado para uma senhora curitibana. Nele morava toda sua família. A proprietária do estabelecimento, suas duas filhas, a irmã, e seus dois irmãos.

Seria aquela a minha primeira noite no hotel e na cidade. No outro dia pela manhã acordaria cedo e iria procurar uma maneira de ir até aquele polo petroquímico, já que me informaram ser fácil conseguir caronas para aquele lugar.

Veio a noite e dei uma volta por aquela localidade, obviamente em seu centro, já que um ou outro bairro ali existente parecia se distanciar da área central e o percurso para se chegar até eles eram perigosos, isso pelo fato de que teria que passar por trechos isolados e sem iluminação pública.

Como não poderia deixar de ser, era a praça da igreja católica o centro da cidade. Tinha um potente alto-falante dependurado num daqueles postes daquela grande pracinha onde dominava a areia. Isolado, um cajueiro aqui, outro ali. Nas laterais, e em todo seu perímetro, algumas palmeiras. E só. No interior daquela praça, e em vários pontos, existiam mesas redondas com quatro bancos, tudo feito de cimento. Nelas, em seu centro, tinham sidos pintados tabuleiros para se jogar damas, mas só se viam pessoas jogando dominós. No centro exato daquela praça, uma estátua em tamanho natural do político que a praça levava seu nome: Antônio Carlos Magalhães. Nada ali era cultivado, nem mesmo grama. Só aquela areia fina e escura.

Daquele alto-falante se ouvia a canção “Me dê Motivo” que, diga-se de passagem, era uma bela interpretação de Tim Maia. Ela disputava em execução com a não menos bela, “Todo Azul do Mar” do grupo mineiro 14 bis, e que, como bem disse o Milton e Tunai naquela sua música, “...certas canções que ouço, cabem tão dentro de mim...” com certeza, em decorrência de um marcante episódio ocorrido comigo naquele lugarejo, “Todo azul do mar” coube também “bem dentro de mim”.

Quando se seguia em direção a saída daquele lugarejo para Salvador, existia um bar onde serviam desses sanduíches corriqueiros, e era também o lugar que se vendiam passagens na cidade. Havia lá no fundo um móvel quadrado, velho, em forma de guichê, de cerca de um metro e setenta de altura, de cor escura, opaca, desgastada, feito de compensado. Tinha um espaço reduzido para se caber ali dentro apenas um adulto devidamente assentado.

Na frente daquele guichê, sua parte de cima era de vidros transparentes. No centro tinha uma pequena janela em forma de meia lua, que era por onde recebiam o dinheiro e entregavam aquelas passagens. Ao seu lado, e encostado na mesma parede, havia um conjunto de cinco cadeiras emendadas umas a outras por uma barra de metalom soldada por debaixo delas. Construídas em ferragens, tinham estofados das cores verdes e totalmente desgastadas, assim como rasgadas. No cantinho da parede daquele lugar, tinha um pequeno cômodo de cerca de um metro quadrado, que era o único sanitário dali. Naquele momento, dentro daquele comércio não tinha ninguém, excetuando aquela senhora já um pouco idosa, que levava um óculos na ponta de seu nariz, e que estava dentro daquele guichê de cabeça baixa parecendo ler um exemplar da bíblia. Na entrada, e do seu lado de fora, tinham alguns vira-latas que dormiam perto de sua porta, os quais, para se adentrar àquele recito, tinha que pedir licença a eles, e que, além desses momentos, só eram incomodados por aqueles mosquitos que pousavam ora neles, ora nos restos de papéis sanduíches untados de ketchup e maionese que estavam espalhados por aquele passeio do lado de fora.

Na realidade ali era o ponto de ônibus central da cidade para quem queria "viajar para a Bahia". Sim, não me enganei aí na citação dizer que "iriam viajar para a Bahia", pois, era assim que os moradores daquela cidade diziam, quando queriam, ou viajavam para Salvador. Depois me acostumei com aquilo, e vi que era normal todo mundo ali falar daquele jeito. Naquelas outras cidades da grande Salvador que também morei, o costume era o mesmo. Digamos, fazia parte da cultura daquele povo. Estranho pra nós, comum pra eles. Seria como se eu, em vez de dizer que viajaria para Belo Horizonte, que eu dissesse que estaria viajando para Minas Gerais.

Um pouco mais embaixo existia um barzinho, e esse já era por demais aconchegante. Era uma espécie de um quiosque grande com dois espaços. Um interno e uma varanda. O seu interior era coberto com com piaçava trançadas em ripas de madeira. Sua varanda era um puxadinho que acompanhava aquela mesma cobertura. Ali naquela varanda todas as vigas, caibros, enfim toda a estrutura daquele lugar era feita com eucalipto tratado e envernizado. Naquele momento caía uma chuva fina. Quase que uma imitação de um brando sereno. Era um local agradável, atraente, e diferenciava dos outros bares e quiosques daquela praça. Aquele seu visual rústico dava aquele lugar uma aparência aprazível, de um lugar bucólico, ingênuo, onde os casais namorariam, comeriam e beberiam ali, esperando apenas que a noite chegasse para irem embora para suas casas, já que naquela cidade parecia não existir nada mais pra se fazer depois que o dia virasse noite. Era um bar que eu sabia que não iria frequentá-lo, já que o dinheiro que eu tinha pra gastar era quase que exclusivamente para alimentação, e com diárias em pensões e hotéis baratos.

Já do outro lado daquela praça existia aquele bar que a juventude da cidade gostava de frequentar sentando-se no muro que ficava bem em sua frente, e de não mais que um metro e meio de altura. Acomodavam-se ali naquele muro de um jeito ou de outro, e ficavam se paquerando naquele apático lugarejo ao som de Tim Maia, que naquelas suas lamentações dizia “que estava indo embora, que não fazia sentido viver assim” ... Depois dava continuidade naquilo tudo com o 14 Bis dilacerando ainda mais os corações da galera. Inegavelmente aquele disc jockey tinha bom gosto musical.

Veio então a hora de dormir e iria me recolher àquele mísero e desconfortável quarto daquele simplório hotel. A quase que a totalidade das casas naquela cidade não tinham forros. Em cima suas telhas, e o cidadão embaixo, nada mais. Óbvio, tudo aquilo totalmente suscetível a chuvas e goteiras. E bichos. Era o estilo dos casarões daquela cidade. Eram casas de campo, e aquela minha hospedaria era também um casarão daqueles. Às vezes, e isoladamente avistava-se naquela cidade um ou outro prédio de um ou dois andares, simples, feito de alvenaria, ou ainda mais raramente até de três andares, habitações que não copiavam aquele estilo campestre das casas do lugar, o que se poderia deduzir que eram construções de nativos, de pessoas que existindo ou não ali o polo petroquímico, elas já estavam ali instaladas, e ali continuaram residindo, sem aquela mesma preocupação daqueles endinheirados.

Cheguei ao meu aposento, e antes mesmo de acessar por completo aquele quarto, ao abrir sua porta, já senti aquele forte cheiro de mofo. Por precaução, mantive ainda meus dois pés naquele corredor com aquela porta semiaberta. Apalpei internamente sua parede na altura dos meus olhos fazendo movimentos circulares bem próximo à aduela daquela porta até encontrar um interruptor, e acendi sua luz. Havia aquele cuidado de não se entrar ali no escuro, já que quando se passava do lado de fora daquele casarão, via-se que, no fundo daquele meu quarto tinha um lote abandonado abarrotado de entulhos, como telhas velhas, quebradas, molduras apodrecidas de janelas de madeira, tijolos usados, um cajueiro todo tomado por ervas de passarinho, e outros amontoados de entulhos. Mais ainda no fundo, resto de um barraco que grande parte dele havia sido demolido. E muito mato. Muito mato mesmo. E alto. Era a verdadeira imagem de um terreno desleixado. Abandonado. Já merecia ter tido a interferência de algum órgão público qualquer, mas a Prefeitura de Camaçari parecia conivente com tudo aquilo.

A medida que eu ia adentrando àquele quarto, mais o cheiro de mofo aumentava. Era preciso abrir a janela. Mas como abrir a janela daquele quarto àquela hora tendo como vizinho tudo isso anteriormente narrado? O quarto deveria ter cerca de um metro e meio de largura, e duas vezes aquilo de comprimento. Não passava disso. No centro daquela parede lateral, do lado oposto onde se situava aquela cama de solteiro, existia uma trinca na parede ocasionada por água de chuva, vindo de uma goteira, e ela se estendia por toda aquela parede abaixo, até se encontrar com aquele chão de tacos velhos, pregos à vista, que devem ter vistos uma camada de cera pela última vez quando aquele lugar onde se localizava o polo petroquímico, era ainda uma várzea.

Pelas marcas naqueles rodapés, já que naquele quarto não tinha ralo, aquela água deveria ali se empoçar e se infiltrar naqueles vértices causando aquele moro, já que um suspeito verde com aparência de lodo se acumulava naquele canto.

Naquelas mesmas paredes que um dia deveriam ter sido pintadas com uma tinta branca à base de cal, existia uma infinidade de pernilongos pousados. Parecia ser ali seu habitat natural. Era um exército deles. Para eles, ali seria como se estivessem num restaurante de luxo a espera somente do sangue do próximo cliente daquela acomodação. Terreno baldio do lado, latas e pneus velhos que deveriam acumular água de chuva, denso matagal, um quarto úmido, e por fim, e à noite toda, o corpo de algum desavisado que procurasse por aquele hotel, para que eles pudessem saborear seu sangue por toda madrugada. O “Principado de Mônaco” no Brasil para pernilongos seria sem dúvida aquele quarto de hotel. Sim, aquele quarto que foi escolhido para eu pernoitar por toda aquela semana. Lugar predileto para aqueles pernilongos passassem seus verões. Seus verões e as outras estações do ano. Aqueles "monstros" quando ali adentrei, muitos deles se davam ao luxo de nem se incomodarem com aquela pessoa que lhes eram estranhas, e insistiam em continuar pousados naqueles mesmos seus lugares, como prova de uma afronta, assim demonstrando que a figura do homem não os afugentava, e muito menos os intimidavam.

À medida que se dava um passo a mais avançando para o centro daquele quarto, diversos outros se esvoaçavam quando se tocava em algum objeto onde eles estavam pousados. Para completar aquele ambiente que lhes eram rigorosamente apropriados, os móveis do quarto, uma pequena mesinha, uma cadeira de madeira, e um guarda-roupa, eram todos escuros. Não tinha ali nenhum inseticida, e nem onde adquiri-los, já que as portas do comércio daquele lugar, todas elas cerravam-se impreterivelmente às seis horas da tarde.

Eu não tinha conhecimento da infestação daquela espécie de mosquito naquele local. Não que eu fosse ingênuo o suficiente para pensar que estaria livre daquela praga naquela cidade, mas pernilongos com aquela particularidade não, não tinha a menor noção. Na verdade, não se sabia se aquilo eram besouros daqueles que aparentam ser um micro rinoceronte com aqueles chifres, e que os encontravam muito no pátio e gramas da igreja católica da minha cidade, quando ali não era completamente calçado, ou se eram mesmos pernilongos, de tão graúdos. Na realidade era para temê-los não pelos seus aborrecimentos naturais que nos causam em toda uma noite, não por praticarem aquela penúria em nossos ouvidos, e sim porque, com aqueles seus tamanhos, eles não possuíam ferrões puro e simples, e sim eram dotados de verdadeiras e mortíferas lanças pontiagudas.

Em um canto, e no alto, no encontro de duas daquelas paredes, tinham muitas teias de aranha. Entranhadas nelas, um ou outro resto de pedaço de asa, o que deve ter sido o que sobrara de um ou outro inseto que serviram de refeição àquele casal de aranha que ali naquele momento tentavam se passar por mortas.

Tomei então uma drástica decisão. Iria dormir debaixo daquele cobertor surrado, curto e cheirando a mofo que encontrei dentro daquele velho e de portas quebradas guarda roupa. E debaixo dele me esconderia à noite inteira, mesmo naquela cidade fazendo um calor infernal. Era verão, e verão na Bahia sempre foi famoso por ser conhecido como uma estação escaldante. Para minimizar ainda mais o efeito dos ataques daquelas monstruosas criaturas, iria dormir vestido com aquela minha surrada calça jeans, do jeito que cheguei da rua, sem nem mesmo tirar aquele desgastado tênis. Foi a maneira que encontrei de não “dar sopa”, ou melhor, sangue para aquelas abomináveis criaturas.

Assim que me deitei veio outra decepção. Aquele colchão era fino e o peso do meu corpo fazia com que eu praticamente deitasse diretamente sobre o estrado da cama. Sentia que as coisas não estavam assim tão confortáveis para mim. Pernilongos que se confundiam com besouros, e um colchão que me fazia ficar praticamente deitado numa grade de madeira me fazendo sentir um faquir. E além de tudo, um cobertor que parecia ter sido tirado de um baú que fora aberto pela última vez quando Cabral aportou-se naquele estado, e pernoitou naquele hotel. Mas era o que tinha tocado para mim, eram as acomodações do tamanho do dinheiro que eu tinha no bolso. Era esquecer tudo aquilo e dormir, pois no outro dia eu iria cedo percorrer todo aquele Polo Petroquímico de Camaçari distribuindo meus currículos.

Achei que de todos aqueles males, um deles viria pra o bem, e que seria o meu cansaço, e consequentemente seria vencido pelo sono, e nem sentiria tanto aquele desconforto ao dormir. Engano meu. Eu não conseguia dormir naquele colchão, e o único recurso seria estendê-lo naquele chão mofado e cheio de tacos podres com aquelas cabeças de pregos que penetravam naquele colchão, e um chão demasiadamente empoeirado. Joguei aquele colchão por aquele piso. A preocupação com os pernilongos agora tinha ficado em segundo plano, pois o calor era intenso, e assim não consegui ficar debaixo daquele cobertor. Na realidade era um cobertor que faria com que eu escolhesse; ou cobria do meu joelho tampando a minha cabeça, ou do meu peito até a ponta do meu dedão maior do pé, já que aquele era o que se podia chamar de um "cobertor bicicleta", que ora as mãos o puxam pra cima, ora os pés o puxam pra baixo. Além de tudo, fino, e cheirando a mofo. Mofo, e um não tão distante cheiro de urina. Além de marcas de muito uso.

Óbvio que nem passava pela minha cabeça abrir aquela janela, já que eu conhecia bem o filme que ali fora se passava. Além do mais, ventilador no teto ou no quarto era artigo de luxo para os clientes mais endinheirados que ali pagavam por melhores acomodações. Nenhum daqueles quartos do hotel tinham ar condicionado. Eu teria que ambientar-me àquele que me era oferecido.

Dormi.

Dormi mesmo sabendo que eu seria um banquete especial para aqueles repugnantes insetos. Mas dormi.

Num determinado momento daquela noite, eu já vencido pelo cansaço e ignorando aqueles “monstros”, não sei se imediatamente após eu ter adormecido, ou se bem mais tarde, sei lá, pois o dia ainda escuro, a luz apagada, já que aqueles pernilongos atacavam tanto com a luz acesa ou apagada, eu sem aquele cobertor, pois o calor era insuportável, e entre sofrer com o calor, optei por aquela epidemia de insetos, algo totalmente inesperado aconteceu. Senti que fui acordado por uma pancada em meu peito. Como se alguma coisa tivesse sido atirada contra mim, algo um tanto quando pesado, mas fofo, ou mesmo caído daquele teto sobre mim. Foi uma pancada acompanhada de leves e inexplicáveis arranhados, e uns pequenos chiados. Caiu sobre meu peito, e além do mais, caminhou ligeiramente por ele e sobre o meu rosto. Imediatamente levantei-me e acendi a luz daquele lugar. Quando olhei, inacreditavelmente, vi subindo pela parede uma enorme ratazana. Isso mesmo, o que caiu sobre meu peito e passeou pelo meu rosto tinha sido aquela ratazana que agora assustada fugia subindo por aquela parede.

Ratazana subindo pela parede? Sim, ratazana subindo pela parede!

Jamais imaginaria que ratazanas subissem por paredes. Foram dadas a elas também esse poder? Só de serem ratazanas não seria o suficiente? Então, porque não as dotar também de asas, assim teríamos esses repulsivos e abomináveis animais não só pelos bueiros de ruas e tetos de casarões numa determinada cidade do interior da Bahia, como também pousados em fios e árvores disputando espaços com andorinhas e beija flores. Ratazanas não poderiam jamais conseguir subir em paredes, assim não cairiam no peito das pessoas e passeariam pelos rostos de clientes em hotéis de quinta categoria. Deveriam contentar-se em serem apenas rastejantes, e sendo apenas rastejantes, já seriam os seres mais detestáveis da face da terra.

Qual outro lugar no mundo poderia existir um ambiente mais apropriado para aquela ratazana e aqueles pernilongos que um casarão daquele sem manutenção, sem forro, com aquele enorme terreno baldio ao lado coberto de lixo? E o mais curioso: porque aquela ratazana teria escolhido para cair justamente em meu peito, e não no peito de outros clientes que ocupavam quartos iguais àquele meu? Às vezes até me perguntava - eu estava no interior da Bahia ou estava na cidade de Itu, onde tudo é de um tamanho exagerado? Pernilongos do tamanho de besouros e ratazanas que são confundidas com gambás. O certo é que o restante daquela noite foi passado de luz acesa, sem fechar os olhos em momento algum, monitorando e vigiando ratazanas que caiam de telhados de casarões naquela comunidade do interior da Bahia de nome Dias D’ávila. Definitivamente aquela teria sido a pior noite em toda minha existência. Não sei até quando que posso ter errado tanto em minha vida para que tudo aquilo acontecesse comigo em um só dia. No dia seguinte, e óbvio, por ser de dia, o passei todo dormindo. Não tinha como isso não acontecer. Quem não dorme na noite anterior, está fadado a dormir quase que o outro dia todo. Desde que ratazanas não queiram circular por telhados de casarões também durante o dia, para que o cidadão não seja acordado com uma delas caindo em seu peito e passeando pelo seu rosto.

Depois de ter acordado, nesse mesmo dia a tarde, pedi a proprietária dali que me transferisse de quarto, que me colocasse em um daqueles que tivessem forro, ou então que aceitasse naturalmente a minha renúncia àquele estabelecimento, e que ela me devolvesse minhas diárias que lhes antecipei. Que desaforo! Pagar para pernoitar em um quarto daquele, e o que é pior, e ainda pagar adiantado? Queria sair dali. Eu tinha que sumir daquele lugar. Não poderia conviver com ratazanas. Jamais aceitaria que fosse visitado por aquele bicho nojento em noites seguintes.

Ela disse-me que não tinha outro quarto e se negava devolver meu dinheiro. Argumentei-lhe que eu não tinha condições de continuar em um hotel em que ratazanas "choviam" dos telhados sobre hóspedes, enquanto dormiam. Nem lhe disse nada sobre pernilongos e colchões, aquilo era desprezível naquele momento. A prioridade era ficar livre daquele assombroso animal.

Com muito custo ela me devolveu o dinheiro daquelas diárias que eu as havia adiantadas, e fui então para aquela praça. No último caso dormiria ali mesmo naqueles bancos ou me hospedaria em outro hotel, o que não era lá nada aconselhável, já que todos os outros eram relativamente muito mais caros. Não se deve esquecer que esses outros hotéis foram construídos quando a cidade gozava ainda do fato de ser conhecida como uma Estância Hidromineral e cheia de turistas, hotéis de caras construções, de alto nível, pois nem se vislumbrava a possibilidade de ali um dia construir um polo petroquímico. Eram hotéis luxuosos, com infraestrutura de hotéis de quatro e cinco estrelas. Tiveram que continuar funcionando, como que para aliviar um pouco o prejuízo, mesmo a cidade perdendo aquele status e aquela fonte de renda turística. De repente, às vezes, recebia ali um ou outro profissional vindo de outro estado, como um gerente ou um diretor, ou mesmo um engenheiro que viesse de outras cidades fazer algum tipo de trabalho naquele polo, e que optasse por não hospedar em hotéis em Salvador, porque era distante, e em Camaçari, porque a cidade nada oferecia. Deveria ser raro um caso desse.

Eu queria naquela época da construção daquele polo estar ali para ver aqueles políticos corruptos travestidos de empresários, ou aqueles empresários corruptos travestidos de políticos, serem expulsos daquele local por causa do progresso que se avizinhava. Sentiria por eles a mesma repulsa com que sentem quando assistem uma retro escavadeira passando por cima de barracos numa invasão. Fico imaginando o dinheiro público jorrado em troca da expulsão daqueles crápulas. É por essas e outras que aquelas casas, aqueles palacetes poderiam ser abandonados, abdicados, pois seus proprietários já tinham sido, de uma forma ou de outra, recompensados financeiramente por tudo aquilo, e assim aquelas mansões poderem ser sumariamente descartadas. Aqueles barões foram expulsos numa espécie de “desapropriação branca”, desapropriações indignas e obscenas, recebendo rios de dinheiro através do estado, ou melhor, recebendo deles mesmos, afinal de contas, eles eram o próprio estado.

Vale salientar que em números rigorosamente inferiores, quase que desprezíveis, existiam ali também, segundo informações, outros empresários, profissionais liberais, entre outros trabalhadores que faziam jus às suas suntuosas moradias, àqueles seus palacetes, já que suas mansões eram frutos de seus esforços, de seus trabalhos. Eram cidadãos sérios, honestos, progressistas, razão pela qual o que foi dito aqui anteriormente não encaixariam em seus perfis. Esses faziam por merecer não somente aquelas suas casas, como até mesmo, quem sabe, após criteriosos estudos, uma considerável reparação financeira do estado por abandonarem aquelas casas, se é que isso era uma coisa legal. Creio que não.

Apanhei minha mochila e saí. Ficou combinado que aquela proprietária me devolveria o valor daquelas diárias restantes pagas com antecedência, e descontaria a metade daquela diária em curso, já que o acordo foi feito depois das seis horas da tarde. Na realidade não foi nada fácil convencê-la de devolver-me essa ou aquela diária, e ela só cedeu porque aquele assunto, o da ratazana, predominava nas conversas de quem frequentava um bar anexo àquele hotel, e que existia ali do lado de fora, e quase que exclusivamente frequentado pelos clientes daquele hotel, ou de quem ali iria se hospedar. Apesar de anexo àquele casarão, era independente, e de outro proprietário. Com certeza o medo de sua proprietária seria que todos aqueles novos hóspedes, em sua maioria oriundos de empreiteiras, e que a todo o momento ali chegavam para se hospedarem, tomassem conhecimento que os principais frequentadores de seu hotel, eram aquelas ratazanas de esgoto que choviam de seu telhado. Já tinha ouvido que choviam pedras, granizos e tudo mais. Até canivete. Mas ratazanas, nunca.

CAPÍTULO – II

Atônito

Saí sem saber para onde ir. Nem bem havia chegado naquela cidade e já tinha tido meu primeiro contratempo, meu primeiro dissabor. Não sei, aqueles que tanto me criticam dirão que sou uma pessoa de difícil relacionamento, que não canso de provar para quem quer que seja que sou uma pessoa impulsiva, impaciente, que ajo de maneira irrefletida, precipitada, e que discuto por causa de coisas tão banais e desprezíveis. Não irá faltar também aquele que dirá que saí daquele hotel por uma razão tola, fútil, por causa de um acontecimento corriqueiro, e que eu deveria desconsiderar ocorrências assim tão rotineiras. Eu perguntaria: Quarto de hotel de cidade onde chove ratazana de madrugada é normal?

Com aquela minha mochila nas costas e assentado naquela pracinha, eu já trabalhava com a hipótese de ter que pagar uma diária naquele hotel quatro vezes mais cara. Precisava dormir, e daquela vez não queria a companhia de ratazanas. Imaginava que era bem provável que aquele hotel que estava ali em minha frente teria lá seus pernilongos besouros, eles provavelmente infestavam toda a região, mas só o fato dele ter laje, ou mesmo forro, já me tranquilizava. Aquilo já diminuía o pavor de ser acordado novamente por um ratão daquele tamanho subindo na minha cara. E por serem suas diárias tão caras, deveria existir um ou outro quarto com preço mais acessível, em troca daqueles com ares condicionados. Quem sabe até um com um simples ventilador. E nem precisava ser daqueles de teto, poderia ser desses comuns que se carrega de um lado para o outro. Esse singelo aparelho já resolveria meu problema com aqueles pernilongos.

Até então era cedo, nem era hora de se desesperar, entrar e assumir os custos daquela hospedagem. Fiquei ali naquele local mais isolado daquela pracinha principal assentado em um daqueles banquinhos redondos de cimento, longe da muvuca daquela sexta feira, e com minha mochila sobre a mesa. Observava atentamente aquele sujeito que tentava ligar o motor daquele Fusca. Ora ele o empurrava, ora ele abria aquela tampa do motor lá atrás, e ficava observando tudo aquilo. Senti que ele precisava de uma pessoa para auxiliá-lo, e que no mínimo empurrasse aquela “lata velha” para que se pudesse dar aquele usual tranco em seu motor, e fazer aquela geringonça pegar.

Nisso aproximou-se de bicicleta um garoto que deveria ter à distância seus 15 anos. Naquele momento então desisti de prestar ajuda àquele indivíduo já que alguém o auxiliaria, e que poderia até mesmo ser um filho seu. Mas quando eu menos esperava, aqueles dois se atracaram bem ali em minha frente. De longe e por alguns instantes fiquei observando aquela briga, sua consequência, e o que poderia acontecer. Não tardou muito chegou mais um pivete a pé dando apoio àquele que ali atracava com aquele sujeito, e ficaram os dois surrando aquele motorista, que já se encontrava em desvantagem quando ele se atracava apenas com aquele primeiro.

Ele se encontrava no chão um tanto quanto sem ação, e aquele segundo moleque ficava dando-lhes chutes um tanto que desvairadamente. Como de praxe, como é do meu feitio, por diversas vezes assumindo posturas contra situações covardes, maldosas, entrando em discussões e conflitos quando via alguma injustiça, e muitas vezes até apanhando, corri então em direção aqueles três, puxei para longe aquele pivete que havia entrado na briga posteriormente, o que fez, sem eu esperar, que ele investisse contra mim. Dei-lhe então uns dois ou três safanões, alguns chutes em seu traseiro, e quando parti para socorrer o motorista, aquele pivete que iniciou toda aquela confusão correu na mesma direção daquele outro que já se encontrava distante, e foram embora correndo. Aquela bicicleta foi deixada para trás. Cheguei então à seguinte conclusão: Iriam voltar, e voltariam agora mais acompanhados ou até mesmo armados. Decidi então sair dali e já entrar para aquele hotel. Despedia-me daquele motorista quando não tardou e por ali encostou uma viatura da Polícia Militar que teria sido comunicada daquela confusão provavelmente por alguém que distante também deveria ter assistido aquilo tudo.

Chegaram, quiseram saber o que aconteceu, chamaram aquele motorista pelo nome, recolheram aquela bicicleta dizendo que sabiam de antemão quem seriam aqueles delinquentes, já que na tarde do dia anterior foi dada queixa do roubo daquela bicicleta. Disseram que não teriam dúvidas de que naquela mesma noite aqueles delinquentes seriam presos. De outro ainda ouvi que por serem menores, eles se livrariam mais tarde do xadrez, mas não das muitas bordoadas que tomariam pelo lombo a fora. Confesso que a eventual prisão daqueles bandidos me tranquilizou naquele momento.

Aquele motorista retornou então seus cuidados com aquele carro enguiçado dizendo-me que aquele moleque tentou extorquir-lhe dinheiro, o que ele negou, e foi quando se iniciou toda aquela confusão. Não contava que ele estivesse acompanhado, e me agradeceu por eu ter tomado aquela iniciativa, "caso contrário naquele momento ele poderia estar até mesmo bastante machucado".

Agora acompanhando o conserto daquele veículo. recomendei-lhe que assumisse a posição do motorista, que eu me encarregaria de empurrar aquele veículo, e o faríamos “pegar no tranco”. Respondeu-me que ele não tinha experiência naquilo, e que nunca precisou de assim proceder, já que seus carros eram sempre novos, e que aquele fusca ele recebeu num negócio para diminuir seu prejuízo. Perguntei-lhe se emprestava dinheiro a juros, respondeu-me que não, que era engenheiro no polo, e que aquele carro tinha entrado como pagamento de um lote que ele tinha recebido como garantia por ter sido avalista de um vizinho em um banco, e que ele próprio acabou pagando aquele empréstimo. E como agora ele estava sendo invadido, e como já haviam até iniciado a construção de uma boa casa lá, preferiu negociar com aquele invasor que lhe deu uma maior soma em dinheiro, e ele aceitou com que aquele pagamento fosse complementado com aquele carro.

Preparei-me então para assumir aquele volante e o instruí para que juntos empurrássemos aquele veículo até aquela suave ladeira que se encontrava ali numa rua transversal. E assim o fizemos. Ele empurrando em sua traseira, e eu fazendo o mesmo ao lado da porta do motorista que se encontrava semiaberta para que eu a adentrasse rápida e perigosamente quando aquele carro tivesse numa determinada velocidade, e assim, ao chegar naquela ladeira abaixo, eu dar aquele tranco em seu motor. Acostumado àquilo, na primeira tentativa já o fiz funcionar com seu motor emitindo estalos que assustavam cachorros e afugentavam os pardais que dormiam em árvores próximas. Desci obviamente com ele funcionando, acelerado e seu freio de mão devidamente puxado, e preparava-me para ir em direção àquele hotel, quando o ouvi chamando por mim. Perguntou-me se eu estava de viagem, pra onde eu ia, e o que eu estava fazendo em Dias D’ávila, mas antes de tudo quis saber o meu nome. Respondi-lhe que estava naquela cidade desde o dia anterior e que por orientação de um amigo, tinha saído de Minas para procurar emprego na Bahia. Que no dia seguinte iria dar umas voltas pelo polo para distribuir alguns currículos. Ele então me disse que era chefe de secão em uma empresa lá, e com o cuidado de não me deixar demasiadamente esperançoso, que eu lhe repassasse meu currículo, pois ele se encarregaria de saber da existência de vagas em sua empresa ou em alguma empreiteira que prestasse serviço junto àquela multinacional em que ele trabalhava.

Perguntou-me minha profissão, ao ouvir-me dizer que era desenhista técnico, disse ser amigo do chefe do setor de projetos de sua empresa. Quis saber se eu estava à espera de alguém. Respondi-lhe que não, que eu estava esperando a hora ideal para poder entrar para aquele hotel dizendo-lhe que eu tinha passado a noite anterior no Hotel São Luiz, e que não tinha conseguido me adaptar àquele estabelecimento.

Ele cordialmente solicitou-me que entrasse naquele veículo e que iria dar umas voltas comigo para me apresentar a cidade. Que ele era de São Paulo, mais especificamente da cidade de Ribeirão Preto, e que veio para a Bahia transferido. Sua mulher é catarinense radicada no Rio de Janeiro desde os oito anos de idade, razão pela qual carregava um forte sotaque carioca. Seu objetivo era num futuro próximo voltar a morar em sua cidade natal. Tinha um casal de filhos de menos de quatro anos. Sua mulher era psicóloga. Tinha consultório próprio, assim como também trabalhava em hospitais, além de efetivada no quadro de funcionários da prefeitura de Simões Filho. Em todos ocupava o cargo de chefia.

Levou-me àqueles bairros os quais eu havia desistido de conhecê-los por serem de difícil acesso. Por algumas vezes, mesmo que parado, acelerou aquele fusca barulhento como que se quisesse esquentar seu motor, ou mesmo imaginando que a razão por aquele carro não ter funcionado anteriormente teria sido pelo simples fato de seu motor estar frio.

Chegamos a um bairro o qual ele fez questão de que eu o conhecesse, para mostrar-me num alto onde se situava aquela construção que tinha sido o Fusca parte de seu pagamento, e na vinda parou numa churrascaria em que sua entrada tinha uma pequena rampa que funcionava como estacionamento, o que facilitaria quando se resolvesse ligar aquele veículo novamente mesmo de ré. Ao estacionar me disse que eu seria o responsável por fazer aquele carro dar a partida, já que ele não precisaria mais ser empurrado. Deixei-lhe claro que se o problema fosse apenas fazê-lo funcionar como da vez anterior, que não teria problema, eu o faria de novo, mesmo ele estando naquela posição.

Entramos naquele estabelecimento. Primeiramente ele puxou uma cadeira convidando-me para assentar em uma daquelas mesas, chamou o proprietário pelo nome, e ainda de pé o cumprimentou. Estendeu as mãos num aceno praticamente a todas aquelas pessoas do restaurante que para nós olhavam, mesmo as mais distantes. Assentou-se, o que eu já havia feito bem antes, e pediu uma cerveja. Desculpou-se me dizendo ter se esquecido de perguntar-me se eu bebia, e depois daqueles dois copos servidos, convidou-me a fazer um brinde dizendo-me:

- Brindemos em prol da minha mais nova amizade. Você é uma pessoa em quem eu posso confiar!

Eu apenas o ouvi, não lhe disse nada. Mesmo calado, procedi de uma forma onde pude demonstrar que aquela minha atitude não teria sido nada de especial. Que tinha agido por extinto, involuntariamente. Brindamos, e ele continuou falando.

Disse-me chamar-se Armando, que se formou na PUC - São Paulo, que era também Professor Universitário, e que “adorava os Beatles”. Tocava guitarra, que era corintiano roxo, e todos os anos, mesmo com os filhos pequenos, viajava ao exterior com a esposa. Que naquele ano queria voltar à Itália, e que sua mulher era descendente daquele povo. Concluiu dizendo que ela era também formada em estudos sociais, e que tinha um inglês fluente. Assim como também italiano. Falou-me que eram aquelas viagens que o fazia espairecer daqueles pesados fardos que carregava nas costas. Aproveitou para dizer que faria 34 anos no mês seguinte, que sua mulher era quatro anos mais novo que ele, e que eu estando na cidade, eu teria que ser presença obrigatória na festa de seu aniversário. Serviu-se então a sexta cerveja. No final dela ele deu um sinal para o proprietário como que se estivesse imitando uma escrita em suas mãos, esse o entendeu, fez-lhe um sinal de positivo, e dali saímos. Mais tarde fiquei sabendo que o prédio onde funcionava aquela churrascaria era dele, e alugado para aquele comerciante.

Saímos e ele ligou aquele carro sem nenhum problema. Via-se que ele tomava uma direção diferente daquele hotel e daquele lugar onde eu me encontrava antes de ajudá-lo naquelas confusões. Perguntei-lhe então para onde iríamos, e ele respondeu-me naturalmente que estávamos indo para sua casa. Questionei-lhe pelo fato de que já seria um pouco tarde e que eu preferiria naquele momento ir para aquele hotel, e ele me respondeu que não, que em hipótese alguma ele deixaria com que eu pernoitasse naquele estabelecimento tendo ele em casa um amplo quarto de hóspedes.

Agradeci-lhe dizendo que não iria aceitar aquele convite, mas ele respondeu-me que "eu iria dormir naquela noite em sua casa por questão de segurança". E ficou combinado que nada do que ocorreu junto àqueles pivetes seria comentado em sua casa, já que ele não queria amedrontar sua mulher e muito menos seus filhos.

Pensava comigo: O que levaria uma pessoa a convidar um sujeito, o que nem foi um convite e sim uma imposição, a passar a noite debaixo de seu mesmo teto, sendo que ele mal o conhecia, simplesmente pelo fato daquele ter lhe feito um favor? Naquele caso, tal obséquio já teria sido recompensado pelo fato dele ter-lhe solicitado aquela cópia daquele seu currículo vitae. Poder-se-ia também considerar que aquela sua maneira reconhecidamente franca e autêntica em me agradecer por eu ter-lhe ajudado naquele momento difícil, já tivesse sido o suficiente. Quem sabe, só aquela meia dúzia de cervejas que ele pagou pra nós naquela churrascaria, já fosse uma forma definitiva de me agradecer, e dali mesmo já poderíamos ter nos despedidos. Além disso, como ele explicaria para sua mulher aquela sua decisão? E ela, como reagiria ao saber que dormiria em um dos quartos de sua casa um indivíduo que seu marido o havia conhecido há menos de duas horas?

Sem sombra de dúvidas estava eu agora em uma situação incômoda, totalmente desconfortável. Preferia pagar uma, duas ou três vezes o valor inerente à diária daquele caro hotel, a ter que aceitar aquele convite. Via tudo aquilo como muito constrangedor. Algo sem graça, contra meus costumes e a minha maneira de ser.

Paramos em frente ao muro de uma portentosa mansão. Nisso uma sensual voz de mulher atendeu aquele interfone, e ele, chamando-a de querida, pediu-lhe carinhosamente que ela lhe abrisse aquele portão que ingressaria àquela garagem, pois ele justificou dizendo que seu controle remoto estava no Monza. E naquele momento entramos por aquela ampla garagem. Lá dentro, e ele não mentira, existiam dois outros veículos que tudo indicavam serem novos, do ano: um Chevrolet Monza Preto e um Passat de cor vermelha. E tinha espaço ainda para mais carros naquele lugar, além daquele Fusca, se necessário.

Acessamos aquela mansão por sua cozinha. Tudo ali era de um bom gosto e luxo impressionante. Em algum momento ouvi novamente a voz daquela mesma mulher do interfone em outra repartição da casa conversando ao telefone, mas tudo aquilo agora era abafado pela voz do Armando naquela cozinha que me dizia que tomaríamos ali a nossa "saideira". Depois ele iria tomar um banho, que eu me sentisse à vontade esperando-o ali mesmo, e que ele iria pedir sua mulher para que me preparasse o quarto de hóspedes, caso eu quisesse também tomar um banho já.

Sugeriu que eu me assentasse naquela mesa enorme de sua cozinha, e abriu uma cerveja. E com um copo duplo cheio em mãos, ele se encaminhou para outros cômodos daquela casa, provavelmente para o banheiro, pois dizia estar todo sujo da graxa do motor daquele carro. Novamente recomendou-me que me sentisse à vontade e que ele não demoraria mais do que dez minutos naquele banho.

Ainda dali gritou numa tonalidade branda e carinhosa para que sua mulher que se encontrava em algum cômodo mais distante de onde estávamos, que pedisse que deixasse preparado o quarto de hóspede. Até então, excetuando aquele momento que se ouviu sua voz ao telefone, a impressão era que não tinham mais ninguém naquela casa.

Passado algum tempo, e muito mais do que aqueles dez minutos previstos por aquele agora meu amigo, estava eu ali sozinho, assentado, cabeça baixa, despretensiosamente observando à distância na extremidade daquela ampla e portentosa mesa a posição de algumas peças de xadrez de uma partida que parecia estar em andamento. Olhei para a posição daquelas peças, fiz uma rápida análise, e voltei para a cadeira onde eu estava assentado. Apanhei em minha bolsa aquele livro que havia trazido de Minas, e que eu havia me prometido que brevemente iria começar a lê-lo, e ali o fiquei folheando-o, esperando pelo retorno do dono daquela casa que já se tardava em seu banho.

Lendo atentamente a Orelha daquele livro, de repente ouço passos e alguém entra por aquela cozinha com o Armando ainda no banho. Que momento mais divino e encantador quando levantei os olhos daquele livro e vi bem ali de pé em minha frente, e há alguns metros de mim, um tanto que estática, e pela primeira vez, aquela bela mulher dona daquela sensual voz que eu tinha ouvido no interfone e dentro daquela casa. Quanto esplendor! Quanto charme! De antemão percebia pela postura, educação e a maneira educada e agradável com que o Armando se relacionava comigo e com os outros naquela churrascaria, que ele deveria, e até merecia ter uma bela mulher dentro de casa. Se ele era uma pessoa tão cativante, porque não usaria também esse poder de persuasão junto às mulheres, o que lhe concederia uma posição de até poder escolher a mais bela e majestosa delas, mas eu jamais poderia imaginar que essa mulher fosse possuidora de tanto beleza e magnetismo, e que me causasse tamanho fascínio.

Usava um vestido longo que acompanhava as curvas de seu corpo feito de um tecido fino, confortável, suavemente transparente que lhe apertava um pouco à cintura, copiando a forma de uma pequeníssima lingerie que ali tinha por baixo. Era um vestido bege com desenhos de grandes flores silvestres e que tinha uma longa fenda que começava no alto de suas coxas indo tangenciar naquele piso. Roupa adequada para aqueles dias de verão quando essas suntuosas mulheres saem de seus banhos muito das vezes totalmente perfumadas. Trajes caseiros que elas se sentem mais cômodas quando estão apenas em companhia do marido e filhos, embora nada ficasse verdadeiramente à mostra daquele escultural corpo que insistia em se mostrar um tanto quanto sinuoso, mesmo debaixo daquelas vestes.

Assim que ela surgiu em minha frente, pude notar que ficara um tanto desconcertada. Pareceu-me que repentinamente ela tentou se esquivar por aquela porta com que entrara, evadir-se, mas era tarde, não tinha como voltar atrás. De repente, por algum momento, ela tivesse até mesmo ido àquele ambiente de sua casa sem saber que ali encontraria um estranho. Creio que aquele seu traje lhe tirava um pouco de sua espontaneidade, mas imediatamente ao cruzarmos os olhares, ela então de maneira automática e instantaneamente se recompôs, se reconstituindo com leveza e naturalidade. Entrara por aquela cozinha um tanto apressada como que a procura de algo, ou até mesmo com o intuito de ir até àquela área existente no fundo de sua casa. Ao ver-me, passado aqueles precários e eternos momentos de ela não saber o que fazer, falar, ou até mesmo como proceder, ela se restabeleceu, se aproximou, se apresentou, e eu naquele momento já de pé, cavalheiramente, alcei minhas mãos em sua direção cumprimento-a, em resposta a essa mesma ação que ela que havia iniciada.

Apresentou-se como Rafaella Mascarenhas. Sim, a Rafaella dona de todos aqueles dotes, predicativos, de todos aqueles atributos, e com aquele encanto único que certamente lhe fora um presente divino. Via-se ali, explicitamente, sobressair aquela sua descendência italiana, como bem me dissera seu marido. Confessou que achara que eu me encontrasse em sua sala de estar, e disse ter esquecido que seu marido havia entrado era pela porta da cozinha da casa.

Pediu-me então desculpas, e solicitou-me afável e educadamente que lhe acompanhasse, dizendo-me que me apresentaria ao “meu” aposento. Entrou-se em salas, copas e mais salas, e lá estava eu agora diante de um magnífico e confortável quarto, e ao meu lado a mais esplendorosa de todas as criaturas.

Tinha os cabelos pretos, lisos, bem pretos mesmos, e cortado à altura de seu queixo, um corte em que todo ele, tanto atrás, como nas laterais, ficou de um mesmo tamanho, de um mesmo comprimento. Me parecia que era um corte de cabelo de nome Chanel, ou algo parecido. Aquilo lhe dava um ar de elegância e sofisticação. Daria até para arriscar dizer que a vida toda aquela mulher usava cabelos longos, e há pouco quis mudar radicalmente. Assentado levemente em sua cabeça, sobre aqueles fulgurantes cabelos, e de uma forma delicada, havia um óculos de grau de finíssimos aros metálicos e lentes brancas, e que por ser tão delicado, dava aparência de ser um tanto frágil. Magra, relativamente alta, esguia, mas não excedia um metro e setenta de altura. Tinha a cor clara, bem clarinha mesma, e se pegava sol, via-se que não dispensava em momento algum um eficiente protetor solar. Pela abertura daquele seu vestido, via-se que as cores suas coxas e pernas já tinham uma maior coloração dourada oriunda do sol. Cabelos e olhos incrivelmente pretos. De mãos delicadas, aliança e anéis espalhados por aqueles dedos, tinha unhas rigorosamente bem cuidadas, sobrancelhas simétricas, e como se não bastasse, ainda lhe acompanhava um sorriso magistral. O fato de ser canhota, o que pude observar quando primeiro e equivocadamente levou-me essa sua mão para me cumprimentar naquele momento anterior, recolhendo-a, e substituindo-a em tempo, essa situação conferia-lhe um charme todo especial.

Transpirava de seu corpo uma suave flagrância. Estava ali agora aquela primorosa mulher em seu momento de mãe e esposa após um dia estafante. De uma voz baixa e que parecia treinada para aquilo. Era um primor de mulher em todos os sentidos. Falava olhando profundamente dentro dos olhos de seu interlocutor, e naquele caso, eu. Dizer que sua presença ali me arrebatava, me desequilibrava, não seria nenhuma insensatez, nenhum desatino ou até mesmo um exagero. Inegavelmente aquela mulher me entorpecia e me hipnotizava. Em algum momento em nossa conversa naquela churrascaria, seu marido comentou que no mês seguinte ela faria 30 anos de idade.

Naquele quarto deixei minha bolsa e saímos daquele lugar a seu convite, retornando-nos àquela cozinha que tinha seus armários embutidos construídos em madeiras de lei, e que embelezavam ainda mais aquele ambiente, dizendo-me que estaríamos retornando para reencontrar o seu marido, e que ainda continuava naquele seu banho.

Muito embaraçado permaneci naquela cozinha torcendo desesperadamente para que o Armando viesse me socorrer. E ela ali comigo como que “fazendo sala”. Que dez minutos mais duradouros eram aqueles daquele banho? E aquela vigorosa e resplandecente mulher ali. Eu não tinha assunto para ela, e via-se claramente que ela ficava bulindo em uma ou outra vasilha, abria uma ou outra porta daquele armário como se também não tivesse muito o que falar. Eu particularmente me calava porque me amedrontava com aqueles momentos. Do nada, ela então disse:

- Bem, você me parece de natureza extremamente tímida!

Disse-me aquilo de uma forma mais espontânea possível, naturalmente. Continuava tendo os olhos para aquela prateleira da parte debaixo de sua geladeira que ela a mantinha com a sua porta semiaberta, e ali permanecia olhando aquele seu interior como se procurasse algo que sabia que nunca ali estivera guardado. Respondi-lhe àquela sua menção com um sorriso introvertido e breve, como que conferindo autenticidade ao "diagnóstico” daquela psicóloga, sem nem mesmo saber se ela tinha notado aquele meu discreto retorno.

A cerveja tinha acabado e antes mesmo do Armando seguir para seu banho, tinha lhe dito que não beberia mais naquela noite por causa do meu compromisso do dia seguinte. Isso, sem antes ter notado que ela vinha com outra cerveja em mãos, mas que de uma forma gentil, eu evitei com que ela a abrisse, já que a única pessoa que bebia naquele momento era eu. Como eu já havia “tomado umas” antes em companhia de seu marido, naquele momento jamais poderia dizer que eu estivesse completamente sóbrio, pelo contrário, estava sob o efeito do álcool daquela bebida, obviamente não tanto, mas poder-se-ia admitir que sóbrio eu não me encontrava. E ali, ao contrário da maneira encorajada com que procedemos quando estamos sob o efeito da bebida, diante daquela mulher eu havia era me encolhido, embora tivesse certeza que eu não era dessa natureza tímida. O momento e sua presença era ali a única razão para aquele meu acanhamento, sem que nem eu mesmo soubesse explicar o porquê de tudo aquilo. A verdade era que eu mesmo estranhava aquele meu comportamento.

Daí aquele meu amigo retornou vindo de alguma outra repartição daquela imensa casa vestido naquele seu luxuoso roupão azul, barba feita, uma pequena toalha de rosto de cor branca jogada sobre seu ombro, e cheirando fortemente uma pomada dessas apropriadas para se fazer massagens. Ele chegou, e gentilmente ela pediu licença para se retirar. Ele abriu a geladeira, comeu uma fatia do queijo que tinha sido o nosso tira gosto há pouco e perguntou-me se eu tinha fome. Disse-lhe que estava completamente saciado, sem apetite, e que aquela iguaria que nos foi servida naquela churrascaria havia me deixado cheio, além de tudo, teve esse queijo que há pouco nos foi servido. Mesmo diante de tudo aquilo, ele tentou insistir que um jantar fosse nos servido, mas neguei veementemente. Disse-lhe que eu o faria companhia à mesa, mas não ao jantar. E o agradeci.

Ele então se assentou naquela cadeira mais próxima. Disse-me que ela lhe perguntou em um momento anterior em que estiveram juntos antes dele entrar no banheiro daquela sua suíte, o que seriam aqueles arranhados em seus braços e costas, o que ele havia lhe dito que mais depois lhe explicaria.

Aproveitou para me pedir desculpas e dizer-me que sua saída abrupta naquele momento me dizendo que iria tomar um banho por causa da graxa daquele carro não fora verídica. Disse-me que estava sentindo fortes dores no ombro em consequência de um tombo seu naquela briga, e que indo para seu banho, poderia ali se remediar com o que havia em seu armário.

Ela trabalhava na prefeitura de uma cidade na região de nome Pojuca, no hospital de Camaçari e em outro hospital em uma cidade a caminho de Salvador de nome Simões Filho. Tinha também anexa em sua casa seu consultório particular onde existia uma entrada independente pela rua principal da cidade, onde em alguns sábados aplicava testes psicotécnicos atendendo candidatos a empregos de algumas empresas do polo. Atendia também algumas consultas particulares, muito a contragosto, já que optava sempre pelo descanso e a companhia da família. Por essas consultas, raramente cobrava.

Despedi-me do meu amigo, depois que ele insistiu para que eu fosse para aquele meu quarto descansar. E não vi mais nenhum resquício daquela mulher naquela noite. Tomei um banho, deitei naquela confortável cama, joguei aquela toalha semiaberta, e um tanto quanto molhada, sobre o meu peito, e fiquei ali pensativo, observando, sem nem mesmo ver, sem me atentar para aquele retrato preto e branco de Chaplin dependurado naquela parede, em que uma solitária lágrima se derramava pelo seu rosto, e na outra uma finíssima cruz niquelada de uns vinte centímetros de comprimento, com alguns fios de arame no centro representando Cristo Crucificado. E ali fiquei divagando, numa análise mais profunda, admirado de como são as voltas que o mundo dá, e que muito das vezes nos surpreendem. Na noite anterior eu tinha um quarto que cheirava mofo, e a companhia de pernilongos de tamanhos exagerados, e visitado por uma ratazana que caiu do céu. Agora eu estava desfrutando de todo o conforto de um quarto numa casa igual aquela. Mas por mais que eu tentava, eu não conseguia desvencilhar-me da figura, e principalmente daquele primeiro momento que vi aquela mulher.

Pensava...e só pensava na Rafaela, como que num sonho acordado. E ficava imaginando o que ela poderia estar fazendo naquele instante. Estaria cuidando de um filho, estaria diante do espelho, vestindo outra roupa de dormir, ou jogada aos braços do marido?

Passamos uns bens demorados minutos juntos, tanto em sua cozinha como também naquele quarto, e momentos aqueles em que eu não sabia que seu marido já a havia encontrada antes dela ter ido ali naquela cozinha, e quem sabe, até já lhe tendo dito algo sobre mim. Na realidade nem sei se naqueles momentos eu disse alguma coisa para aquela mulher, e nem sei se o seu marido havia lhe dito a razão pela qual eu me encontrava naquele lugar. Mas o que me intrigava era o fato de que, durante todo aquele tempo em que permanecemos a sós, calados, ela ter dito somente uma coisa; “que eu era tímido ao extremo!” Não conseguia avaliar aquele seu comentário. Não sabia se aquilo era uma crítica e que pessoas introvertidas não lhes são bem-vindas ou mesmo interessantes. Ou ela disse aquilo apenas por dizer, já que aqueles momentos estavam se tornando tortuosos por falta de assunto?

E aquele olhar? Um olhar de como que se estivesse desnudando ou desvestindo uma pessoa? Se assim ela olhasse indistintamente para todos os homens do mundo que a ela recorressem profissionalmente, ou por outra razão qualquer, poder-se-ia dizer sem nenhum medo de errar, que todos eles ficariam aos seus pés, seriam seus cervos. Quem haveria de renunciar tamanho fascínio?

Adormeci.

Veio então o dia seguinte. Não era nem mesmo seis horas da manhã, e eu já havia acordado. Ao abrir os olhos havia certificado de que aquelas cervejas do dia anterior não haviam me trazido aquele tormento que o álcool sempre no dia posterior à sua ingestão me trazia. A cabeça não doía.

E mais uma vez a imagem daquela mulher imperava sobre todas aquelas outroras preocupações que passaram a me afligir ao amanhecer de cada dia, já que eu estava na Bahia à procura de um emprego.

Sabia que era cedo e não tinha como ir embora, pois o mais certo era que toda aquela casa ainda estivesse dormindo, e suas portas trancadas. Mas lógico, eu não poderia sair assim abruptamente sem um devido agradecimento. Deitado ali, e após aquele meu segundo banho naquele confortável banheiro, ficava imaginando-me casado com uma mulher daquele nível, daquela beleza.

Aquela era uma manhã de um dia de sábado. O meu primeiro fim de semana naquela cidade. Primeiro que eu torcia que fosse de uma série de diversos outros que eu teria pela frente naquele lugar, porém, óbvio, nos outros já devidamente empregado. E aquele era, pela minha programação, um dia perdido, inútil, um dia morto. Aliás, não só aquele, mas também o seguinte, o domingo. Dias que só se teriam custos, gastos, sem poder produzir, ou seja, um dia que não compensaria comparecer às portarias daquelas empresas no polo para entregar meus currículos. E o que eu chamava de “gastar” não excediam nada mais do suprir minhas necessidades básicas em termos de alimentação, ou seja, o café da manhã, o almoço e um lanche a noite. Os dois primeiros já estavam inseridos na diária. Às vezes um lanche a tarde. Nem se ventilava a possibilidade ou mesmo o atrevimento de se gastar alguma grana com supérfluos. Agora era esperar a segunda feira para “colocar o pé na estrada” novamente. Tinha comigo que eu teria que abandonar aquela casa, aquele lugar, não me sentia bem ali, jamais imaginei que naqueles percalços e obstáculos todos que iria enfrentar naquela minha jornada, que eu passaria uma noite numa casa daquela. A acolhida tinha sido a melhor possível, mas eu via aquilo como uma coisa sem graça. E muito menos imaginaria o verdadeiro motivo pelo qual eu estaria dentro de uma casa daquela naquele momento.

Reconhecia que teria sido apanhado de surpresa, e nascera em mim ali instantaneamente algum complexo de inferioridade, mesmo eu sabendo não ser possuidor desse desvio, desse tipo de sentimento. Verdade é que, eu não estava preparado para aquele tipo de coisa, para esse tipo de acolhimento. Por essa razão a presença daquela mulher me inibia, e eu tinha que reconhecer essa minha fraqueza.

Já beirando as sete da manhã, pois venci aquela mais de uma hora afundado nos primeiros capítulos daquele livro, levantei daquela cama onde eu já deitava todo vestido, e de meias. Coloquei minhas roupas usadas em uma sacola, arrumei uma forma de fazer com que elas coubessem em minha mochila e saí daquele quarto à procura da porta de saída daquela primorosa edificação. Tinha comigo a esperança de que pudesse ver, e de preferência à distância, e de preferência mais ainda que ela não me visse, a Rafaela Mascarenhas pela última vez. Passei então por algumas repartições e encontrei uma segunda empregada pelo caminho e pedi-lhe que me mostrasse qual seria a porta de saída da casa. Ela então me respondeu:

- A Dra. Rafaela disse que não lhe deixasse sair sem antes ela lhe falar. Vou avisá-la.

Mantive-me ali em pé aguardando a presença daquela voluntariosa mulher que tinha se embrenhado em meus pensamentos desde a noite anterior. Mas reconheço que, só aquela informação e o fato daquela funcionária ter ido chamar a sua patroa, já me trazia um certo incomodo, uma desinquietação, e falei comigo mesmo:

- Vejamos então do que se trata.

Ela então entrou por aquela copa e perguntou-me o porquê de eu ir embora sem antes tomar o café. Falei-lhe que a bebida daquele dia anterior havia atrapalhado meu estômago, e que eu tinha acordado com uma leve dor de cabeça. Ela então me respondeu:

- Mas sair sem nada comer?

Em tom de brincadeira disse;

- E sem se despedir? E deu um breve sorriso.

Respondi-lhe então que deixaria recados agradecendo imensamente pela acolhida. E complementei:

- Não queria incomodar mais.

Definitivamente a presença daquela mulher me arrebatava, me desconsertava e novamente a timidez apossou-se novamente de mim. De que valia tanto interesse em vê-la novamente antes de sair daquela casa, se quando ela estava em minha frente, todo aquele meu temor e acanhamento tornava-se imperioso?

Ela ofereceu-me um sal de fruta ou mesmo um analgésico qualquer. Respondi-lhe que ainda não seria necessário e agradeci-lhe. Ela insistiu dizendo-me que eu não sairia de sua casa me sentindo mal, e sem que eu pedisse, ela foi em alguma repartição daquela casa e retornou com meio copo de água e um comprimido na palma de sua mão. Gesto simples, natural, mas confesso, gostei daquele momento e até vi naquilo um gesto de intimidade, que talvez outra pessoa não veria. Além do mais, jamais imaginei que um dia iria beber remédio sem estar sentido absolutamente nada. E só para agradar alguém.

Estávamos ali frente a frente e não mais que um metro de distância nos separavam. Ela tinha uma de suas mãos apoiada em uma daquelas cadeiras daquele ambiente, e a sua esquerda ocupada com aquele copo sobre um pires que a mim foi devolvido. Ali era um local de meia-luz, de uma leve penumbra, e parecia ser sua copa. Suas cortinas eram um tanto amarronzadas bordadas com azaleias saindo de grandes vasos de modelos indianos pintados em cores vivas e claras. Se mantinha em pé, as pernas ligeiramente cruzadas, e estava agora vestida esportivamente com uma calça de lycra azul, e uma blusa de malha do time de vôlei da Supergasbrás escrito o nome da atleta Vera Mossa acima de um número 8 que tomava a maior parte do espaço de trás daquela camisa. Vestia-se de uma maneira totalmente diferente daquela que a vi na noite anterior. Totalmente esportiva. Parecia que todas as roupas lhe caiam bem, pois estava ainda mais bela e jovial. Colocou aquele pires com o copo sobre aquela mesa, e que foram imediatamente recolhidos por ordem dela por uma daquelas suas funcionárias, que ali só compareceu, por ordem da Rafaela. Mantinha-me ali ereto, agora um pouco acostumado à sua presença, e estava com minha mochila dependurada nas costas. Ela então comentou que seu marido lhe recomendou que me pedisse desculpas, pois teve que sair às pressas para Salvador naquela manhã, isso porque naquele dia bem cedinho recebera uma ligação de um gerente de uma concessionária de lá dizendo ter arrumado comprador para aquele seu Fusca “que só lhe traziam dissabores”, e que quando voltasse, queria me encontrar ali novamente. Então ela disse:

- Ontem à noite em meu quarto, e antes do Armando entrar para aquele seu banho e eu ter ido àquela minha cozinha, razão pela qual parecia que ele demorava muito em seu banho, eu fiquei sabendo de seu ato heroico. O Armando me disse como se conheceram.

- Aquilo não foi ato heroico. Longe disso...

- Você poderia ter ignorado, seria normal. Você não tinha nada com aquilo.

- É. Eu sei. Tinha mesmo não!

E continuei.

- Vi injustiça por serem dois. Sou muito impulsivo...

- Sei como é isso, respondeu-me.

Ouvi então aquele recado, agradeci-lhe imensamente pela estadia, falei-lhe que precisava ir, e pedi-lhe que retransmitisse aqueles meus agradecimentos ao seu marido. Agradeci-lhe novamente pela hospitalidade, já que eu não tinha muito mais o que falar, e ela então me perguntou:

- Vai pra onde?

Respondi-lhe que daria uma volta pela cidade à procura de um hotel ou mesmo uma pensão com preços amenos onde eu pudesse me instalar em definitivo. Concluí dizendo-lhe que eu não iria embora daquela cidade, que eu já havia decidido de ali permanecer, de ali morar.

Daí, talvez por causa de tantas adversidades que eu poderia encontrar, ela demonstrou não acreditar muito naquela minha afirmação. Dei um passo para trás para que pudesse me desviar da proximidade daquela majestosa mesa e de seu jogo de cadeiras que estavam do meu lado, e que me impediam de eu caminhar. Olhei para aquela única porta que se situava um tanto à frente onde deveria ser a sala principal daquela mansão. Como não vi nenhuma reação daquela mulher, continuei caminhando em sua direção, já que o fato de a Rafaela não ter dito nada, subentendia-se que aquela deveria ser sim uma porta da casa que dava para rua.

Caminhamos alguns passos e eu sempre me mantendo à frente, e a Rafaela praticamente ao meu lado, ou às vezes um pouco atrás, mas sempre bem próxima a mim caminhando também por aquele corredor que por ora era exprimido por aquelas samambaias e outros vasos de flores daquele recinto. Nisso ela acelerou um pouco mais seus passos me ultrapassando quando já estávamos findando a travessia daquela sua sala e chegando naquela porta. Ela então encostou-se àquele móvel de mogno onde havia uma Bíblia aberta sobre um suporte, e que ficava ao lado da porta. Ali ela se prostrou como que interrompendo aquela minha trajetória, e obviamente, parei também próximo a ela como que aguardando o que ela tinha pra dizer, já que aquela porta agora já se encontrava em minha frente.

Naquela sala também não existia tanta luz natural e pelo mesmo motivo: mais belas cortinas. Uma leve penumbra tomava conta de todo aquele ambiente. Ali, já diante daquela porta, ela cruzou seus braços, e novamente postou-se uma perna na frente da outra como que invertendo a posição de seus pés, o que me parecia ser uma posição a qual ela sempre se sentia confortável, já que não foram poucas as vezes que ela assim procedia, e ficou me olhando fixamente tentando sempre acomodar aquela franja de seu cabelo que insistia em não aceitar aquele comando de suas mãos, e sempre retornava para frente de seus olhos. Eu já tinha notado aquele seu desentendimento com aquele seu cabelo desde o momento que ela chegou próximo a mim naquela manhã. Óbvio, tudo aquilo só lhe conferia ainda mais charme. Mas nada falou.

Quando eu levantei as mãos em direção àquela maçaneta, ela me interrompeu, e ergueu sua mão em direção a minha como que numa despedida, e imediatamente lhe fiz aquele mesmo gesto para nos despedirmos. Novamente aquele seu cabelo caía-lhes nos olhos impedindo com que eu pudesse olhar aquela psicóloga com maior nitidez. Ela então deixou com que naquela despedida sua mão demorasse mais tempo que o de costume presa à minha, e apertando um pouco mais sua mão contra a minha mão. Nisso ela levantou mansamente sua mão pra cima sempre carregando a minha junto, e postou a sua outra sobre as costas daquela minha mão como que a enclausurando entre as suas.

Suavemente ela balançou aquele emaranhado de mãos não mais que duas vezes. Eu Permanecia ali sem nenhuma condição até mesmo de pensar, e muito menos saber como reagir. E ela não dizia nada. Branda e docemente ela então se desfez daquele embaralhado de mãos. Tudo aquilo me causava mais ofuscação. Uma inexplicável cegueira. Tudo era muito rápido. Rápido e inesperado. E eu não via significado para nada daquilo.

Ela então levou sua mão à maçaneta daquela porta e com a outra destrancou aquela fechadura. Abriu aquela porta o suficiente apenas para que eu passasse, e ela procurando se esconder por detrás dela. Assim que acabei de ultrapassá-la, olhei para trás e ela então me disse que sua casa estaria à minha inteira disposição, e dizia que não adiantaria com que ela insistisse para que eu esperasse pelo seu marido, e deu aquele mais belo e inesquecível de todos os sorrisos que eu já os tinha presenciados, dizendo-me singela e enigmaticamente: juízo!!!

Paradoxalmente veio em minha cabeça que juízo foi o que mais procurei ter naqueles momentos em que ficamos tão próximos um do outro ali naquelas suas salas, onde acatei aquela sua ordem vinda daquela empregada de “não sair sem antes ela ir falar-lhe”. Juízo foi o que mais tive desde aquele momento que súbita e repentinamente ela apareceu em minha frente naquela sua cozinha na noite do dia anterior quando lhe vi pela primeira vez.

Na realidade não foram muitas vezes que aquela mulher conversou comigo. E quando isso aconteceu, ela foi muito econômica em suas palavras. Excetuando naqueles momentos ali que eu já me preparava para ir embora, no mais só foram formalidades. Foi daquela vez que ela me pediu que lhe acompanhasse até o quarto de hóspedes, depois quando me disse que eu era tímido, e por último ali, quando veio me repassar o recado de seu marido. Certo é que dessa última vez prolongou-se um pouco mais. E nada mais que isso.

Desci então aqueles três ou quatro degraus que separavam a porta de sua casa e o passeio. Senti que em um determinado momento lentamente aquela porta fora fechada. Não olhei pra trás. Atravessei a rua e resolvi que iria àquela feira que estava armada naquele jardim que se situava a uma quadra de sua casa, e que no dia que cheguei tocava Tim Maia e o 14 Bis por aqueles alto-falantes. Para quê e fazer o quê, eu não sabia. De imediato, o problema a ser resolvido seria sair daquela moradia, mesmo eu tendo sido recebido da melhor maneira possível. Talvez em consequência daquela minha timidez súbita e inexplicável, e que me fazia sentir tolhido, embaraçado, eu não estava conseguindo ficar à vontade naquele lugar. Na realidade a presença da Rafaela não me deixava libertar. Verdade é, eu simplesmente não consegui ter sido eu mesmo. E ponto final!

Que avaliação e recomendação mais misteriosas fizeram aquela mulher. Dizer que eu era um tanto introvertido num dia, e no outro recomendando que eu tivesse juízo. Ambas as colocações até um tanto paradoxais, se tornaram para mim um mistério. Por que tudo aquilo se provavelmente nunca mais nos veríamos? Aquilo se entranhou enigmaticamente em meu pensamento. Talvez aquilo fosse algum conselho por avaliar que eu era muito impulsivo. Mas se sabe, a psicóloga era ela. Ela sabia o que estava falando.

E eu me encontrava agora do lado de fora daquela casa, na rua, naquela praça, junto aquele povo, e a Rafaela lá dentro de sua casa iniciando aquele sábado. Sim, agora ali eram dois mundos. Aquele lá de dentro, que não era o verdadeiro mundo que eu estava vivendo. Aquele lá de fora, que era onde eu estava pisando. Dois mundos muito diferentes, que se avizinhavam, e não se distanciavam mais do que alguns metros um do outro, existindo apenas algumas casas e muros os separando. De um lado toda aquela riqueza, aquele conforto, do outro as aquelas singelas armações de madeira e metalon daquelas barracas onde se misturavam frutas e legumes, assim como também linguiça, carne de sol, de porco, e até de bode. Num canto, às escondidas, como que numa espécie de contrabando, por serem animais silvestres, haviam também carne de paca, tatu e capivara. E tudo aquilo misturado sem nenhuma higiene, e totalmente expostos às moscas. Mas nada disso fazia com que eu conseguisse tirar da minha mente os poucos momentos que vivi junto daquela mulher dentro daquela casa. Sua postura, seus gestos, sua maneira de falar embrenhava-se em minha mente de uma forma arrasadora, estacionados de uma maneira que eu não conseguia prestar atenção àquele mundo que agora eu havia retornado para ele.

Ali encontrei novamente a dona daquele hotel de minha primeira noite dizendo-me que queria conversar comigo. É verdade que, apesar de não termos tido um bom entendimento naquele dia, anteriormente, mais cedo, antes de eu assumir aquele quarto, nós ficamos bem mais de uma hora conversando naquele sofá daquela sala de espera em seu hotel. Havia algo de comum entre nós, éramos mineiros. Falamos muito de nós, já que ela era também uma “forasteira” naquele lugar oriunda da cidade de Montes Claros. Aquela situação parecia nos fazer ter mais intimidade, fazendo-nos sentir mais à vontade um com o outro. Mas confesso, o que me fez passar aquelas longas e duradouras duas horas ao seu lado lá, era o encanto daquela sua filha mais velha, a Sheila, um verdadeiro “lírio do campo”.

Mostrei-lhe estar à disposição e ela pediu-me que a acompanhasse até aquele seu estabelecimento, e dizendo, inclusive, que eu tinha chegado em boa hora, já que eu a ajudaria no transporte daquelas frutas e hortaliças que ela ali tinha adquirido. Antes passou por aquela barraca onde havia bandas de porcos dependuradas, gente bebendo cachaça e comendo linguiça frita naquelas chapas, e adquiriu diversos tipos de miúdos de porco. Levou também uma boa quantidade de lombo e costelinha de porco. Disse-me que naquela noite iria ter uma festança em seu hotel, aniversário de sua irmã, e que os clientes só pagariam a cerveja consumida. A feijoada sairia de graça. Perguntou-me então se eu permaneceria ali naquele final de semana, ouviu de mim que sim, e convidou-me então para aquela feijoada de logo mais. Deixei aquela compra sobre uma mesa de sua cozinha, e saí daquele hotel me esquecendo que ela disse querer falar comigo.

Veio então a parte da tarde. A Dita, esse era o apelido da dona daquele hotel e, diga-se de passagem, odiava ser chamada de Dona Expedita pelos seus clientes, ficou sabendo que eu havia retornado, e que me encontrava ali do lado de fora, pedindo então que eu fosse chamado. Pedi licença àquelas pessoas que estavam ali papeando comigo, pessoas estas que eram clientes do hotel e que eu os conhecera de vista naquela minha primeira noite quando estavam numa mesa naquele bar jogando dominó. Tudo é questão de cultura, de região, dominó era um jogo muito comum naquela cidade. Haviam várias mesas com aquele quarteto de jogadores, cervejas, cinzeiros, copos com cachaça, conhaques, e muita gritaria por causa dessa ou daquela jogada. Muito das vezes ouvia-se aquele barulho característico de uma peça sendo batida na outra, ou ela sendo batida na mesa, e muita algazarra.

Encontrei a Dita sentada e bordando numa daquelas mesas de seu restaurante, e debaixo de sua cadeira aquele gato balofo de cor amarela que sem consentimento nenhum da gente, ficava roçando seu corpo em minha perna como quando ali estive da vez anterior, e emitindo um roncado esquisito. Ela pediu licença à sua irmã que lhe fazia companhia e solicitou-me que a acompanhasse. Antes me falou que um paulista, que inclusive as pessoas diziam ser seu namorado ou mesmo amante, e que ela disse-me categoricamente não ser, mas eu sabia que era, tinha retornado para seu estado temporariamente, e que seu apartamento ficaria desocupado a partir daquele dia, e quis saber se eu tinha interesse em ali hospedar-me. Seguimos então para aquele apartamento com banheiro interno, e que se localizava do lado de fora, independente do hotel, e que poderia, se houvesse boa vontade da minha parte, até chamá-lo de suíte. Nele poderia chegar a hora que quisesse do dia ou da noite sem que os clientes ou sua proprietária tomassem conhecimento. Era uma espécie de puxadinho daquele casarão, uma construção razoavelmente nova.

Perguntei-lhe o preço, e ela me informou que tinha o valor de mais do dobro daquele que eu tinha ocupado, dizendo-me que ela até o alugaria por um valor maior, se eu não tivesse interesse. Aceitei àquela sua proposta, depois de ter pedido uma boa redução naquele preço, e o mais importante, era num segundo andar, depois que se subisse aquele vão de escadas. E o mais importante ainda, tinha laje, e aquilo não deixaria com que eu fosse novamente vítima de chuva de ratazana. Nele existia um ventilador de teto, o que resolveria também o problema daqueles pernilongos de Itu.

Naquele sábado mesmo já assumi os custos daquela hospedaria. Entrei por ele naquele dia à tardinha, e só saí de lá no domingo depois do meio dia para ali almoçar. Desculpei-me por não ter comparecido à sua feijoada naquela noite, dizendo-lhe que havia “pegado” no sono, o que era uma inverdade. Ouvi sons de conversas e músicas vindo daquele lugar até de madrugada. A leitura de Ana Karennina de Tolstoy, e suas quase mil páginas, tinham sido minha companhia desde aquele momento que passei novamente a ser hóspede daquele lugar. Extravagâncias acompanhadas de gastanças com cervejas eram cartas fora daquele meu baralho. Diria, eram artigos de luxo. A não ser quando alguém fazia questão de pagá-las. Aí já seria desfeita da minha parte.

Veio a segunda feira e coloquei em prática pela primeira vez naquela cidade o objetivo por me encontrar ali que era, distribuir currículos pelas empresas do Polo Petroquímico de Camaçari. Passei aquela semana lendo Tolstoy, pegando caronas e distribuindo currículos.

Veio aquele meu segundo final de semana em Dias D’ávila. Não tinha colhido por enquanto nenhum fruto, nada concreto, nenhuma entrevista, nenhum teste técnico, que era o que antecedia uma admissão, isso quando não se tinha indicação, época que até já usava aquele termo pejorativo: -Tem que ter QI – que significa, Quem Indicou. Então nada fugia o previsível. Entregava meus currículos e a impressão que se tinha era que daquelas portarias mesmas eles eram arremessados diretos para a lata de lixo daquele lugar sem nem mesmo serem destruídos. Sendo assim ou não, teria que continuar, não poderia desistir, mas eu não tinha essa tranquilidade financeira toda para ficar somente insistindo sem nenhum retorno positivo. E há de se lembrar, agora eu ocupava um quarto de hotel mais caro.

Aquele segundo final de semana naquela cidade eu o passei feito um ermitão dentro daquele quarto, sem contato com ninguém. Eram páginas e páginas de Anna Kareninna sendo devoradas. Aquilo me divertia, me tranquilizava, me ocupava e fazia com que eu não gastasse dinheiro. A música Caminhoneiro de Roberto Carlos era executada aos extremos naquele bar. No início eu gostava, e gostava muito, mas a sua repetição foi me esgotando. Naquela segunda feira iniciariam os dias de minha terceira semana em Dias D’ávila e a segunda que eu distribuiria meus currículos. Levantava todos os dias pela manhã bem cedo, tomava o café do hotel e ia para o local onde passavam o maior número de veículos em direção àquelas empresas petroquímicas. Na realidade existia sim uma colaboração muito grande daqueles motoristas que para lá se dirigiam. Não negavam carona, muito das vezes, inacreditavelmente, até as ofereciam chamando-nos a atenção com suas buzinas. Sabiam da dificuldade de acesso àquele local. Como não existiam lotações que fizessem aquele trajeto, e se existiam seus horários eram muito reduzidos, conseguia-se fazer aquele percurso de carona com facilidade. Durante toda aquela semana distribui meu currículo por aquelas empresas. Não raro, e sem saber, por já ser outra portaria, poderia estar até mesmo entregando meu currículo em uma mesma empresa por mais de uma vez, e sem saber.

Enfim chegou novamente uma outra sexta feira.

Estaria dando então início ao meu terceiro final de semana naquela pequena cidade. Aquela semana que se fechava tinha sido rigorosamente igual à anterior. Nada de diferente. Nenhum retorno. Nenhuma empresa me contatava. Aquela situação me desolava. Estava desprendendo muito esforço praticamente em troca de nada. Esforço, e o que é pior ainda, dinheiro. Aqueles custos já me preocupavam horrores. Sim, o cansaço era totalmente tolerável, o fato das empresas não me contatarem, idem, mas os custos, mesmo se gastando somente o trivial, eles me amedrontavam, posto que já cheguei naquele estado com pouca grana.

Ao chegar ao hotel, e isso já devia ser próximo das cinco horas, já que parei pelo caminho para conversar com um hóspede daquele lugar que tinha se tornado um amigo, e quando subia as escadas para acessar aquele meu quarto, a Dita me chamou e me entregou um pequeno pedaço de papel com um número de telefone, e pediu-me desculpas dizendo-me que desde o dia anterior que ela o tinha em mãos, mas não conseguia me encontrar.

Fui então para o interior daquele hotel, e fiz o que era de praxe em termos de identificação quando hóspedes usavam aquele telefone. Coloquei meu nome numa listagem, o número para o qual liguei e o horário daquela ligação. Fiquei aguardando para saber de onde era e o que queriam comigo. Óbvio, só me passava pela cabeça ser alguma resposta àqueles currículos que eu havia distribuído, pois ninguém sabia daquele meu paradeiro. Ao atender, após eu me identificar, muito educadamente um jovem dizendo ser locutor de uma tal rádio e de tal programa me parabenizou dizendo-me que eu havia ganhado o Concurso de Frases patrocinado por aquele programa, o que na realidade eu nem me lembrava daquilo mais.

Num daqueles dias ali no hotel li em um jornal local sobre a existência desse Concurso de Frases cujo tema era o Meio Ambiente. Despretensiosamente enviei uma ou outra frase qualquer para aquele endereço. Agora recebo um comunicado de que fui eu o vencedor. Ouvi ainda dele que eu seria agraciado com uma estadia completa em um chalé durante um final de semana com tudo pago numa pousada lá a qual ele disse o nome, e como complemento, a rádio se responsabilizaria por um determinado teto de gastos no bar daquela pousada. E que eu teria a partir daquele final de semana um mês para gozar aquele prêmio. Concluiu tudo aquilo dizendo que o prêmio dava direito a um(a) acompanhante. O que eu precisava era sair em fotos de divulgação da pousada. Confesso que por causa daquela minha necessidade urgente de me empregar, me senti um tanto quanto frustrado com aquele telefonema e resolvi que não iria fazer uso daquele prêmio.

CAPÍTULO – III

Desatinos

Em princípio não fiquei entusiasmado por ter vencido aquele concurso e consequentemente ter aquela pousada disponível, já que no mínimo eu gastaria dinheiro com deslocamentos. Além do mais, eu havia criado uma expectativa muito grande quando a Dita me passou aquele número de telefone dizendo-me que aguardavam meu contato com urgência, e em troca me veio aquela decepção. Ainda assim, e analisando comigo mesmo, inadmissível foi a atitude daquela senhora em me passar um recado dizendo que “solicitaram urgência em meu retorno”, e ela, ciente do meu desespero e a razão por eu ali me encontrar, recebe um recado telefônico com aquele apelo, se acomoda, senta a bunda em cima daquele número de telefone, e só me repassa o recado no dia seguinte praticamente à noite. Reclamei com ela. Poderia muito bem ter colocado um bilhete sobre aquela mesinha do meu quarto ou debaixo da minha porta assim que recebeu tal ligação. Não lhe custaria nada. Aquilo me preocupava, já que naqueles currículos que eu distribuía o meu telefone de contato era aquele do hotel, obviamente, depois de ter tido autorização daquela proprietária.

Depois analisei bem e vi que deveria tornar irrelevante aquele meu desapontamento inicial, reconhecer que aquele radialista nada tinha a ver com os meus problemas pessoais, a minha frustração, e que fui eu que tomei a iniciativa de participar daquele Concurso de Frases. E pensando bem, se eu me programasse direitinho, aquele passeio não me traria nenhum custo adicional, desde que o trajeto de ida e volta a Salvador fosse realizado de carona. Além do mais, não via o porquê de subestimar aquele montante de cervejas gratuitas, além de poder degustar sem custos de um ou outro tira-gosto do lugar. Além do mais, almoço e jantar era por conta da casa. E eu poderia gozar apenas de parte daquela premiação. Ficaria apenas de sábado até as primeiras horas da manhã do domingo. Levaria o livro. Já até antevia minha tarde naquela pousada, e na manhã daquele domingo: chinelo de dedo, cerveja gelada, peixe assado, e aquele livro sendo devorado por todos aqueles momentos. No domingo levantaria pela manhã, tomaria o café, ficaria por ali mais umas duas horas aproveitando daquilo que me foi oferecido, depois me encaminharia para a BR para retornar de carona novamente para aquele interior. Apanhei o telefone e fiz minha reserva para aquele final de semana mesmo.

No sábado pela manhã, como de costume. acordei cedo, apanhei minha mochila, coloquei nela pares de camisas, shorts, cuecas, meias, uma Havaianas e calcei aquele surrado tênis. Desci para tomar o café do hotel, depois seguir para aquela estrada que me levaria a Salvador, isso se sorte eu tivesse naquelas tentativas de pegar carona.

Ali e naquele momento, encontrei novamente com aquele meu amigo do dia anterior, o Antônio. Ele era de Taubaté, estava ali fiscalizando uma obra no polo. Disse-lhe sobre o fato de eu ter vencido aquele concurso, o convidei para que fosse comigo, mas sabia de antemão que aquele convite não seria aceito, já que ele trabalhava praticamente de domingo a domingo. Nos dias de semana nunca que chegava em casa antes das nove da noite. Disse-lhe que aceitava aquelas suas desculpas, combinamos que ele me procuraria naquele domingo à noite assim que ele chegasse do trabalho para tomarmos mais daquelas cachaças com tomate de tira gosto, que ele sempre tinha em seu quarto. Fui de carona com ele até aquele trevo daquela estrada que me levaria para Salvador, e foi uma gentileza, já que aquele não era o trajeto original de ida para sua empresa.

Ainda sobre meu colega Antônio, ainda sobre o fato dele nunca chegar antes das nove da noite, mas era ele chegar, que ele ia lá no meu quarto levando sempre uma garrafa de cachaça diferente, ou mesmo, já até as deixavam lá, e um prato com tira-gostos que ele mesmo preparava naquele bar anexo ao hotel, onde predominava o tomate, já que ele tinha na empresa aqueles subordinados que lhe agradavam sempre presenteando-lhe com aquelas bebidas. Ele tinha muita liberdade naquele buteco, pois ele empregou os dois filhos daquele proprietário. E assim, toda noite, cada um de nós dávamos uma meia dúzia de “talagadas” naquelas cachaças ouvindo o Taiguara naquele seu pequeno aparelho de som portátil, pra depois dormir.

Carros e caminhões passavam sem ao menos se darem ao trabalho de responderem aquele meu sinal característico de caroneiro. Era experiente naquele tipo de locomoção, de transporte, afinal de contas, passei três anos da minha vida estudando curso técnico fora da minha cidade, em Ipatinga, e aqueles traslados de ida e volta entre aqueles dois municípios, eu os fazia de carona. Aliás, essa era a forma de viajar de todos nós estudantes da minha cidade.

Havia chegado àquela estrada pouco depois das sete horas da manhã, e naquele momento meu relógio marcava pouco mais de oito horas. Três ou quatro ônibus com destino a Salvador pararam naquela BR para embarcar um ou outro passageiro. Tinha comigo que, se eu tivesse que ir para aquela cidade, por questões de custos, jamais eu iria embarcar num deles. Estava fora de cogitação. No dia anterior havia estipulado o tempo máximo que ficaria naquela estrada, e já se aproximava daquele horário. Desistiria, retornaria para o hotel. Contentar-me-ia em poder ficar apenas contemplando a beleza um tanto quanto juvenil da Sheila, filha da dona do hotel, radiante flor que se desabrochava e debutava no esplendor daqueles seus dezesseis anos de idade.

Reparei que o livro que separara para levá-lo, que não me lembrava de tê-lo guardado em minha mochila e fui verificar seu interior. Fiquei de costas para a BR, inclinado sobre minha mochila, já que ela se encontrava colocada sobre meu tênis, que era a melhor forma de ali abri-la e não sujá-la no pó acumulado no chão daquele asfalto. Nem notei que bem em minha frente, questão de uns cem metros após, havia estacionado um automóvel. Era um Opala de cor verde, novo, carro potente, e deveria ser o que de mais moderno e luxuoso existia nas concessionárias. Inexplicavelmente aquele automóvel estava estacionado ali em frente, e tinha sua porta do lado do carona semiaberta. Assustei-me com aquilo, já que eu não conhecia ninguém na cidade que tivesse um veículo daquele porte, e muito menos tinha intimidade com alguém o suficiente para que ele ficasse buzinando esse veículo como que chamando a minha atenção, e ao mesmo tempo mantivesse sua porta aberta como que num convite para que eu ali adentrasse. A única pessoa que poderia ser, seria o Antônio, mas seu carro era um fusca bastante “regaçado” alugado de uma locadora. Definitivamente não seria mesmo ele, já que naquele caminho ele havia me dito que passaria aquela manhã toda ouvindo “abobrinha” em uma reunião com todo o setor de projetos da COPENE. Sua empresa tinha montado um projeto por um desenho desatualizado, e iriam “rolar cabeças,” segundo havia me dito.

Naquele momento não existia mais ninguém naquela estrada além de mim. O que o dono daquele veículo poderia estar querendo comigo? Poderia ser, quem sabe, que aquela pessoa estivesse me confundindo com alguém. Desconfiado e um tanto melindroso caminhei em direção àquele automóvel. Não tinha a menor noção do que me esperava. Estava convicto de que aquele veículo me aguardava. No trajeto senti que eu deveria estar sendo monitorado pelos seus retrovisores, já que aquelas buzinações cessaram. Fiz questão então de caminhar ficando na mira deles de uma forma que, a pessoa reconhecendo por ali aquela sua confusão, arrancaria aquele veículo antes de minha chegada até onde ele se encontrava estacionado.

Aproximei-me, era a Rafaela, que imediatamente disse-me:

- Entre ai!

Perguntei-lhe para onde ia, e ela me respondeu:

- Entre!

E falou-me aquilo agora de uma forma ainda bastante imperativa.

Entrei por aquela porta. Era um Opala Comodoro, bancos de couro, com aquele agradável cheiro de carro novo. Invejável. No rádio do carro, e numa baixa tonalidade, tocava uma música da Nara. A estação de rádio de onde vinha aquela agradável música se chamava Rádio Educadora de Salvador. Nela só tocava música brasileira.

Justificou dizendo que não havia respondido aqueles meus questionamentos naquele momento, porque tinha certeza que se eu não estivesse indo para Salvador, que era o seu destino, que eu estaria voltando para Minas. Falei-lhe que já lhe havia dito anteriormente que para Minas não voltaria mais. Depois ela explicou-me que em cidades pequenas como aquela, não era aconselhável que mulheres casadas ficassem parando para dar carona para jovens em margens de estradas que a acessava, por isso me apressou.

Quis saber para onde eu estava indo naquela cidade, respondi-lhe, mas antes lhe contei detalhadamente sobre o fato de eu ter vencido aquele concurso, e no final ela me parabenizou. Disse-lhe que eu entraria na pousada naquela manhã e retornaria para aquele interior no outro dia. Falei-lhe o nome da pousada, e que ela se situava numa praia de nome Buraquinho, e que depois de vários dias estando na Bahia, senti que precisava distrair-me um pouco, dar uma espairecida, sair daquela rotina do hotel e da inalterabilidade daquela minha situação. E complementei: - Estou indo porque não terei custos.

Comentou que conhecia aquela praia, como também aquela pousada, embora aquelas acomodações que ela tinha frequentado, não deveriam ser mais as mesmas. Que era um local com excelente estrutura e que antes tinha-se dificuldade de se conseguir vagas lá na alta temporada. Que numa daquelas suas vindas a Salvador, tinha conhecido aquele local, pois participou de um seminário sobre algum ramo da psicologia naquele lugar.

Então lhe perguntei:

- E onde você está indo?

Perguntei-lhe, embora soubesse que provavelmente qualquer que fosse seu destino, eu não teria a mínima noção onde se localizaria naquela cidade. Tinha comigo que aquele era um momento único, que teria que mudar o conceito que aquela mulher tivera sobre mim, já que eu havia chegado à conclusão de que aquele seu “tímido” teria sido uma reprovação ao meu comportamento retraído naquele dia. Daquela vez, estava decidido fazer uma mudança em minha maneira de proceder junto àquela mulher. Além do mais, uma coisa era eu estar dentro de sua casa e numa situação daquela, agora estamos nos encontrando numa situação rigorosamente diferente. Teria sim que ser mais atirado, mais audacioso, descartar todo e qualquer tipo de acanhamento, embaraço, e estar mais seguro de mim. E eu tinha certeza que eu não era de natureza assim tão inibida, simplesmente daquela vez eu estava assustado com a rapidez com que tudo aquilo estava acontecendo. Teria agora dentro daquele carro que alimentar aqueles assuntos indistintamente, seja lá sobre o que se falasse. E acima de tudo, principalmente, ter o cuidado com o que falar. Aquela era uma oportunidade ímpar. Alguns não gostam ou simpatizam com pessoas falantes, outros com aqueles que muito ostentam, tem aqueles que evitam aqueles que contam muitas vantagens, e aquela mulher, e porque eu não sabia, talvez não se sentia à vontade próxima de pessoas demasiadamente acanhadas. E ela era uma autoridade nesse assunto. Diria até, seriam “ossos do ofício”, afinal, quantos de nós em nossa profissão não sentimos uma aversão natural por algo que é tarefa da gente, obrigação nossa, e que temos repugnância em executá-la?

Foi assim que passei a ver tudo aquilo que tinha acontecido. Era meio que paradoxal, já que ela tinha formação profissional para se dar com esse tipo de gente. Quem sabe, aquele era o tipo de caso com que ela se deparava com frequência dentro de seu consultório, e que ela não tinha nenhuma paciência ou vontade de ter que conviver com esse tipo de pessoa do lado de fora. Poderia ser isso, e porque não? É importante deixar claro que ela tinha feito naquele dia aquela observação, mas não foi agressiva em nenhum momento. De repente ela quis somente ser irônica ou mesmo mordaz. Talvez quisesse fazer uma provocação qualquer, sei lá, também era possível. Vá entender cabeça de psicólogas.

E ela me respondeu;

- Vou a um daqueles shoppings. Semana que vem vai ter um casamento numa cidade aqui da Bahia de nome Serrinha, e eu e o Armando seremos padrinhos. A noiva é minha amiga. É também psicóloga junto comigo na cidade de Simões Filho. Vou lá ver se encontro alguma roupa que eu goste e um presente para os noivos.

- Volta hoje ainda para Dias D’ávila?

- Não. Combinei com a Fernanda, a tal noiva e psicóloga, para irmos à praia amanhã, isso depois das dez, pois antes temos que assistir uma palestra ali no centro administrativo. Devo voltar para essa cidade apenas na parte da tarde do domingo. O Armando ficou com as crianças. Ele craque pra tomar conta delas. Ficam melhor com ele, que comigo.

Depois de observar internamente aquele veículo mais detalhadamente, disse-lhe:

- Eu não tinha visto esse carro em sua garagem naquele dia, por isso não lhe reconheci.

- Ele estava em Feira de Santana fazendo revisão de 10 mil quilômetros. Foi um presente do meu marido.

Perguntou-me então como que eu faria para chegar até aquela pousada, o que lhe respondi que fiquei sabendo que existiam ônibus executivos que faziam um trajeto naquela direção de hora em hora, e eu pretendia embarcar em um daqueles em frente ao Shopping Iguatemi.

- E você sabe como chegar àquele Shopping?

- Saindo daqui não sei. Óbvio, se eu tivesse indo de ônibus, saberia. Seria somente atravessar aquela passarela, e continuei:

- O Iguatemi é o único ponto turístico que tenho noção aqui na Bahia onde se localiza, já que ele é vizinho à rodoviária, e conheci ambos da primeira vez que aqui estive.

Perguntou-me sobre minha família, se tinha deixado namorada em Minas, se gostava de Belo Horizonte e porque escolhi a Bahia. Ainda conversamos sobre músicas, livros, sua atuação no Maracanãzinho naqueles folclóricos festivais da década de 60, sua militância política nos movimentos estudantis naqueles anos de chumbo, e que dizia ter sido na época uma das expoentes da UNE. Falou-se sobre Tancredo, que era o atual governador de Minas, do acidente aéreo que vitimou o candidato ao governo da Bahia Clériston de Andrade, de ser brizolista, e por fim, como conheceu seu marido e de suas viagens ao exterior. Ao chegar “na Bahia”, como diria aqueles diasdavilenses, pedi-lhe que me deixasse onde eu pudesse apanhar um ônibus que me levasse até aquele Shopping.

Disse-me para que eu não me preocupasse, ela tinha o dia todo para ir às compras, não tinha marcado horário com a Fernanda, e que ela não se importaria em me levar àquela praia.

Falei-lhe para não se preocupar comigo. Que já estava bom demais aquela carona, e que ela me deixando próximo ao Iguatemi, já seria o suficiente, e que o resto seria comigo, o que ouvi dela em tom de brincadeira:

- Poucas vezes fui descartada assim tão rispidamente.

Óbvio que ri daquela sua colocação, respondendo-lhe:

- Se existe uma mulher em que jamais eu me atreveria em descartá-la, ela está no volante desse veículo agora.

E obviamente disse tudo aquilo seguido de um breve sorriso que faria com que eu fosse interpretado de forma ambígua. Se ela reprovasse vendo aquilo como precipitação e atrevimento, diria que era brincadeira, que ela não podia me levar a sério. Se calasse ou tolerasse, meu sorriso poderia ser interpretado por ela como um ato de ousadia indo de encontro àquele seu conceito de ser eu uma pessoa introvertida. E complementei:

- E dirigindo numa velocidade bem acima do que estou acostumado...

- Olha só, achei que o garoto fosse tímido. Aquilo era apenas jogo de cena? E deu um sorriso.

Um sorriso espontâneo. Aliás, quando ela sorria, parecia que o mundo todo lhe sorria junto: àquelas montanhas, aquele pouco de mar que às vezes se via pelo caminho, aquela estrada, tudo. Se não lhes sorriam juntos, me faziam companhia ao admirarem também todo encanto daquele seu sorriso.

Na realidade não sabia de onde tirei tanta coragem para falar-lhe daquela forma. Era o garoto tímido agora se atrevendo. Também não sei se aquilo poderia ser considerado uma ousadia maior. Mas eu tinha que arrumar uma forma de poder demonstrar para aquela mulher toda aquela admiração que eu tinha por ela. E isso era fato!

Seu silêncio reinou por um momento o qual me parecia uma eternidade, o que me fez temer pelo pior, e do nada aquela mulher se indignar por se sentir desrespeitada por eu ter sido um tanto ousado, ou mesmo se sentir no direito de achar que ela não me dava tamanha liberdade. Continuou mirando aquela estrada, ultrapassando quem estivesse pela frente e acelerando ainda mais aquele possante veículo.

- Você não tem medo do meu marido? Ele parece calmo, mas vira uma onça se bulirem comigo. Disse-me.

Calei-me, não lhe respondi.

Pensei:

- Ela criou toda aquela expectativa para me responder algo tão simplório?

Continuei olhando para o que existia do lado de fora daquela estrada, tentando não pensar naquilo que ela acabara de dizer.

Respondi-lhe:

- Tenho, lógico! Sou muito lhe agradecido. Ele e a você.

E continuei:

- Mas isso não me impede que eu possa lhe achar bonita.

- Pois bem, meu caro, não fizemos nada. Aquilo era nossa obrigação.

- E complementou:

- Quanto a bonita...

E deu de ombros, não dando continuidade aquele meu comentário.

Confessei-lhe então que no dia estava tenso por não conseguir desvencilhar-me de seu marido naquele momento, quando notei que ele me levaria para sua casa, e disse à Rafaela:

- Como levar para dentro de sua casa uma pessoa que ele não tinha nenhuma informação sobre ela, simplesmente pelo fato dele ter apartado uma briga sua?

- Você não a apartou. Pelo menos se o que ele me disse foi verdade.

- Tudo bem, mas mesmo assim não justificava com que eu aceitasse e fosse.

E continuei.

- Tudo já tinha sido resolvido, acordado e recompensado em meio àquelas nossas conversas testemunhadas por aquelas cervejas que tomamos logo após aquele imbróglio, naquela churrascaria, o que, poder-se-ia considerar que aquilo ali já tivesse sido o nosso acerto de contas, e dali mesmo já poderíamos nos despedir.

E ela respondeu:

- Ele tinha preocupações com a sua integridade física, e foi o que ele demonstrava.

Então ela disse naturalmente, já mudando um pouco de assunto:

- Pra te dizer a verdade quando te vi ali na minha cozinha, e atendendo o chamamento do meu marido para que eu providenciasse a arrumação do quarto de hóspedes, eu poderia ter dito para uma daquelas minhas serviçais que arrumassem aquele quarto, como sempre fiz, e deixar para me apresentar àquela pessoa que seria meu hóspede numa outra oportunidade, ou ser apresentada pelo meu marido quando saísse do banho. Como o que eu previa aconteceu, que era você querer sair da minha casa muito cedo no outro dia, e eu não saberia quem havia dormido lá, e como passei pelas outras repartições da casa e não te vi, e eu queria saber quem era aquela figura, a cozinha era o único lugar que eu ainda não havia ido ainda saber quem era aquele tal hóspede que abruptamente apareceu em minha casa, já que meu marido saiu sozinho, e pouco depois voltou acompanhado de sua companhia.

E continuou...

- Estranho né? Mas são coisas da cabeça de psicólogas, algo que você talvez não irá conseguir assimilar bem. Entender.

Aquilo me soou agradável, confortável.

Foi quando lhe disse que havia até tomado remédio sem necessidade em sua casa, e ela me respondeu que aquele não foi um remédio desnecessário, talvez para aquela desculpa que você deu, dor de cabeça, sim, ele não teria nenhuma eficácia mesmo não, mas ele era um um relaxante, que era o que eu via que você necessitava devido a sua tensão desde o dia anterior. E continuou:

- Eu poderia ter-lhe repassado aquele remédio no dia anterior. Mas aquela bebedeira sua ali não combinava com aquele antidepressivo. Por isso ele só foi lhe dei no outro dia.

E a Rafaela continuava com a palavra:

- Vejo-lhe como um jovem muito inteligente e corajoso. É jovem, mas não tem medo de enfrentar as adversidades que o mundo nos impõe. E coragem não no sentido de bravo, destemido, de forma alguma, mas no sentido de ter valentia para enfrentar situações hostis, desfavoráveis. Se não você não estaria aqui agora.

Diante de análises assim tão técnica, eu não me atrevia nem mesmo em abrir a boca, já que ela era autoridade no assunto. Poderia mesmo até discordar, mas lógico, mas ficar calado.

E ali seguia aquele possante por aquela estrada ultrapassando automóveis, motos, ônibus e caminhões, e o que tivesse pela frente, com aquele seu ponteiro nunca abaixo dos 150 km/h.

Ai, vendo que ela tinha dada uma pausa, falei-lhe:

- Sabia que fiquei pensando naquele seu “juizo” que me aconselhou naquele dia que estava saindo de sua casa?

- Não lhe disse aquilo por dizer. Quer uma prova? O que fez você ter ido pernoitar em minha casa naquele dia?

- E continuou:

- Meu caro, existem diversas pessoas más nesse mundo. Você é destemido sim, mas um tanto quanto inocente. Não tem muita noção do perigo! Disse-lhe aquilo porque eu não queria ver você sendo tragado por todo esse turbilhão aqui do lado de fora, e querer resolver tudo ao seu modo, meio que impulsivamente.

- Agradeço-lhe por se preocupar comigo.

E continuei aproveitando aquela “deixa”:

- Perigo? Questionei-lhe.

E eu precisava colocar um tempero a mais naquele nosso papo, posto que, eu não tinha noção em que altura estávamos, se estávamos chegando ou não àquela praia, e estava ciente que uma oportunidade daquela jamais eu iria ter novamente junto àquela mulher. E continuei naquela minha “tagarelice”:

- Perigo é você mulher!

- Entenda bem, não uma mulher perigosa e sim um perigo de mulher. Na realidade outros homens já pensaram como eu diante de você, lógico! Perigo no sentido de que aquele que cair em sua teia, em sua rede, não se livrará dela jamais.

Ela foi taxativa em sua resposta:

- Menos!

E continuei;

- Quem sabe eu tenho em minha frente aqui a Helena, a Rainha de Tróia dos dias atuais? A mais bela das mulheres?

Agora já dando vazão àquela descontração, ela então me interrompeu dizendo-me que ela não causava a guerra, numa clara alusão àquela da Mitologia Grega. E complementou:

- Sou da paz.

- Ok, tudo bem, que você não faça lá aquela guerra estilo Tróia, mas que sua beleza e seu poder de persuasão dilaceram corações por inteiros... mesmo que você se trabalhe para que isso não aconteça, disso não se tem dúvidas... e você é consciente disso, afinal de contas, quem tem base e estudo para entender tudo isso é você.

- Fala bonito. Nem parece ter estes seus 22 anos que não tem como negar-me, já que estive em mãos naquele dia com aquele seu currículo que deixastes na responsabilidade do meu marido.

- Só que 22 anos não pode ser um empecilho. Disse-lhe.

- Na verdade, deveria ser. Assim respondeu ela. E continuou:

- Mas ao que parece, eu estou deixando as coisas serem levadas...pra ver no que vai dar. Mas definitivamente não poderia ser por aí...

Pensei comigo: Se ela falou ali através de metáforas, eu vou me sentir no direito de interpretar o que ela disse da minha forma, e admitir que eu estava no caminho certo.

Naquele momento já havíamos passado pelos bairros de nomes Stela Mares e Flamengo, conforme placas pela estrada. Outras diziam que estávamos próximo à Praia de Buraquinho, e era também o que dizia aquela mulher.

Saímos então da Estrada do Coco e acessamos uma outra vicinal, de terra, areia, meio que intrafegável, que nos levaria àquela praia. Menos de dez minutos depois ela parou seu veículo cuidadosamente como se tivesse cumprido uma obrigação, um dever, os olhos mirando aquele mar estupendamente azul, e com o motor do seu carro ainda ligado, disse-me:

- Tá entregue!

Falei-lhe que eu não teria companhia naquele lugar, embora tivesse direito de levar uma pessoa comigo, e que aquela nossa conversa estava sendo proveitosa e reveladora, sugerindo-lhe que descesse, ficasse ali naquele lugar por um curto período para continuarmos aquele papo. Tomaríamos uma cerveja, comeríamos algo, depois ela iria ao encontro de sua colega. Ela comentou que sua amiga morava perto, em Itapuã, que não se preocupava muito, já que quando quisesse, em quinze minutos no máximo, ela estaria em sua porta. E encostou seu carro junto àqueles outros que ali já se encontravam.

E ainda comentou;

- Sorte que trouxe um biquíni. Os outros ficam permanentemente na casa da Fê, já que eu só faço uso deles estando em Salvador.

Entramos para aquela dependência onde ficava a pousada, mas antes eu me apresentei naquela recepção e disse quem eu era. Tive então uma bela celebração, elogiaram a frase que enviei e saiu vencedora, puxaram algum assunto, depois pediram que um funcionário me acompanhasse. Antes de ir, aquele funcionário me disse que depois eu seria procurado para uma seção de fotos. A Rafaela só se juntou a mim depois que aquele funcionário me acompanhou até a mesa que eu escolheria naquele bar.

Era um lugar sossegado, sereno. Parecia ser apropriado para casais, ou famílias com crianças pequenas. Todos os chalés, cerca de uns quinze, eram rigorosamente iguais, e se diferenciavam pelas suas cores. Eram identificados com nomes de cantores da MPB, e distanciavam cerca de uns vinte metros um do outro. Eram independentes, tinham churrasqueiras particulares, locais apropriados para se pendurar redes, e se situavam debaixo de coqueiros, cajueiros e outras árvores. Existia ali para a criançada brinquedos feitos com pneus usados e pintados em diversas cores, passarelas feitas de cordas com seus guarda-corpos formados também por cordas. Banquinhos e mesas de madeira se espalhavam por todo aquele terreno formado por uma areia muito branca e fina. Nos cantos, naqueles muros altos, nas divisas com o outro terreno do lado, encostados neles, existiam viveiros repletos de aves exóticas. Sobre aqueles viveiros, soltos e do lado de fora, pássaros nativos aproveitavam aquelas sobras. Outros, por serem de menor porte, entravam e saíam por aquelas telas quando bem entendiam. Três piscinas grandes um tanto separadas uma da outra, e diversas pequenas, formavam aquele cenário.

Estávamos ali assentados em banquetas de uma mesa debaixo de uma ampla choupana, que se situava em um nível mais elevado e no máximo uns cem metros de todos aqueles chalés. Tinha ali fixado um taxativo aviso: “Este bar encerra-se suas atividades impreterivelmente às 23:00 horas.”

Naquelas caixas de sons espalhadas por aquele local ouvia-se numa tonalidade agradável desde que ali chegamos uma seleção de músicas especiais, mais especificamente Música Popular Brasileira, e numa espécie de total coincidência naquele momento estava sendo executados os primeiros acordes da música “Todo Azul do Mar”, aquela mesma canção dos alto-falantes daquela pracinha, com o Flavio Venturini poeticamente confidenciando à sua amada que, “seria como se estivesse vendo o mar da primeira que seus olhos se viram no olhar daquela amada”. Na realidade não existiria momento mais apropriado, mais adequado para se ouvir àquela canção, e óbvio, como não poderia deixar de ser, ela não passou despercebida pela companheira, já que a Rafaela comentou que “adorava aquela música”. E óbvio não tinha como se ouvi-la ali sem que, às vezes, nossos olhares se cruzassem mais demoradamente. E continuava o poeta; ...” Não tive a intenção de me apaixonar, mera distração, e já era, momento de se gostar” ... e tome-lhe corações sendo dilacerados pela "Todo azul do mar".

Só fomos interrompidos quando de longe daquele chalé foi dado para mim um sinal de positivo de que aquela minha acomodação estava pronta exatamente no horário que me disseram que ficaria à minha disposição, e aquele gerente veio me entregar suas chaves precisamente às 10h30min, dizendo-me, já que naquele momento eu conversava com um garçom: - As chaves estão com a sua esposa. Além disso, disse que mais tarde, quando o radialista chegasse, que haveria uma seção de fotos, e nela seria ideal que eu fosse fotografado com minha mulher.

Em nenhum momento houve alguma ingerência da Rafaela para tentar desmentir o engano na colocação daquele gerente. Ficou calada. E óbvio, eu a acompanhei, e aceitei de bom grado a observação daquele profissional.

Para quebrar um pouco aquele clima, e entrando naquela onda, depois que garçom e gerente se afastaram, a Rafaela disse que, como esposa, exigiria que fosse avisada com antecedência na hora da seção de fotos, para que pudesse retocar a maquiagem. Não tinha como não rirmos daquele seu comentário.

Dali ela pediu licença, se levantou, e foi naquele telefônico público ligar para o marido para avisar que já estava em Salvador. Após o seu retorno ela não disse nada. Eu também nada perguntei.

Como eu estava ali para desfrutar das vantagens de ter ganhado aquele prêmio, depois que me apresentei na recepção da pousada, nem precisou que fosse solicitada à administração alguma autorização para que a Rafaela ali também frequentasse, já que eu tinha direito a uma acompanhante, o que em princípio eu nem tinha levado isso em consideração. Naquele momento foi exigida minha identidade, preenchi alguns documentos, inclusive endereço completo, e tinha que ser o de Minas, do hotel não era aceito, e não foi exigido nenhum documento da minha acompanhante. Saímos daquela recepção que se localizava antes daquela portaria comentando aquela estratégia de aquele estabelecimento não exigir documentos de acompanhantes.

Depois de pedida a segunda cerveja, ela, a Rafaela, se levantou-se novamente, e retornou àquele telefone público, só que agora demorou bem mais ali. Voltou de lá dizendo que a Fernanda viria também para aquele lugar assim que fizesse seu supermercado, e que ela “queria me conhecer”.

Óbvio que aquela demora da Rafaela ali naquele telefone público com a Fernanda, isso bem antes dela ter vindo ao nosso encontro naquela praia, com certeza deve ter sido consequência do fato dela ter que explicar para sua amiga o porquê dela se encontrar ali, e eu também, e porque houve essa coincidência. Além do mais, do mais, com aquele telefonema, ela sabia que a amiga saberia contornar, caso o marido lhe ligasse na casa daquela, e ela ainda estivesse ausente.

Perguntei-lhe se viria com o noivo e ela me respondeu que seu noivo àquela hora estaria longe, morava em Itabuna, e comentou:

- Desconheço alguém mais ciumento.

Ao me dizer que sua colega queria me conhecer, perguntei-lhe o porquê, e ela me respondeu que provavelmente ela deve ter falado sobre mim com a amiga. Depois ela corrigiu dizendo que nada de provavelmente, ela falou sim.

Menos de duas horas depois estacionou justamente atrás daquele Opala bloqueando a saída daquele carro, um Passat Surf da cor branca, como que se a pessoa conhecesse o proprietário daquele veículo ali da frente, e dele desceu já de biquíni, toalha nas mãos, e uma bolsa dependurada nos ombros, que parecia ser feita de palha, uma estonteante mulher. A Rafaela então me disse ser a Fernanda Alves. Antes que ela chegasse até nós, fiz um gracejo junto à Rafaela perguntando-lhe se ela não tinha como evitar o casamento dela no sábado seguinte. Embora fosse uma pessoa extremamente bem humorada, notei que ela não teria assimilado muito bem daquela minha brincadeira. Pedi-lhe desculpas pela inconveniência. Então, assim que chegou, fui apresentado àquela pela Rafaela.

Aproximou-se então alguém da administração dizendo-me muito educadamente que aquele chalé era apropriado apenas para duas pessoas. Que ele me trocaria por outro. Respondi-lhe que aquelas mulheres só me fariam companhia ali durante o dia, e aquele funcionário levou àquela informação à sua gerência.

A Fernanda morava só, e não era raro que a Rafaela lhe fizesse companhia naquele apartamento, como ela havia me dito antes. Quando aos finais de semana ali ela comparecia junto com seus filhos, dizia-me que pela manhã frequentava um clube nas proximidades de nome Costa Verde, e à tardinha acompanhada da amiga, dava uma voltinha pela Praia de Itapuã e Piatã com as crianças. Aos domingos a tarde voltava para o interior. Naquele final de semana optou por ir sozinha, pois “teria que conversar com a Fernanda”.

Ficou combinado ali então entre as duas que elas não iriam mais àquele shopping naquele dia e nem no outro, já que aos domingos suas lojas não abriam, dizendo que aquele sábado teriam tirado “por conta”. Mas que a Rafaela se comprometeria a ir àquela cidade na terça feira seguinte, já que esse era o dia que ela prestava serviços à Prefeitura de Simões Filho, cidade próxima a Salvador, pois teriam muito que combinarem.

E lá ficamos gozando daquelas belezas naturais, daquelas que tiveram interferência do homem, e desfrutando daquela moqueca, daquelas cervejas geladas e de uma ou outra caipirinha. Mantínhamos os pés ligeiramente enterrados naquela areia de incomparável brancura, saboreávamos daquela água de coco e do mar incrivelmente azul daquele aprazível lugar. E como não poderia deixar de ser, ouvindo incansavelmente a “Todo Azul do Mar”, que por ser uma música que fazia muito sucesso, a todo o momento era executada.

Embora soubesse que não poderia fazer mais daquele tipo de brincadeira, quando uma ou outra, ou ambas se levantavam para dar um mergulho, ou mesmo se molharem naquele chuveiro, via-se que elas chamavam a atenção de todo o bar causando aquele alvoroço nos maridos das outras e demasiada preocupação em suas mulheres. Falei-lhes isso depois de retornarem do mar para apanharem aquela chave que estava sobre a mesa, e irem conhecer o interior daquele chalé. Apenas sorriram. Voltaram encantadas com aquela acomodação. Ambas eram sim, quando ali estavam assentadas, e principalmente quando se levantavam, o mais completo desfile de beleza e sensualidade de duas mulheres.

Veio então o momento que a Fernanda disse que teria que ir embora. Ela tinha naquele final de semana também a companhia de sua mãe que viera da cidade de Serrinha para passar com a filha aqueles seus últimos dias de solteira, e ajudar nos preparativos de seu casamento. Era um segundo casamento da Fernanda. Ela não tinha filhos.

Eram os últimos momentos dela ali naquela área da pousada. Eu estava apreensivo pela chegada daquela hora. Era um momento de decisão, de definição. A Fernanda teria que ir, afinal de contas, sua mãe se encontrava na cidade.

Então a Fernanda disse:

- Chegou a minha hora. Aliás, passou... disse para minha mãe que no máximo as seis da tarde estaria em casa, e já são quase oito horas. Vamos então Rafaela?

- Vamos! Respondeu a outra.

Levantaram-se. A Fernanda recolheu uma cadeira de praia que havia trazido, e o garçom levou consigo um documento que me trouxera e que eu o assinei, e que nos isentavam de pagarmos toda aquela conta, já que o que foi consumido era de um valor inferior àquele que eu teria direito pela minha premiação. Levantei, tiramos a areia de nossos pés naquele chuveiro, e caminhamos lentamente para aqueles dois veículos, com a Fernanda sempre caminhando propositadamente de três a quatro passos a nossa frente.

Antes, um tanto que inadvertidamente, o proprietário daquela pousada interrompeu-nos naquele caminho em direção àqueles veículos dizendo que precisava, e por questão de marketing e propaganda daquela sua pousada, de que fôssemos fotografados ali para poder enviar para sua agência de publicidade, o que, lógico, ambas não quiseram, e óbvio, não era aconselhável que aparecessem, e ficou combinado de que na manhã seguinte eu seria fotografado para que a pousada difundisse, divulgasse, aquele seu espaço e aquele seu concurso de frases.

No caminho rumo àqueles dois automóveis, notava-se claramente que a Rafaela se tornara pensativa, um tanto contemplativa, absorta, e então me perguntou:

- Você vai ficar?

Respondi-lhe:

- Porque você tem que ir?

E concluí:

- Fique!

Tal como procedera comigo naquela manhã quando entrei por aquela porta daquele seu veículo, disse-lhe aquilo também um tanto quanto imperativamente.

Ela se manteve pensativa.

Nisso a Fernanda que ouvia toda aquela conversa sem mesmo olhar para trás, disse-lhe:

- Fique! Eu é que não posso ficar. E complementou:

- No mais, deixe o resto comigo.

- Vou ficar!

Ao ouvir da Rafaela aquela afirmação, aquele seu consentimento, a caminho daqueles veículos, puxei-a respeitosa e carinhosamente pelo braço um pouco mais pra perto de mim, já que ela caminhava um passo em minha frente, levando-lhe meus braços sobre seu ombro, e imediatamente o recolhendo, e esse foi o momento que mais próximo fisicamente estivemos publicamente. Disse para a Fernanda em tom de brincadeira que não se preocupasse, que eu tomaria conta de sua amiga da melhor maneira possível. Ela então entrou naquele seu veículo ainda de biquíni, porém com uma toalha amarrada um pouco abaixo da cintura, e arrancou aquele seu veículo deixando para trás sua futura madrinha de casamento.

Era exatamente oito horas da noite. Decidimos então que recolheríamos àquele chalé, tomaríamos um banho e que não beberíamos mais. Acessamos então àquela casa de madeira envernizada. Acordamos no outro dia às onze horas da manhã. Aliás, eu a acordei naquele horário, já que ela havia dito em algum momento já muito tarde na noite anterior, que precisava de dormir, “que eu a deixasse dormir pelo menos um pouco”, pois teria de todas as formas de estar de pé logo pela manhã, para ir àquela palestra.

A Rafaela não foi àquela palestra, lógico, assim como também a sua colega, isso ela ficou sabendo após ligar para aquela, para saber se haviam notícias de sua casa. Mas foi almoçar, como combinado, na casa da Fernanda, pois tinha o compromisso de conhecer a sua mãe.

Voltei de carona para aquele interior com a Rafaela no domingo, e bem de tardinha. Depois de combinado no iniciozinho da tarde daquele dia, ela retornou àquela pousada e me apanhou. Durante a viagem de volta viemos calados tal qual naquele dia em sua cozinha. Ao volante a Rafaela apenas refletia. Ela tinha vivência, tinha formação, sendo uma mulher muito lúcida, e sabia muito bem o que queria, o que não queria, o que podia, o que não podia. Era consciente e responsável pelos seus atos, mas notava-se claramente que lhe brotava um sentimento de compunção, de pesar. Talvez de arrependimento. Sei lá! E eu não tinha o que falar. Faltava-nos assunto. Deveria lhe invadir algum sentimento de culpa, remorso, mas ela não falava nada. Eram, como bem dizia o ditado, “flechas já lançadas”.

Já anoitecendo, deixou-me na porta daquele hotel em Dias D’ávila.

Acessei meu quarto, sobre uma escrivaninha, debaixo de um pequeno cinzeiro de vidro que lhes serviam de peso, havia um bilhete da Dita sobre duas folhas timbradas de uma empresa unidas por um clip. Naquele bilhete ela diz que recebeu aqueles documentos exatamente às oito horas da noite daquele chuvoso sábado de um senhor que dirigia um Monza preto novo. Uma folha era uma autorização para eu fazer exame médico admissional na cidade de Camaçari naquela segunda feira pela manhã, a outra era a relação de documentos que eu teria que apresentar um dia depois, terça feira, para eu ser admitido na mesma empresa que trabalhava o Armando Mascarenhas no Polo Petroquímico de Camaçari. Nas costas daquela segunda folha, e que só percebi mais depois, tinha o seguinte recado num Papel Adesivo Amarelo:

“Meu prezado: Tentei junto ao Chefe do Setor de Projetos uma vaga para você. Ouvi dele a justificativa de que seu setor estava proibido de fazer contratações pelos próximos seis meses. Recorri então ao Diretor Geral da Empresa, um amigo meu, e ele resolveu abrir exceção naquela norma para lhe contratar. Um abraço. A Rafaela lhe envia outro. Amando Mascarenhas.”

Deitei-me de costas, de roupa e tudo, e ainda calçado naquela cama, com minha cabeça atrás sendo apoiada pelas palmas da minha mão. Ali fiquei observando aqueles pernilongos que ali se encontravam pousados naquele teto branco. Passado não mais que 10 minutos, peguei aquela mesma minha bolsa de roupas, e do jeito que estava, levantei-me, e fui até aquele ponto de táxi em frente. Entrei então naquele único veículo que ali se encontrava e pedi que seguisse direto para o aeroporto de Salvador.

No início da madrugada do dia seguinte, eu já desembarcava em Belo Horizonte.

Renato Sturzenecker
Enviado por Renato Sturzenecker em 30/07/2021
Reeditado em 24/06/2022
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