Cotidianos XX – Onívoros.

O mês de janeiro do ano de 2.052 corria célere para a segunda quinzena. Era o auge do verão no litoral paraibano, e a cidade de João Pessoa, capital da Paraíba, regurgitava de turistas. E dentre eles, um grupo de jovens regateava o aluguel de um pequeno barco de pesca.
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A estibordo do pequeno barco de pesca, uma jovem de corpo queimado de sol olhava ansiosamente para a Costa do Litoral Norte. De onde o barco se encontrava, quase em alto mar, dava para ver a silhueta da cidade, e aqui e acolá, pequeninos pontos coloridos bailavam no céu azul anil. Eram as pipas dos praticantes de kitesurf.

Aparentemente, tudo estava tranquilo. No entanto, quando Joana olhou com mais atenção a lâmina d’água, percebeu duas línguas de espuma que ladeavam um pontinho que avançava velozmente na direção do barco. E à medida que o pontinho crescia, a pulsação da jovem aumentava.

Quando Joana teve certeza que a lancha avançava na direção da sua embarcação, gritou desesperada:

-Arthur, joga a churrasqueira com carne e tudo na água! - e completou - Tomás, espalha desinfetante no convés! Os demais, joguem água, sabão em pó e peguem os esfregadores.... Rápido! A guarda-costeira está chegando! Se esses filhos-da-puta sentirem o cheiro de carne assada, ‘tá todo mundo fodido!

-Tem certeza, Joana?

-Claro, Arthur! Eu bem que avisei, seu babaca, para trazer a “air fryer”... Ela não faz fumaça... Caralho, Arthur! Mas não! A tua tara por churrasqueira acabou ferrando tudo...
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Tudo começou logo após a pandemia do COVID-19. Se bem que, analisando com calma, começou bem antes.

Primeiro foi a onda vegetariana. Ninguém deu muita importância. Isso é coisa de gente natureba, diziam... Depois, veio a onda vegana. Também ninguém deu muita importância. Isso é coisa de gente natureba metida a besta, diziam... Aí, a onda cresceu na Europa, nos Estados Unidos, na Ásia e no Oriente Médio. Então, com esse segmento mercadológico crescendo, os hotéis e restaurantes, aos poucos foram excluindo as carnes dos menus. De repente, açougues e peixarias fecharam e nem os restaurantes populares serviam mais pratos com quaisquer tipos de carnes; fossem bovinas, suínas, caprinas, aves e ovos, crustáceos ou peixes.

Um dia, no início do ano de 2.035, o Parlamento Europeu proibiu a produção e importação de todas as carnes. Parecia até que as outras comunidades internacionais estavam esperando a deixa. À medida que os meses foram passando, os países asiáticos acompanhados pela Austrália, ex-grande produtora de carne, promulgaram leis semelhantes, seguidos por Israel, países árabes, América do Norte, Central e do Sul. Tudo em nome da vida saudável e do ecossistema.

Estudos estritamente científicos das mais renomadas instituições internacionais, incluindo a famosa FDA-Federal Drug Administration, rigorosa agência de saúde norte-americana, concluíram que o flato, o popular “pum” dos quadrúpedes, inclusive dos golfinhos, arenques e baleias, afetavam gravemente a Camada de Ozônio.

Poucos anos depois da proibição de produção, importação e exportação de carnes em geral, proibiu-se o seu consumo em todo o planeta, à exceção dos mais miseráveis países africanos.

O Brasil, que um dia fora um dos maiores produtores e processadores de carne do mundo, acompanhando as decisões internacionais, tornou ilegal o seu consumo. Quem fosse flagrado consumindo proteína animal, seria punido com cinco anos reclusão sem direito a fiança, seguido de multa de cem salários mínimos. Logo após a promulgação da lei, um Deputado Conservador discursou na tribuna:

-Nobres colegas, o Brasil vive num estranho paradoxo! Há algumas décadas, esse mesmo Parlamento votou a liberação do consumo de quaisquer tipos de entorpecentes. Em nome do combate ao crime organizado, qualquer um, seja brasileiro ou estrangeiro, pode consumir e portar cannabis sativa, benzoilmetilecgonina, a popular cocaína, heroína, crack ou anfetaminas em pequenas quantidades. Lembro bem das palavras de uma ex-ministra do Supremo Tribunal Federal, Sua Excelência a Senhora Juíza Carmem Lúcia que anos antes dissera, abre aspas - O consumo de drogas não é caso de polícia, é de educação! - fecha aspas! E agora, o brasileiro que for pego consumindo proteína comete crime inafiançável, enquanto que um assaltante drogado, é classificado de usuário e sai da Delegacia fagueiro, leve, livre e solto.

Foi vaiado, de pé, por seus pares.

Depois dos apupos, sem perder a calma, continuou - E o Brasil, como não poderia deixar de ser, ficou com dois pujantes mercados "underground", o de drogas ilícitas e proteínas. Dado a liberalização das drogas para consumo mínimo, o preço despencou. Enquanto que o valor do quilo da proteína, alcançou os píncaros.
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Em alto mar, Joana rememorava todos esses acontecimentos enquanto a lancha da Guarda Costeira desacelerava para fazer a abordagem.
 
Arigó
João Pessoa/PB
Junho-2021