Cada coisa que a gente escuta

Ficar atento a conversa dos outros não é a coisa mais bonita do mundo. Mas há situações em que não há muita escolha e acaba ouvindo, querendo ou não. Uma delas é durante uma viagem de ônibus. Dependendo de onde está partindo e para onde está indo é possível ouvir centenas de história. Ouve-se que a mulher está desconfiada do marido, que o filho anda com comportamento estranho e opiniões sobre política, futebol e religião.

Certa vez passei por uma situação curiosa. Ouvi uma história surpreendente dentro do ônibus na ida ao trabalho. Duas mulheres estavam conversando no banco atrás de mim.

_ Se isso acontecer será um absurdo. É muita ganância. Não pode!

_ Mas ele não teria coragem! Pode dar cadeia!

_ Por dinheiro ele faria. Dá vontade de sumir, mas no fim podem até me chamar para depor.

_ Fica calma, você não fez nada de errado.

_ É claro que não, só não quero testemunhar nenhum crime.

_ Esse pessoal da Vila Nova é perigoso hein.

Depois da última frase as mulheres mudaram de assunto, enquanto que eu tentei entender do que a mulher falava. Um crime? Um assassinato ia acontecer? Por qual motivo? Depois de um tempo meu ponto chegou e eu desci. Trabalho num escritório no centro administrativo da cidade.

A manhã passou rápido e a hora do almoço chegou. Busquei por restaurantes, mas naquele dia os mais baratos estavam bem lotados, daí tive que achar um mais caro. Entrei e fui para a fila do buffet para preparar meu prato. Na minha frente havia um casal que estavam conversando, e para minha surpresa peguei um pouco do diálogo.

_ O plano está pronto. Começo a executar na sexta-feira.

_ Tem certeza? Já previu as falhas?

_ Não há o que dar errado! Ele vai cair.

_ Você tem um bom álibi?

_ Claro! Depois disto terei o que tanto quero.

Esse pequeno diálogo me fez lembrar a conversa da manhã no ônibus. Parece estar tão relacionado. Seria muita coincidência. Segui os dois até uma mesa próxima para tentar ouvir o resto da conversa.

_ Tem muita coisa em jogo!

_ Eu não duvido!

_ Não tem medo de se arrepender?

_ É claro que não! Ele nunca fez nada por mim.

Tenho quase certeza que esta história tem a ver com a história da manhã.

Tendo terminado de almoçar voltei ao trabalho. Acabei me distraindo e fiquei rascunhando as duas histórias como se fosse uma só. Se eu fosse jornalista teria uma das boas.

Ao fim do dia esperando o ônibus para voltar fiquei lembrando da história. Não saía da minha cabeça e nada do ônibus passar, sem paciência peguei uma lotação que vais mais rápido e cortando caminho. Estava um pouco cheia e havia uns caras estranhos. Sentei perto do fundo. Havia dois rapazes, falavam algo assim:

_ Acredita que um executivo me chamou para um serviço.

_ Onde?

_ Lá na vila nova. Dar um sumiço num tiozinho.

_ Ele contou o motivo?

_ Não, mas deve ser herança.

_ Vai pegar?

_ Estou pensando, porque uma das empregadas já foi minha ex-namorada e a namorada do cara é dona de uma drogaria que já assaltei. Serei reconhecido e vão me entregar.

Ouvi a história e gelei. Tudo está conectado. Que tremenda coincidência. Estou testemunhando um possível plano de crime. Sinto-me envolvido. Como vou contar a polícia? Sem provas. Só rumores. Pode ser tudo coincidência e não estar nada ligado. Desci da lotação e fui para meu endereço.

Passei a noite tentando entender as histórias ouvidas. Lembrei de um amigo policial que atua em outro distrito longe do meu. Disquei o número, comecei a falar com ele, mas entrou linha cruzada e ouvi o seguinte diálogo:

_ Ei lembra que você me pediu aquele serviço?

_ Sim, o que tem?

_ Não vou pegar, tem muita gente que conheço que está envolvida.

_ Não vai dar nada. Você é profissional.

_ Vai sim, não quero entrar em cana.

De repente respirei fundo, tossi sem querer.

_ Ei tem boi na linha. Alguém nos ouve.

_ Quem é?

_ Xavier – respondi.

_ Lembro de você, reconheço sua voz. A gente estudou junto. Tirava barato de você, lembra de mim?

_ Tota?

_ Sim, o próprio, como vai?

Na hora desliguei o telefone. Pelo visto eu fui mais um elemento conhecido. Fico até mais tranquilo, ele não vai pegar o serviço. De repente alguém bate na porta.

_ Quem é?

_ A polícia!

Fui correndo abrir! Que posso ajudar?

_ Já faz um tempo que tem uma escuta colocada no telefone celular, a partir dele ouvimos tudo que você ouve. Sabíamos do seu potencial ouvido para história alheia. Vamos precisar de você!

13/05/2021

Miguel Rodrigues
Enviado por Miguel Rodrigues em 13/05/2021
Reeditado em 13/05/2021
Código do texto: T7254613
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