POR CAUSA DA CAMILA
Deixou de morrer dentro daquele quarto escuro. Não era hora para isso. Dono do seu tempo e da sua vida, seus torturadores não foram sensíveis o suficiente para perceberem que ele era mais que um agitador político. Seus olhos não estavam vermelhos de sangue e de cansaço da surra que levava.
Não tinha o que confessar durante o intervalo de um choque e outro. Ninguém para entregar, não era de nenhuma célula terrorista. Não conhecia nenhum plano, os milicos estavam mesmo é doído. Jogaram seu corpo já quase sem vida aos olhos humanos. Mas ele precisava chegar em sua quase-morte para ganhar força vital. Foi o que a voz em sua cabeça o orientou.
Naquela noite saiu sem rumo pela cidade. Achou um panfleto revolucionário que chamava o presidente de genocida. Ou melhor, foi o panfleto que o achou. Ele agora lembra bem. Não tinha ideia de como chegar a esse estado. O vento em sua frente formou um redemoinho roçando o asfalto e fez suspender até às suas mãos o papel com palavras de ordem contra a ditadura. Teve tempo apenas de ler parte do que dizia quando apareceram os camburões lotados de militares.
Talvez ele tivesse sido preso por engano. Talvez parecesse com algum estudante de esquerda. Ele não era militante de nenhum movimento, mas quase perdeu a vida. O destino. A voz disse que ele precisava viver essa experiência para ter supremacia. Ele pediu por isso em suas evocações do sombrio.
No chão frio e imundo da cela escura ele aguardava o que iria acontecer. Suas veias se dilataram.
Os músculos foram se enrijecendo, ganhando consistência, aumentando o volume. O magricelo se encorpava. Levantou-se. Soltou um urro.
Dentro de segundos os carcereiros apareceram. Antes que eles abrissem a porta para esmurrar novamente o suposto rebelde, ele arrancou a porta da cela sem muita dificuldade. Levou uma rajada de balas e não se assustou. Saiu correndo pelo recinto opressor atropelando quem estivesse pela frente. Arrancou mais duas portas de grade e ganhou a rua. Sem direção, hesitou um pouco. Olhou para os dois lados e um carro passou acelerado por ele. Seu aspecto tenebroso devia estar causando horror àquela hora. Por instinto seguiu para onde estava mais escuro.
Através de suas narinas enormes sentiu cheiro de sangue. Era isso que ele perseguia. Era o cheiro acre que o guiava para o fim da rua. Entrou no matagal. O cheiro cada vez mais forte. Sentia o sangue dilatado nas veias de um corpo em apuros. Não deu outra, encontrou atrás de uma moita uma mulher seminua a ponto de ser violentada por dois marginais. Com agilidade jamais demostrada antes, ele segurou um dos meliantes pelo pescoço enquanto com seus pés espremia o outro contra o solo. Ambos se debatiam em vão.
A mulher apenas via a sombra do monstro que estraçalhava os criminosos. Suas pernas trêmulas não a permitiam abandonar o local. Pensava apenas que seria a próxima vítima do desconhecido e pouco visível naquele matagal.
Ele urrou novamente o que fez a mulher tremer ainda mais. Esticou um dos braços indicando a direção de luzes longínquas. Ela entendeu e saiu em disparada. Ele precisava sair dali. Ela certamente buscaria a polícia e a traria de volta. Eles o encontrariam. Sua audição estava mais aguçada o que lhe permitiu ouvir sirenes. A essa altura um pelotão já estava no seu encalço. Saiu correndo para se esconder. No final da mata encontrou uma casa abandonada. Refugiou-se ali.
Um monstro, ele olhava para si. Seus braços peludos, unhas grandes e afiadas. Sentidos aguçados e uma vontade de estraçalhar maldades em corpos de pessoas. Um monstro justiceiro? A luz do dia o incomodava. Melhor ficar escondido. Não sentia fome. Ele queria ser isso, mas jamais achou que seria atendido em seu desejo macabro.
A criatura relembrou do que o levou a desejar ser um justiceiro com força suprema. Uma interpretação da música Camila, Camila da banda que ele mais gostava de ouvir. Música antiga, da década 80 do século passado, o país estava saindo de um regime de exceção. Depois de mais de trinta anos de liberdade os tempos de chumbo voltaram. Leu em um caderno de cultura de jornal que a música fala de uma menina colega dos integrantes, vítima de abuso sexual. Ao lado da casa dele havia uma Camila, menina triste que também poderia estar vivendo o mesmo.
A certeza de que sua vizinha vivia o mesmo pesadelo da Camila da música do Nenhum de Nós fez com que ele fosse cultivando dentro da sua mente melancólica vontade de ser um herói. Nutriu por dias o desejo de ter alguma capacidade descomunal, o que ele chamava de força suprema, mas que seria apenas uma força superior, capaz de fazer justiça para as mulheres desamparadas em situação de risco.
Herói. É isso que a criatura esperava ver naquele espelho quebrado. Não viu nada. Não havia reflexo de nenhum rosto diante dos seus olhos vermelhos. Como desfazer-se do que se transformara? Não tinha como. A voz dizia que não tinha retorno. Jamais seria o fracote, o medroso. Agora ele tinha coragem e dois homicídios. Os homens mortos foram encontrados. Estava em uma das páginas da edição sensacionalista vespertina do grande jornal que um vento, inesperadamente, trouxe até ele.
Um rato atreveu-se aparecer por ali. Seu estômago resmungou. Correu atrás do animal até capturá-lo e devorá-lo. Um rato apenas serviu-lhe de refeição naquela tarde.
O sol se pôs e ele farejou novamente violência. Levantou-se para o combate. Mas precisava esperar. Quando a cidade parecia mais calma, ele voltou pelo mesmo caminho da noite anterior. Seguia seu instinto. Viu-se diante da penitenciária onde havia sido torturado. A voz disse para ele: — Toda ditadura é um estupro.
Entrou e não sobrou ninguém ali de farda. Os que ainda sobreviviam naquele porão da sociedade foram libertos.
Depois a criatura seguiu para a casa de Camila, sua vizinha, que diante dos olhos perversos do seu padrasto, clamava em silêncio por alguma ajuda.
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