Entrega especial
Passava de meia-noite e meia quando o transceptor de Carwyn deu sinal de vida. Ele e Anderson estavam acabando de jantar no refeitório do andar térreo do galpão, e ainda havia muitos funcionários ali dentro, aproveitando para relaxar um pouco em sua hora de intervalo.
- Na escuta - disse Carwyn, apertando um botão no aparelho.
- O Sondertransport chega em dez minutos - ouviu-se a voz de Vaddon. - Leve Miguel para acompanhar o procedimento de segurança.
- Positivo, chefe - replicou Carwyn, desligando e erguendo-se da mesa, bandeja nas mãos.
- Vamos - disse para Anderson, que também já se pusera de pé.
- Sondertransport? - Indagou Anderson, enquanto entravam na fila para devolver as bandejas para a cozinha.
- Gíria da Hexenringe - informou Carwyn. - Lembra das cargas especiais de que lhe falei? Elas são entregues por um transporte especial - o Sondertransport.
Em seguida, Carwyn levou o novato até a plataforma reservada nos fundos do galpão, na qual subiram por uma escada lateral. Nela, já aguardavam outros dois guardas, segurando bastões retráteis, posicionados em ambos os lados de uma grande porta de folha dupla, a qual Anderson intuiu dar acesso à tenda que vira na parte externa do prédio. Carwyn posicionou-se junto à escada, com Anderson ao lado dele.
- Qual é a dos bastões? - Indagou Anderson, braços cruzados.
- Só precaução - minimizou Carwyn. - Nada que possa oferecer perigo é embarcado num Sondertransport.
"Assim espero", pensou Anderson, olhando ao redor com preocupação.
O Sondertransport chegou poucos minutos depois. Não passava de um grande caminhão baú branco, com a logomarca da Hexenringe pintada nas laterais e nas portas traseiras. Quando ele terminou de manobrar e o baú foi aberto por um dos seguranças, Anderson entendeu o que havia de especial na carga: eram pessoas, de aparência estrangeira, vestidas com macacões vermelhos e tênis brancos. Cerca de duas dúzias de mulheres, crianças, e meia dúzia de homens jovens saíram para a plataforma, olhando aturdidos para os lados, como se não tivessem ideia de onde estavam.
- E esses? Quem são? - Inquiriu Anderson baixinho.
- Refugiados - disse Carwyn. - Perderam tudo na guerra e assinaram um contrato de trabalho com a Hexenringe.
- Os adultos eu até entendo, mas... e as crianças?
Carwyn deu de ombros.
- Algumas das mulheres têm filhos; outras, são órfãs. Ninguém liga para órfãos, deviam se dar por felizes por alguém querer lhes dar o que comer.
Enquanto falavam, o segundo segurança abriu as portas dos fundos da plataforma, revelando um um corredor curto que conduzia a um espaço amplo e bem-iluminado. Anderson imaginou que poderia bem ser a tenda no lado de fora.
- Mexam-se! - Ordenou o primeiro segurança, fazendo gestos para que o grupo seguisse pelo corredor. As crianças pareciam particularmente assustadas, mas todos começaram a andar no rumo indicado, exceto por uma jovem loura que parou, hesitante.
- Ei, você! Em frente! - Comandou o primeiro segurança, estendendo o bastão retrátil.
A mulher olhou em pânico para Anderson, que assistia a cena com crescente desconforto. Ela levou as mãos ao rosto, como se pretendesse sufocar um grito, e foi então que Anderson percebeu que ela tinha uma tatuagem no dorso da mão esquerda; era algo que ele já havia visto antes, embora não se lembrasse de onde.
O segurança a empurrou com o bastão, e ela tomou o rumo do corredor. Depois que passou pelas portas abertas, estas foram fechadas pelo segundo segurança.
- Mal-agradecidos - resmungou o homem, de cara feia.
- Por que todo esse medo? - Questionou Anderson, quando Carwyn lhe fez sinal para saírem da plataforma.
- O contrato de trabalho é vitalício - explicou calmamente Carwyn, enquanto desciam as escadas. - Nunca mais vamos ver essa gente.
- [16-04-2021]