O ÚLTIMO HOMEM

Só os vestígios ficaram.

Ninguém fazia ideia de que o fim estava tão próximo. Não próximo como semanas ou meses, mas dali a poucos anos.

Eu sou o último homem vivo no planeta. Por que escrevo este breve diário, então? Porque pode ser que eu não seja o último. Como poderia ter certeza? O certo é que não vejo ninguém há bastante tempo. E já andei muito por aí. O que tenho visto é apenas resquícios de uma civilização. Civilização? Essa é uma palavra que não representa bem o que seria a humanidade de fato. Não estou aqui para isso, justificar o homem e seus desmandos enquanto esteve no controle do mundo. Estou aqui para documentar um pouco do que aconteceu e como aconteceu realmente. É uma tentativa apenas, não sei se poderei ser exato. Já não tenho os sentidos em ordem. Nada está em ordem atualmente.

Mas, se pensarmos bem, agora que as coisas estão começando a ficar em ordem. Sem o homem, a natureza trabalha rápido. Recupera-se com facilidade. A natureza voltou a dominar, está fazendo um excelente trabalho. Em algumas cidades, por exemplo, já é possível ver mais vegetação do que concreto; os prédios, em sua maioria, já desabaram. Há animais correndo no que antes eram ruas cheias de carros e movimento, em calçadas em que pedestres andavam a esmo sem saber que caminhavam para o fim do mundo. Fim do mundo no sentido que as pessoas tomavam, por pensarem que sem elas o mundo sucumbiria, doce engano, o mundo permanece, renovado e cheio de vida. Outras vidas. Vidas melhores, livres e irracionais, ou racionais do jeito que a natureza determina que sejam. De uma racionalidade pacífica, não bélica como a racionalidade humana.

Não existe mais a diferenciação campo-cidade, pelo menos não tão nítida como antes, tendo em vista que o mato já tomou conta da maioria das estradas e o que antes eram rodovias planas e intermináveis, hoje são caminhos estreitos e cheios de declives e aclives, buracos e ribanceiras que podem até mesmo dar em grandes abismos escondidos.

Mas tudo isso se deu por um motivo. Vamos a ele.

O que veio primeiro foi o vírus. Letal e de fácil e rápida contaminação. (Essa parte da história eu sei de ouvir falar, eu não estava totalmente presente, ou não tinha conhecimento de nada ainda nessa época). As nações, em polvorosas, colocaram seus cientistas mais brilhantes para trabalhar. A criação de uma vacina eficaz se fazia urgente. As pessoas estavam morrendo aos montes, sendo enterradas em valas-comuns.

Enfim, a vacina foi criada. A, não; as. Vários países criaram vacinas e todas com resultados satisfatórios. Uma vacinação em massa teve início. O mundo todo. Todo o mundo. O mal cessou. A doença foi extirpada rapidamente, seguindo-se um período de paz.

A paz, no entanto, durou pouco. A vacina causou um efeito colateral inesperado e incomum. As mulheres, todas, não mais engravidavam. Claro que isso não foi percebido assim, de repente, da noite para o dia. Foi aos poucos: leves suspeitas, quase certezas; enfim, um diagnóstico real e profundo, que podia significar o fim da humanidade.

Mas o homem não aceitaria fácil sua extinção. Novamente os cientistas mais brilhantes de todas as nações se puseram a trabalhar com afinco, usando todas as tecnologias que tinham à mão. Mas as pesquisas não avançavam, os testes eram sempre inconclusivos. Todas as tentativas falharam e o desespero crescia como uma nuvem escura sobre as pessoas.

Nessa tentativa insana, casais que mostravam características genéticas adequadas, de acordo com a ideia dos poderosos, eram convidados a fazer parte do esforço comum, que visava à solução do problema. Os que não aceitavam o convite eram levados à força. Muitos deles não retornavam a suas casas, os que voltavam não contavam muito do que havia acontecido, como eram tais testes e se resultavam de alguma forma favoráveis. Pareciam alheios a tudo, como se dopados o tempo todo. Pareciam zumbis.

Quando tudo isso começou, eu era um bebê no ventre de minha mãe. Portanto, eu sou da última geração. Meu pai foi uma das vítimas do vírus. Mas, felizmente, minha mãe sobreviveu, embora seu estado inspirasse mais cuidados do que o da maioria das pessoas, por estar grávida.

Minha infância foi normal até certo ponto. Naquele tempo, no início, os governantes, e as pessoas comuns, ainda tinham esperança de que o mal cessaria e a vida voltaria a ser como antes. As crianças ainda frequentavam escolas, embora os cursos tivessem sofrido uma mudança radical, passando a serem exclusivamente voltados ao aprendizado científico e tecnológico. Era mais uma tentativa inútil de fazer com que a ciência vencesse todos os males surgidos no mundo. Com aquela gama de informação, criam as autoridades, a humanidade teria armas para toda e qualquer futura eventualidade. Consideravam, assim, que outros tipos de aprendizados eram inúteis para a vida. As crianças passaram a ser criadas como robôs, disciplinadas para uma vida lógica e sem sobressaltos futuros. O que não era mais possível, o futuro era só uma pequena chama em meio à escuridão que se aproximava rapidamente.

Outro efeito da dita vacina, aparentemente, tendo em vista que os vários estudos feitos não conseguiram detectar outro motivo, fora o envelhecimento precoce da população. Minha mãe envelheceu tão rápido que não pude aproveitar por muito tempo sua companhia, seu amor, sua ternura e seus ensinamentos. Mas no pouco tempo que tivemos juntos, adquiri o hábito de nunca me curvar aos poderosos e lutar contra todos os desmandos do governo. Por isso, depois que ela se foi, passei a maior parte do tempo fugindo, me escondendo aqui e ali, sendo perseguido pelas forças de segurança, que queriam levar todos os jovens da última geração para fazer os testes ilusórios.

E nessa longa caminhada encontrei pessoas que, iguais a mim, também fugiam. Entre elas, uma menina chamada Mariana. Ela tinha a minha idade, era da última geração também. Era loira e quase da minha altura. Tinha um conhecimento acima da maioria dos jovens da época, porque em sua casa, antes da deterioração completa, havia uma grande biblioteca, onde ela estudara por longos períodos durante a infância e adolescência. Primeiro me senti intimidado, depois fui compreendendo que tudo o que ela tinha eu tinha também, que era o mesmo desejo de liberdade que afluía dos corações de todos os jovens.

A partir daquele momento, ficamos juntos, em todos os sentidos. Ela era o amor que eu havia perdido com a morte da minha mãe. Ela estava lá para mim e eu para ela. Andamos por longas estradas em que nada podia se ver além de campos imensos que pareciam não ter fim. E todas as tardes um sol imenso que se punha no horizonte, como se baixasse sobre a terra o cumprimento de terrível profecia.

Apesar do esforço, nunca fora possível um longo tempo de paz para nós. As forças de segurança estavam sempre em nosso encalço e nós, sempre alerta, nem mesmo dormíamos direito. Atentos a todos os sinais, fossem quais fossem. Comíamos o que achávamos em supermercados abandonados, o que pudesse ser aproveitado; ou carne de pequenos animais que eu conseguia caçar. Armas e ferramentas não era problema, pois havia muita coisa abandonada, todo tipo de loja, em imensas cidades fantasmas.

As poucas pessoas que ainda resistiam ou estavam fugindo, como nós, os mais jovens, ou presas, participando de testes improfícuos e sem fim; ou estavam isolados, esperando a morte chegar a qualquer momento, os mais velhos. Havia também os funcionários do governo, que à base de inúmeros medicamentos, conseguiam manter uma falsa juventude, de certo modo.

Das muitas pessoas que encontramos durante essa longa jornada, umas ficavam um tempo, nos acompanhavam; outras apenas uma noite ou dia, seguindo depois seu próprio destino. Não havia lamentação, choro, despedida, todos já haviam se acostumado e não esperavam mais que houvesse futuro para a humanidade, por isso não criavam vínculos uns com os outros. Eu pouco me importava, enquanto Mariana estivesse comigo, a vida tinha sentido completo. A minha única preocupação era nos manter a salvo, do governo e dos perigos que se alastravam pela terra praticamente inabitada.

Eu estava com 20 anos, mas parecia bem mais velho. Mariana, com 19, mantinha a frescura intacta, como se a natureza a preservasse para não sei que solução futura. Ela continuava jovem, como uma pessoa de 19 anos, e era tão bonita que todos que a viam, ficavam surpresos, diziam não haver mais pessoas com aquele tipo de aparência no mundo. Eu mesmo percebia, de acordo com cada pessoa com quem cruzávamos, havia algo nelas que eu não saberia explicar. Mariana não, estava perfeita em sua juventude, intacta como uma flor em plena a primavera.

Assustava-me a ideia de envelhecer e morrer, deixando-a sem amparo. Ela percebia minha angústia e sempre me falava que isso não ia acontecer. Mas como ela poderia ter certeza? Como ela adivinhava que era isso que eu estava pensando? Às vezes eu imaginava que ela não era real, ou que poderia ser um anjo enviado para salvar o mundo. Sei que naquelas circunstâncias, meu pensamento não era a coisa mais confiável que existia. Hoje, depois de tudo o que aconteceu, a verdade brilha com intensidade à minha frente. Está tudo claro, naquela época, não.

Os dias iam se passando entre pequenos e grandes problemas, mas sem nada que abalasse de fato nossa nômade existência. Até que um dia Mariana sentiu alguns incômodos, coisas que ela nunca havia sentido, ou pelo menos não com tamanha intensidade. Passamos um dia inteiro num lugar aconchegante, para que ela pudesse descansar. No dia seguinte, continuaríamos a jornada. Foi o que fizemos, andamos quase metade do dia até que chegamos a um povoado escondido e quase completamente abandonado. Ali havia três moradores, duas mulheres muito velhas e um senhor de idade indefinida. Moravam na mesma casa, na tentativa de protegerem-se mutuamente.

Entramos na casa quase em ruínas, cujas paredes pareciam prestes a desabar. Mariana estava muito cansada, sentou-se num velho sofá e quase desmaiava. Uma das anciãs chegou bem próximo dela, observou atentamente e sentenciou, ela está grávida. Aquilo parecia impossível, ninguém mais engravidava há muito tempo. Por mais que a ciência tentasse, nunca tinha encontrado uma solução para o problema. No entanto, a velhinha assegurou que aquela jovem, que parecia ser de outro mundo, nas palavras dela, estava grávida.

Minha reação foi uma mistura de alegria e preocupação. Eu não sabia o que deveria fazer. Embora não coubesse só a mim as próximas atitudes a tomar. Mas eu tinha grande responsabilidade e devia ser uma voz ativa em tudo o que seria feito a partir daquele momento.

Ficamos ali uns dias, com aquelas pessoas estranhas, mas bem interessantes. Descansamos e conversamos o suficiente, para tomarmos a melhor decisão. Aquela noticia precisava chegar ao governo, poderia ser a salvação do mundo. Sabíamos dos riscos, que a truculência das autoridades poderia acabar com tudo, mas Mariana não seria feliz, sabendo que tivera nas mãos tamanho poder e não usara para um bem maior.

Andamos dias e dias e não achamos mais nada, nem um agente do governo ou algo do tipo. Nas cidades em que havia alguma agência, não tinha sinal de vida, apenas um silêncio incomum, e mato por todo lado. O mundo acabara completamente. A solução chegara tarde. Mariana também parecia doente, estava cada dia mais fraca. Não podíamos mais andar para procurar. Encontramos uma casinha na beira de um riacho. Ali ela viveu seus últimos momentos e na margem daquele pequeno rio, sepultei seu corpo grávido do ultimo filho que a humanidade poderia ter tido. O meu filho. O nosso filho.

Eu sou o último homem vivo. Não há certeza absoluta, mas há muito tempo que não vejo ninguém parecido com um ser humano, nem mesmo quando olho no espelho.

João Barros
Enviado por João Barros em 15/04/2021
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