A Casa de Orates
Era uma tarde de um céu cinzento arqueado sobre a pequena e pacata cidade de Jambeira. Uma figura furtiva caminhava pela rua Bacamarte. Em frente ao número 18 parou e tocou insistentemente a campainha. Justo naquela manhã, por motivo de força maior, o presidente da casa havia viajado para o Rio e só retornaria uma semana após. Então, o jovem Alex ficou encarregado pela honra da casa.
- Boa tarde! A quem devo anunciar? Gritou o segurança.
Era um homem de meia idade, atarracado, trajando um surrado terno de cambraia na cor bege e agarrado a uma pequena valise.
- Posso entrar? Está começando a chover! Disse secamente.
- É o novo diretor da casa, não é? Perguntou Alex meio sem jeito.
- Sim, é isso! Curto e grosso foi entrando.
A imponência do recém chegado parece ter abalado a tranquilidade do jovem gerente. Sem mais detalhes, o homem com a sua valise adentrou à casa e sobranceiro foi se acomodando num dos divãs da sala.
Timidamente disse o jovem:
– Esperávamos o senhor somente daqui dez dias....
- Mudanças de planos meu caro homem, mudanças de planos. Respondeu sem olhar para o seu interlocutor.
Finalmente chegara o diretor Dr. Abrantes, aquele que assumiria o cargo de diretor geral do manicômio de Jambeira. Era formado pelas melhores escolas de psiquiatria da França e Bélgica. Veio para substituir o anterior que fora afastado por senilidade. Acumularia as funções de diretor e alienista. Não era velho nem moço. Ficaria residente na casa.
Após se livrar das roupas e sapatos encharcados, as acomodações da casa foram a ele apresentadas. Quarto e escritório.
Na manhã seguinte vestindo um jaleco não tão branco assim e acompanhado por uma pequena comitiva, Abrantes visitou as outras dependências da casa, inteirando-se dos problemas e rotinas. Após a integração passou imediatamente a despachar do seu gabinete exigindo agora relatórios diários sobre todas as ocorrências na casa. Também introduziu métodos mais severos de tratamento e enrijeceu a disciplina. É evidente que as mudanças radicais naquilo que há muito já era rotina acabaram desagradando a todos.
Dentre os internos que ali residiam, alguns se arvoravam serem pessoas famosas. Como Ascânio por exemplo, que se considerava um seguidor de Gandhi. Nunca causara qualquer problema a quem quer que fosse, exceto em certa ocasião quando lhe roubaram o lençol branco que era a sua vestimenta diária. Naquele dia ele se atracou com o seu desafeto e apertou-lhe tanto o pescoço que quase extraiu-lhe as amídalas. No mais era um homem pacato. Aleksander, conhecido por Alê era um polonês fugido da guerra. Um velho que afirmava ser o anjo da anunciação. Andava pelo pátio com um improvisado par de asas feita de papelão presa às costas e sempre com o dedo em riste. Ensandecera ainda muito jovem, diziam. Mas Botelho da Rocha ao contrário, não se intitulava ou admirava qualquer vulto famoso, mas acabou ele ganhando notoriedade ao protagonizar a incrível história que se passou lá no manicômio de Jambeira.
Estava na casa já havia três anos. Tinha a mania de perseguição e jurava que as mudanças impostas pelo novo diretor tinham por objetivo prejudicá-lo. Haveria um complô contra ele. Repetia.
Embora não houvesse qualquer parentesco entre Botelho e Abrantes, havia sim certa semelhança física entre eles. “cara de um e focinho do outro”. Estatura e até um bigode tipo morsa. Porém com uma diferença bem marcante. Botelho apresentava um arremedo de cabelos no cocuruto, alguns fiapos, por assim dizer enquanto Abrantes era lá provido de boa e bem cuidada cabeleira.
O que se viu naquela noite foi um Botelho ensimesmado além do normal, muito preocupado, zanzando pra lá e pra cá em seu quarto tentando desvendar em seu imaginário o que de fato os bastidores tramavam contra ele.
Assim que amanheceu resolveu tirar tudo a limpo. Para isso disfarçou-se de enfermeiro. Na lavanderia conseguiu facilmente o que precisava e marchou resoluto até o gabinete do novo diretor. Já no corredor aproximou-se vagarosamente da porta: Toc, toc, toc.
- Quem é?
- Sou eu o enfermeiro!
- Entre! Mas não me lembro de tê-lo chamado.
- O senhor me chamou sim!
- Não me lembro!
Botelho então percebeu as dificuldades que enfrentaria para engrenar uma conversa com aquele. O muito que conseguia eram respostas lacônicas, às vezes sem nexo. Os olhos do novo diretor sequer viram a figura de Botelho, estavam fixos numa papelada sobre a mesa.
- São os relatórios? Insistiu Botelho, curioso.
- Humm!
- O que dizem? Atreveu-se.
- Não me lembro!
- Do quê?
- Ah! Agora me lembro, pedi um barbeiro, você é ele?
Então Botelho com um olhar sagaz respondeu:
- Sim, sou eu! Também sou o barbeiro da casa. Só preciso descer e apanhar os apetrechos.
- Não precisa, tenho tudo aqui naquele armário atalhou o diretor.
A sorte parecia voltar para o lado de Botelho, afinal, barbeiros e fregueses costumam conversar sobre tudo. Mas veio a decepção. O máximo que se ouviu dele desta vez foi um resmungo pedindo pressa no serviço. Era mesmo do tipo que não dava trela pra qualquer um. “Que maçada, por nada faço a barba desse sujeito” Pensou ele furibundo, quase desistindo. Mas continuou terminando de escanhoar aquele rosto grande.
De súbito num ato involuntário, tocou de raspão o cocuruto do amargo freguês. Diante do inusitado, Botelho ficou boquiaberto, mas foi só por uns segundos pois logo desandou a gargalhar e perguntou em tom irônico:
- Então o senhor usa uma peruca?
- Passa ele pra cá! Ordenou o diretor.
- Não! Respondeu Botelho fazendo gracejos.
- Dê-me logo!
- Já disse que não!
E assim, Botelho experimentou-a mirando-se num espelho que ali havia.
Sem muito o que fazer o diretor saiu desesperadamente pedindo por socorro. Socorro que imediatamente chegou.
Foi uma cena antológica, ridiculamente cômica. Os brutamontes da segurança colocaram o diretor numa camisa-de-força e o arrastaram escada abaixo apesar dos protestos e ainda teceram cuidados ao outro.
Devido a semelhança já apontada entre eles, a peruca deu o tom perfeito à burla, tanto que se o próprio diabo a quem chamam de ladino, ali estivesse, com certeza também seria enganado.
Na casa existia um local a que chamavam de quartinho escuro. Uma invenção do próprio diretor. Uma espécie de sossega-leão aos mais exaltados, e ironicamente foi ele mesmo quem o inaugurou.
Enquanto Abrantes provava do seu próprio veneno, Botelho, com a peruca, agora posando de diretor geral do manicômio é quem dava as cartas.
O seu primeiro passo foi revogar todos os atos anteriores impostos. O segundo foi transformar o manicômio em um externato para alienados... Porém, a maioria deles nunca retornava e isso criou um sério problema de segurança para a pacata cidade de Jambeira.
Mas no terceiro dia aconteceu a reviravolta. À noitinha quando o silêncio já permeava os corredores da casa, saía do desterro um homem enfurecido, humilhado, levado e tratado como um qualquer e dizia para os próprios botões. - Como pode isso a um catedrático?...
Viu a janela entreaberta do quarto que por justiça ainda lhe pertencia, no qual dormia injustamente o seu antagonista.
Pela varanda escalou sorrateiramente a janela e ganhou o quarto. Um pequeno abajur de uma luz frouxa dava ao ambiente um ar de conforto, diferente do quartinho escuro.
Lá estava o homem roncando feito um porco ao sol. Por sorte dormia sem a peruca. Sobre a mesa do abajur estava o objeto da discórdia, mas nessa situação era preciso muita cautela para que o outro não acordasse. E pé ante pé apanhou-a e com destreza colocou-a num segundo. Logo alcançou a porta e com mãos de veludo abriu-a e com a cabeça já do lado de fora gritou com toda força de seus bofes...
- Socorro! Há um louco no meu quarto!
- De novo? Disse um que acudia.
Era o segundo ato de indisciplina naquela mesma semana. Essa reincidência valeu castigo dobrado lá no quartinho escuro.
Então, tudo voltou como antes na casa de Abrantes...
As mudanças de ordem assim tão abruptas já infernizavam a cabeça de todos. Disse um em tom irônico: “Isso ta parecendo hospício”
Todavia, um problema grave carecia de solução imediata, urgente. Tratava-se daqueles internos liberados. Não mais retornando precisavam ser encontrados e recolhidos a todo e qualquer custo. Já não tinham em conta quantos eram e nem como os identificarem.
Para isso, uma comissão se reuniu e criaram uma operação chamada de : “Operação jambeira”. Sem escrúpulos, alguns agentes dessa operação acabaram cometendo exageros. Foi uma espécie de caça aos hereges..
Muitos cidadãos jambeirenses que nada tinham com a história foram taxados ou confundidos com aqueles alienados e acabaram na mesma malha passando também a hóspedes do manicômio, pelo menos até segunda análise. Foi um descalabro. A cidade sentia-se insegura, ameaçada. Todos fugiam apavorados diante de um “corvo-campeiro”, era assim que o povo chamava os agentes da operação.
Com isso o comércio já não abria e nas repartições públicas foi decretado ponto facultativo até que as coisas melhorassem. Mesmo que se arriscando quisessem assistir a uma missa, o ato de fé não seria possível, pois até o pároco da cidade fora também recolhido. Ninguém ousava mais sair de casa. No final das contas a cidade estava sitiada pelos agentes e já beirava a loucura... Por que não dizer: “jambeirava a loucura”? , frase que tomo emprestada de um cronista da capital que andou escrevendo sobre o pitoresco caso.
Aqueles residentes arbitrariamente recolhidos já estavam em pé-de-guerra. A iminência de um motim era fato. Porém o padre procurava acolhê-los com palavras de fé e esperança. Pregava com ar resignado as boas novas que haveriam de vir depois daquele flagelo. – Primeiro o sofrimento, depois o regozijo. Dizia ele sob os olhares atravessados e irados da turbamulta.
Era período de eleições municipais. “A caça aos dispersos”, já se dissolvera. A cidade timidamente voltava ao seu normal. Porém, os que foram recolhidos, recolhidos estavam, até que o prefeito da cidade informado que entre eles estavam muitos dos seus fiéis correligionários, tratou logo de interferir pessoalmente no caso. Após a primeira tentativa o diretor taxativamente disse, não! Argumentando que o assunto carecia de uma triagem minuciosa e que isso demandaria muito tempo. Então insistiu o prefeito argumentando que era exatamente na oposição onde se encontravam os verdadeiros insanos e os seus eram perfeitamente ajuizados. Irredutível, permaneceu o diretor, só baixando a guarda quando o prefeito prometeu-lhe engordar os subsídios para a casa e quiçá, um cargo público se ele assim desejasse. Por fim, apressada as análises, o acordo foi realizado.
Enquanto isso Botelho cumpria máximo isolamento no tal quartinho.
Mas como nesse mundo nada é para sempre, numa manhã bem cedinho em que ainda chovia, uma sirene estridente começou a tocar bem em frente ao número 18 da rua Bacamarte. O barulho era tanto, tanto que mais parecia que um ataque aéreo em tempo de guerra, estava por acontecer. Num instante todos estavam como um regimento em alerta!
Lá fora estava um furgão azul-escuro enlameado até as portas.
Então do funesto carro saltaram três enfermeiros e o motorista. Depois de muito papelório e palavrório o portão foi aberto. Eram funcionários do manicômio de Itaguaí Rio de Janeiro, com um mandato para resgatar um tal de diretor, era assim que gostava de ser chamado. Havia fugido há mais de dois meses. Lá, esse homem era interno dos mais problemáticos. Já aprontara tantas e boas apesar da rigidez daquela casa. Como demonstrasse certa agressividade vestiram-no com uma camisa-de-força e diante dos olhares perplexos de todos, ele se despediu aos berros prometendo voltar em breve.
Botelho ainda teve tempo de vê-lo sair arrastado portão afora e suspirou aliviado.
Dias após ao episódio, numa manhã bem cedo a campainha do número 18 da rua Bacamarte alarmava novamente.
- Há gente nesta casa? Gritou alguém lá de fora enquanto um táxi preto se afastava do local.
- Um momento! Gritou o homem da portaria. E concluiu: - Bom dia, a quem devo receber?...E apressou-se pois começava a chover novamente.
Era ele finalmente! O verdadeiro Dr. Abrantes, agora recebido pessoalmente pelo presidente que retornara com urgência devido aos acontecimentos. Caminhou casa adentro com uma fisionomia arrastada sob os olhares oblíquos dos funcionários.
Revisado ligeiramente em 22/05/22
Conto escrito por JAL. - Isso aconteceu após eu ler o conto de Machado de Assis chamado: O Alienista.