O café do povo encantado

Ao passar em frente à vitrine iluminada da cafeteria, onde lia-se "Hexenringe" em grandes letras góticas douradas, viu Margaret Freemantle sentada lá dentro numa mesa para dois, do lado oposto do salão. Sem dizer uma palavra, ela olhou diretamente para ele e sorriu. Gilbert sentiu um arrepio subir-lhe pela espinha e entrou rapidamente no estabelecimento, o qual ainda não tinha muitos frequentadores naquele início de noite.

- Olá, Margie! - Saudou-a, sentando-se na cadeira vazia em frente à ela.

- Quanto tempo, Reuben - redarguiu Margaret, cardápio nas mãos, os cabelos ruivos caindo-lhe em cascata sobre os ombros e o sobretudo cáqui, que usava sobre um conjunto preto de blusa e calças compridas.

- Como você faz... aquilo? - Indagou o Gilbert, fazendo um gesto para a vitrine diante da qual estivera alguns instantes antes.

- Eu sei quando você está por perto - informou Margaret com um sorriso, pousando o cardápio sobre a mesa. - Só me antecipei à sua chegada.

- É algo do tipo... premonição? - Inquiriu o detetive com suspeição.

- É um pequeno sortilégio - redarguiu Margaret com uma piscadela. - Oh, não se preocupe; é não invasivo e totalmente inofensivo.

- Bem... acho que estou mais tranquilo com essa explicação - declarou ele em tom dúbio.

- E só funciona quando você está no mesmo quarteirão que eu - complementou Margaret, juntando as mãos sobre a toalha branca da mesa. - Vamos pedir?

- Sim, claro - apanhou o cardápio. - Dizem que a torta de mirtilos com creme daqui, é do outro mundo.

- Literalmente - murmurou Margaret, olhando para os lados. - Só tome cuidado para não aceitar nenhuma oferta "grátis" numa cafeteria Hexenringe... eu vou querer um mocaccino e a torta que sugeriu.

Gilbert fez sinal para a atendente do outro lado do balcão, uma adolescente loura e sardenta, de tranças. Ela veio anotar o pedido trazendo uma bandeja com pedacinhos de bolo confeitado.

- Querem provar? - Indagou, com um sorriso cativante.

Gilbert e Margaret retribuíram o sorriso.

- Apenas o pedido, muitíssimo grato! - Replicou Gilbert com firmeza.

- Quem sabe, noutro dia - lamentou a atendente, mordendo o lábio inferior.

* * *

- Como então, os ataques desse lich remontam a meados do século XIX? - Indagou Margaret, juntando a papelada que Gilbert havia colocado sobre a mesa da cafeteria.

- Temos registros de assassinatos usando o mesmo modus operandi desde pelo menos 1856 - assentiu o interpelado. - Com intervalos de 25 anos entre uma morte e outra.

- Certamente, presumir que se trata do mesmo lich é bastante razoável - ponderou Margaret, empurrando para o lado um prato vazio com restos de torta. - Ele volta à cidade quando precisa recarregar sua energia vital, e assim manter sua imortalidade; é também possível que rejuvenesça neste processo.

- Neste caso, mudaria de aparência entre a chegada e a partida - Avaliou Gilbert, cotovelo apoiado na mesa. - Se ele houver passado pela Imigração...

- Está partindo do pressuposto de que se trata de um estrangeiro? - Questionou Margaret.

- Ocorrências desse tipo, são quase sempre importadas - garantiu Gilbert. - Temos um controle interno melhor sobre esse tipo de morto-vivo, do que na maioria dos países do continente.

- Não vou discordar; a sua observação faz sentido, - anuiu Margaret - mas sobre o fato dele ter passado pela Imigração, no que isso muda?

- A foto no passaporte é conferida, na entrada e na saída - explicou Gilbert. - E também há câmeras de vigilância na Imigração; se o lich mudasse bruscamente de aparência após uma noite fora, isso não deixaria de ser notado.

- Ele poderia usar um encantamento para disfarçar a aparência - propôs Margaret.

- Não creio. A Imigração está preparada para lidar com esse tipo de feitiço - replicou Gilbert.

- Mas não com a presença de um lich? - Questionou calmamente Margaret.

- É uma falha no sistema que precisará ser revista - Gilbert abriu as mãos. - Se conseguirmos comprovar que um lich passou pela Imigração, naturalmente. Até agora, tudo não passa de um palpite educado.

E consultando o relógio:

- Eu vou ter que ir; Treadaway deve estar à minha procura.

Margaret sorriu.

- Você está trabalhando, não é?

- Eu não disse a ele que viria procurá-la - informou Gilbert, constrangido.

- Treadaway é um imbecil - sentenciou Margaret. - Bom, da minha parte é sempre um prazer poder ajudar um ex-parceiro.

- E é sempre bom poder rever você - afirmou Gilbert, e estava sendo sincero. - Que tal repetirmos a dose na quarta, mesmo horário?

- Na quarta à noite eu tenho um compromisso - redarguiu Margaret, pegando a bolsa que pendurara nas costas da cadeira. - Talvez possamos jantar, na sexta... mas se eu tiver alguma ideia sobre o caso, ligo antes.

- Agradeço - disse Gilbert. - Você tem mais experiência do que eu com esse tipo de ameaça.

- É bom ser útil - declarou Margaret em tom ambíguo, colocando a bolsa no ombro e erguendo-se. E como Gilbert fizesse menção de pegar a carteira no bolso, segurou o braço dele:

- Não, deixe que dessa vez eu pago.

E com um sorriso malicioso:

- É bom que você fique me devendo alguma coisa dentro de um Hexenringe.

[Continua]

- [29-03-2021]