Uma Despedida
“Só mais uma vez... vai ser dessa vez...”
Ele se repetia outra vez.
E meio que em desamparo por si mesmo, ele caminhou um pouco pensante, como se pensando em desistir. Sempre o pensando. Pensando o sempre. Encostou o saco com suas coisas e olhou para baixo. Todos sempre acharam que ele não pensava. As centenas de folhas escritas à mão estão no saco. A Obra.
Mas seria inevitável ver mais uma vez, e depois não é só pular. Pular... A ponte é alta, a água será como pedra. Ele sabe. A corda no pescoço seria humilhante, seria uma última ofensa ao que um dia ele chegou a se importar. Uma arma, simples demais, ele não quer que vejam seu sangue. As feridas pelo corpo já eram suficientes para que se saciassem com o desprezo por ele.
Uma visita a mais, só mais uma olhada... Seria justificável para ele e depois já não havia ninguém... todos os que ele amava já haviam transposto o véu, entrado de vez no mistério que aos olhos que veem torna-se o nada... morreram. E assim tudo permaneceria em segredo e mais uma vez ele teria alguma coisa que amenizasse o peso desse não saber... Essa ponte já foi a ponte para muitos antes dele, ela ligou muitos mundos com o mundo que se desconhece...
Justificou-se. Esqueceu que era louco, nem precisaria disso. Ele era o Artista.
Revendo os fatos, ele então se decidiu mais uma vez, olhando da ponte para o azul da lagoa, pensou se não seria melhor não pular de costas... pra poder ver enquanto os números zeram. O azul é uma cor que o segura, ele para pra pensar quando o azul o toca... o faz lembrar que nada é tão frio quanto a perda, a despedida é sem consolo pra o que entende. Adeus vida... depois, é só um querer que é impossível o que resta, se o desejo for que se refaça a perda só restará ao que deseja mergulhar no sem cor da incerteza, aceitar que não há resposta. Mas o azul será sempre o azul. O azul que ele não mais verá...
Porque ele será...
Será o próprio azul...
Assim que o escuro passar...
Foi o que sobrou a ele, foi ao que ele se apegou com força quando se deu conta de que não havia mais nada; a Arte. Ele acreditou. Uma crença. E agora ele estava de frente ao inevitável, se perguntando se estava certo. Era porque ele amava ser o que ele via. Ele achava que se via e então acabou por se apegar ao que viu nele, e quando ele então perdeu... teve que mudar um pouco.
Já não lembrava quando a mudança ocorrera, que mudança foi escolher ser errante diante da busca pelo acerto... E a ponte foi a escolha. Perder de vez tudo o que foi dele, perdendo ele. Depois de tantos anos... Ele fingiu tempo demais, agora já não mais queria. Cansou de fugir.
No entanto, era mais uma vez porque já havia acontecido outras vezes, e ainda assim ele encontrava motivos para manter os olhos abertos, o nariz respirando e a boca comendo, manter em funcionamento à força a máquina que era sua carne ativa e atuante na linha do tempo. Continuava vivendo. A Arte também. Mal comia sem dentes, as roupas rasgadas fediam e sua imagem se dividia entre cacos. Ele sabia que havia uma linha invisível e isso já não importava. Ele nunca teve coragem de sumir.
Seu corpo agora era fraco. Suas forças o haviam ignorado. A única coisa que ainda o sustentava era a insistência em apenas se perguntar “Será que um dia saberei?”, como o último recurso restante depois que ele admitia não só o tropeço como também a queda. É claro que até chegar ao ponto em que se encontrava ele caminhara incessantemente na estrada que todos caminham em diferentes direções, como qualquer outro, ele pensava saber muitas coisas assim como tinha certeza de que tudo que sabia não seria nada quando o momento chegasse. Já o haviam dito muita coisa também, ele paciente se dispôs a ouvir mesmo sabendo que nada o demoveria de sua pequena certeza; não saber é prova de que se sabe. O tinham como louco. Desde sempre esse foi o seu disfarce. Desde criança. O Artista é incompreendido.
Ele nunca quis saber.
Sustentado pela insistência e decidido a não mudar a decisão que o levaria infalivelmente ao choque, ele agora apenas se permitia duvidar sem o medo que sempre o acossou quando teimoso tentou entender do que se tratava o que em frente a ele se escondeu por trás de um simples nome; Vida.
Vida...
Por alguns instantes a ele não importava o que ele era ou quem, ou se ele era quem ou o que era, as circunstâncias e os fatos se desprendiam; se prendiam outra vez; se tornavam desconhecidos uns aos outros e quanto mais ele buscava qualquer razão mais perto da ignorância ele se encontrava, e uma pontada de inveja do cão esquelético que bebia lama ao seu lado o incomodava. O cão não sabia...o cão parecia mais feliz que ele... bebendo lama...
Mas isso só porque ele soube, mas soube sem querer, soube por querer encontrar o que não se perdeu, quis encontrar o que esteve lado a lado com o que ele pensou saber... sem que ele soubesse... quis encontrar a si mesmo sem confessar estar perdido. Ele também já bebeu lama. O vinho nunca havia chegado com as mudanças que ele se propusera. Ele havia mudado vidas apenas com palavras... somente a sua ele não conseguiu mudar...
A Arte nisso reside.
Pularia da ponte para a lagoa ou para dentro de si? Sendo o que vem depois desconhecido assim como o motivo de ser azul o véu que cobre uma possível verdade, o que ele queria?
O azul do céu está acima e o azul da lagoa abaixo também o convida e agora decidir é uma questão tão crucial que de maneira a lhe ser trivial parece que pular não o levará a cessar com êxito a viagem que quer se encerrar em cima da ponte. De encontro ao azul para sê-lo... Já era hora de se valer da decisão. A corda e a arma talvez fossem mais fáceis. A ponte ri de sua covardia. Será rápido, talvez haja dor... sempre era por medo da dor que ele desistia. Sempre há aquilo que te faz desistir e recuar porque sempre há um ponto fraco, um ponto que sempre sangrará se pressionarmos o ferimento que ele é. Um ponto fraco foi o que o fez chegar tão perto do parapeito da ponte enquanto sente o que pensa ser os últimos toques do vento em seus cabelos brancos...
Quantas vezes ele disse que já não queria prosseguir e agora outra vez se deparava com a despedida que tanto aguardou depois de tantas outras que foi forçado a viver... Perdeu tudo pra ter que ter o quê? O que teve? O que lhe sobrou além de um corpo flácido e um rosto enrugado, uma mente perdida mesmo depois de tantos anos diante da eterna questão: “O QUE É TUDO ISTO?”
É a Arte...
A Vida...
Ele não via que se perguntar tal tolice nada lhe traria, nada trouxe aos que primeiro chegaram ao ponto que de tão essencial tornou-se desnecessário, o que ele pensou saber desde que se deu conta que o que aprendeu não foi o que quis, não foi o que viu ou sequer o que sentiu, ainda que cabelos brancos exijam certa dignidade mesmo com a eterna questão pedindo que se perceba que a resposta é questão tão grande quanto a própria normalidade, o normal que nos impede de transcender para o local onde o que se soube parece tornar-se não menos que a mais descabida mentira, não é menos que a própria rejeição aceita como o que é mais evidente...
O que chamam de “consciência” também esteve condicionado ao que ele entedia como mundo diante de um mundo que o ignorava tanto quanto ignorava àquele cão que com o rabo entre as pernas olhava-o como se dissesse “Velho idiota, por que não assume logo sua covardia e se deixa deixar pra lá? O que foi feito foi feito, ficará e você seguirá, querendo ou não. Eis sua Obra.”, ele olhava o cachorro tomado pela sarna que findaria em mais uma carcaça devorada em poucos dias e pensava que muito além desse ser que era nada menos que o próprio Mistério que ele tanto quis e ainda quer desvendar estava ela... a Vida... ela que agora pode aceitar mais uma derrota que não será nada além de nada quando ele se atirar em direção ao chão duro das águas da lagoa que já abraçou tantos outros antes mas que duvida que o velho tenha coragem agora, já que essa não era a primeira vez... e ele nem lembrava desde quando se defrontou com tal necessidade.
De tanto se preocupar em encontrar tal resposta ele esqueceu de buscar outras coisas, esqueceu que enquanto a vida seguisse não poderia deixar de lado o que seria uma vida normal, conquistas normais, e por ter esquecido disso enquanto quis o que ninguém pôde entender ele agora tinha mais do que confirmado a certeza de que não tinha nada a não ser aquele cão...
Ás vezes ele esquecia que agora era um mendigo, depois de ter sido tanta coisa... de ter sido seu próprio Artista...
O cão o olhava como se o pedisse pra não o abandonar, que pensasse mais uma vez se o que estava pensando em fazer resolveria enfim as coisas.
Olhando para o saco de plástico cheio da sua tralha que lhe valeria alguns centavos, ele foi atirado ao passado e viu como se fossem reais os rostos daqueles que tanto o pediram pra que ele fosse normal, ele que teve tudo para conquistar nas mãos e contrariando qualquer lógica abandonou o que tinha por não aceitar ser parte de um caminho já trilhado, quando jovem ele se sentia velho demais e agora, subindo no parapeito que o levaria ao encerramento iniciado dezenas de anos antes, ele percebia que a juventude que perdera perambulando sem destino por ruas de aflições o tomava e o aconselhava a esperar um pouco mais... se só uma resposta foi o que por toda a vida ele procurou pagando com ela própria, agora mais do que nunca o dinheiro que nunca ganhou, a família e os sonhos que descartou por decidir viver só com sua indiferença lhe mostravam que pular o faria finalmente realizado, se todas as vezes em que antes quis acabar com tudo e não havia conseguido foi porque sabia que a resposta em algum momento chegaria... ele deixaria uma Obra...
Ele foi Artista? Quem poderia imaginar que alguém que se habituou a comer lixo pudesse guardar tanto só pra si?
Decidir viver a mercê de passos incertos foi uma tentativa de expandir o que num passado distante só poderia o aprisionar, mesmo décadas distante do que agora era o passado ele jamais esqueceu do que a Vida lhe disse um dia... antes de sua primeira partida... ele lembrava que não houve uma despedida... “Meu filho... te amo tanto a ponto de dizer que não te culpo... se fizer isso...”.
Só o Artista entende sua Obra... e só ela sobrevive...
Ele talvez precise de um adeus...
Sacou a caneta do bolso, retirou a Obra do saco e escreveu na última folha:
“E o Artista se despediu...
Pulou da ponte...
Pra o azul...”