"MOTO PERPÉTUO"

"MOTO PERPÉTUO"

Ao leitor desavisado informo que essa expressão se refere a algo que reinicia sempre, deforma igual e sem interrupção. Quem já viu um monjolo -- numa fazenda qualquer -- entenderá o que falo. Trata-se de engenhoso socador de grão do tipo martelo, com pequena caixa d'água "na cabeça"... quando cheia seu peso abaixa o socador e a inclinação joga a água fora. Com a caixa vazia, o contrapeso oposto a faz subir novamente e a fonte torna a enchê-la. Daí... isso é "moto perpétuo" !

Mas, no trissecular convento o abade tina preocupações mais terrenas, tivera sonho perturbador. Um doido apontava pra êle, gritando:

-- "Saia, serei o diretor, a partir de hoje" ! e, no restante do pesadelo, "seu convento" virava boate lunar.

Teve pouco tempo para lamentar-se, um monge -- mal acabara de tomar o café frugal, pão dormido e chá de erva cidreira -- quando jovem frade o informou que, no portão havia alguém querendo entrar na vida monástica.

Não faltava mais nada... além dos turistas curiosos de sempre, agora um sujeito qualquer a pensar que convento era pensão. Olharam-se de cima abaixo, já se detestando... "o que vem a ser esse inútil, algum maluco" ?, pensou o velho ermitão. "Huumm, o padreco vai me recusar, tenho certeza... quem pensa que é, o Papa" ?!

-- "Meu rapaz, seja quem fôr, desista... é vida de sacrifícios, sem regalias nem diversão mundana" !

-- "Sei de tudo isso, padre, mas..."

-- "Prior, sou o diretor do convento" !

-- "Sim, sim, prior... cansei desse Mundo nojento e decidi..."

-- "Não, não decidiu... quem decide sou eu e a resposta é NÃO ! Você não tem o perfil, não tem vocação, isso é só capricho passageiro. Agora, com licença" !

Ameaçou levantar-se da mesa, mas o rapaz levantou antes, sua boca quase mordendo a testa do abade estupefato:

-- "Não podes me impedir, sou filho de Deus" !

-- "Os animais e as aves também são, nem por isso os temos no convento. Não insista, por favor" !

-- "Terão que me retirar à força, serei monge, mesmo que não queiras" !

O prior não queria escândalos e reconheceu a semelhança deste com o doido de seu pesadelo, Era Destino... permitiu o ingresso da "peste" !

Mal entrou começou a modificar tudo, desde o catre tosco e a cama dura e desconfortável. Poz música -- ainda que sacra e de órgão -- no refeitório, antes silencioso e interferiu até na escolha da marca do vinho das missas. Na horta só de batata couve, repolho -- imutável menu de séculos -- nasceram tomate, cebola, pimentão e salsinha, que melhoraram muito a comida insossa, quase um castigo.

O prior -- que nascera Cincinato mas optara por ser um modesto Celso na vida eclesiástica -- via as novidades deste "novo Celso" com amargura e estranheza, embora reconhecesse que as mudanças alegraram os dias dos frades. Isso era ruim, o Convento tinha por objetivo mortificar o corpo para aprimorar o espírito, a alma ! Faleceu pouco depois e o "novo Celso" assumiu o posto máximo, por aclamação.

3 décadas depois um jovem monge veio avisá-lo, estava no portão um rapaz querendo falar-lhe:

-- "Despache-o, frei, tive uma noite horrível, hoje não recebo ninguém" !

-- "Não dá, prior Celso, êle já está aqui no gabinete" !

-- "Prior, cansei desse Mundo nojento e decidi entrar no Convento" !

"NATO" AZEVEDO (em 3/fev. 2021, 15hs)

OBS: dedicado ao angoleiro de Belém AUGUSTO LEAL, com quem aprendi que se pode ser amigo de alguém, mesmo quando as opiniões divergem e os pontos de vista são opostos aos seus.