Incorporação
O telefone tocou, Florência atendeu; era Miranda, e não parecia feliz.
- Vi que depositou mais dinheiro na minha conta, ontem - disparou Miranda.
- Você deve ser a única pessoa do mundo que não se alegra quando o saldo bancário fica positivo - redarguiu Florência, fingindo estar magoada.
- Eu lhe disse que não queria mais nada de você, e isso inclui o seu dinheiro - retrucou Miranda.
- Mas eu estava lhe devendo - argumentou Florência - e a sua súbita partida não me permitiu recompensá-la devidamente pelo tempo que passou ao meu serviço. Está com problemas com a Receita Federal?
- Olhe, acredito que você terá mais problemas do que eu, explicando a eles a origem desse dinheiro - replicou Miranda. - De qualquer forma, isso não é mais meu problema; estou encerrando a conta e mudando de banco.
- As coisas que você deixou no apartamento, para onde mando? - Inquiriu Florência.
- Pode jogar fora ou doar para a caridade - atalhou Miranda. - Bom, creio que já terminamos nossas pendências; até não mais ver.
E encerrou a ligação.
* * *
Florência encarou a candidata mais promissora; a jovem parecia ser uma versão menos estressada de Miranda. Bom, no início todas elas sempre pareciam estar perfeitamente felizes com a oportunidade dada...
- Como ressaltei, é uma função muito bem remunerada - explanou Florência. - E basicamente, você terá que ser a nossa representante em cerimônias públicas e nos contatos com a imprensa. Você é formada em relações públicas, não é?
- Sim, senhora - confirmou a jovem.
- Florência, Dagmar, apenas Florência - corrigiu delicadamente.
- Sim, se... Florência. Mas então, serei relações públicas da sua organização?
- Na verdade, para todos os efeitos oficiais, você será a organização; ou o mais próximo que esta terá de ter um corpo físico. Será paga de acordo com a responsabilidade que lhe será exigida, uma cifra em torno de seis dígitos mensais, como lhe adiantei.
Os olhos de Dagmar brilharam.
- E para isso, vou circular por aí num carro com motorista, viajarei pelo circuito Elizabeth Arden no meu próprio jatinho executivo, e participarei de coletivas com a imprensa em hotéis de luxo?
- Precisamente - afirmou Florência.
Subitamente, a expressão de Dagmar mudou. Parecia indecisa.
- Eu só não entendi bem a parte do "corpo físico". Não estamos falando de uma pessoa jurídica?
- É um conceito novo em que estamos trabalhando - redarguiu Florência. - Nossas representantes SÃO a organização; elas assinam um contrato conosco, assumindo todas as responsabilidades legais em troca de uma remuneração e outros privilégios.
- Todas as responsabilidades... - murmurou Dagmar, expressão hesitante.
- E após três anos, você pode desistir na hora que quiser - acrescentou rapidamente Florência. "Como Miranda", pensou.
- Bem, acho que posso experimentar para ver, não é mesmo? - Declarou finalmente Dagmar, com renovada confiança. - Três anos passam depressa...
- Sábia decisão! - Encorajou-a Florência, estendendo-lhe um contrato impresso em letras miúdas. - É só assinar em todas as vias.
Dagmar foi assinando onde era exigido, sem ler - exceto a parte que discriminava sua remuneração. Seis dígitos!
A parte que descrevia a estranha cerimônia de incorporação da pessoa jurídica, passou completamente desapercebida.
- [27-02-2021]