UMA "D-R" INFANTIL

ADENDO ao texto: este conto (ou peça ou, quem sabe, filme) é homenagem à criança atual, tão diferente da que existiu em nossa geração, os anos 50/60. Hoje meninos e garotas falam de igual para igual com qualquer adulto, coisa impensável naqueles tempos.

UMA "D-R" INFANTIL

Ainda eram tempos de pandemia e o pai trabalhava em casa -- em "home office", enchia a boca para pronunciar a expressão -- mas a jovem filha voltara à escola, com todos os cuidados. Agora mesmo estava lá, enquanto êle "bisbilhotava" o quarto da menina, com pouco o que fazer naquela manhã. E lia o Diário dela, que o esquecera sobre o criado-mudo. Vozes na sala, a da empregada e... e da Larissa, era a inconfundível voz de sua amada e espevitada filha, "sem papas na língua", diria sua (dele) bisavó. Era tarde, tarde demais para sair... foi surpreendido olhando para o teto e coçando o rosto, sorriso amarelo-canário, os lábios apertados.

-- "Papai, o que faz no MEU quarto, na MINHA casa" ?!

-- "'Pera lá, queridinha... NOSSA casa" ! E o que faz você aqui, a essa hora ? Não devias estar estudando" ?!

-- "A 'fessora do turno final faltou... e o que faz 1 HOMEM no quarto de uma mulher, sem ser convidado ? Perdeu alguma coisa aqui, além do juízo" ?!

Essa era sua filha... 7 anos de petulância, arrogância, decidida e impondo-se sempre, a cara e o jeito da mãe Luciana, por isso casara com ela.

-- "Não gosto desse seu tom e não vou responder a isso" !

-- "É o único que eu tenho" !

Percebeu seu querido Diário bem perto da mão cabeluda do "daddy" e a suspeita relampeou no cérebro infantil.

-- "Você não estava lendo o meu Diário, estava" ?!

Merda... nascera depois dos tempos do "flower power", de "paz e amor" porém, com pais tradicionais, sem o senso de "liberou geral" que a Geração "hyppie" e "beatnik" espalharam pelo Mundo. Ainda se sentia "travado", cheio de "amarras" internas, onde mentir era pecado e, quem o fazia, um ser desprezível. Mudou de côr e arregalou os olhos, costumava piscar quando mentia, era inevitável.

-- "Diário... que Diário, menina" ?!

-- "Esse aí, na sua mão... como achou meu esconderijo" ?

-- "Não achei coisa alguma, isso estava aí quando entrei" !

Era verdade, ela esquecera de guardar. Um estalo no cérebro infantil alertou-a para o desastre:

-- "Você não ousou LER O MEU DIÁRIO, não é, "daddy" ?!

O coração dele acelerou, os olhos quase saltaram das órbitas, sentiu a cara mais verde do que abacate verde e ga-gaguejou, outro "tique" que não o largava:

-- "Q-que histó-tória é essa, n-não li co-coisa nenhuma" !

-- "Seu Ronaldo, o senhor é um monstro ! Invasão de privacidade é CRIME, vou ligar pra Polícia ! Saia já do MEU quarto" !

Foi para a sala, meio sem-graça, adorava a filha única, "cópia escarrada" da mãe, iguaizinhas em tudo. Ouviu, boquiaberto, a menina no telefone celular:

-- "Alôôô, é da Polícia ? Tem um ladrão na minha casa" !

Em 3 saltos arrancou o celular das mãos da "pestinha":

-- "Não, não, minha senhora, é exagero da minha filha, está tudo bem aqui, ela só tem 7 anos" !

-- "Oito e meeeio" !, berrou ao lado, o pai afastando-a com o braço estendido.

Mal lhe entregou o aparelho, este deu sinal de chamada.

-- "É a Polícia, veja lá o que vais dizer" !, alertou o pai.

-- "BOM-DIA, é da Segurança Pública... chamaram daí agora há pouco" ?

-- "Foi sim, fui eu... peguei meu pais no MEU quarto, lendo MEU Diário e isso é CRIME" !

-- "Santo Deus, é muita coragem dele, mas você terá que resolver isso aí mesmo, mocinha. A Polícia é para coisas mais urgentes" !

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Luciana, a mãe, chegava, sacolas do Shopping em ambos os braços.

-- "Mammy, flagrei papai no MEU quarto lendo MEU Diário, na MINHA casa" !

-- "Epa, NOSSA CASA, querida e... ("Dio mio, lá vem a gagueira de novo"!) e-eu n-não dis-disse q-que li" !

-- "Doutor Ronaldo Ferreira y Alcântara, você não fez isso" ?!

-- "Mas, "Lulu", foram só umas folhinhas" !

-- "Caraca, todos os meus segredos no cérebro deste troglodita infame... estou perdida, minhas amigas saberão o que penso delas. É o meu fim" !

-- "Pombas, é só um livrinho... que droga ! E você sempre me deixa ler o nosso Diário" !

-- "Exatamente... o NOSSO, jamais o MEU ! É onde guardamos nossos segredos mais secretos, sonhos, delírios, fantasias sexuais, namoros, "ficantes", tudo" !

-- "Quantas páginas você leu, doutor Ronaldo" ?!, insiste a garota.

-- "Mas o que é isso agora... a "Santa Inquisição" ?!

-- "De onde até onde, "daddy"... e sem mentiras ! Êle teve a coragem de dizer que -- se eu contasse pra você -- ía me tirar o celular e não me levaria ao cinema no domingo. Homem não presta" !

-- "Menos, "Lalá", menos... não estás falando com um qualquer, é teu pai. E você, "Rorô", que vergonha... jamais esperei isso de ti. "Livrinho" é revista de figurinhas, de piada, de futebol, as nojentas do Zéfiro" !

-- "Estou esperando, papai... quantas páginas" ?!

-- "E eu lá sei ! Da que o Betinho pisca pra ti sem a namorada ver, até a que o Luisão te dá uma "prensa", de "barraca armada", na porta do banheiro feminino" !

-- "Por Asgard... o Diário quase inteiro ! É o fim do Mundo" !

-- "Rorô", estou te esperando no quarto, precisamos conversar"!, e sai, com as compras todas, irritadíssima. O pai, aborrecido, ameaça a pequena "espoleta":

-- "Dona Larissa Ferreira y Cavalcanti, vai ter troco" !

E ela, sabendo mentir como poucas, replica, mãozinhas para cima, pé direito para trás, balançando as ancas de forma sugestiva:

-- "Olha só como estou tremeeendo" !

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A conversa com a "patroa" foi das piores... nada de "vingancinhas" nem de recolher celular. Para "(a)pagar seu erro" ía levar a família toda para ver "Xuxa e os Trapalhões", "sem tugir nem mugir", diriam seus bisavós. "Lalá" estava no papel de rainha má, dona da situação.

No domingo, dia de verão intenso, na quilométrica fila do cinema, êle de capa de chuva, cachecol enrolado até o nariz e chapéu, para não ser reconhecido por algum amigo, também levando filhos à "matinèe".

-- "Mammy", papai parece policial daqueles filmes da Máfia"... e, virando-se pro Ronaldo, todo sem graça, completa, sarcástica:

-- "Finja que é meu tio, não quero pai vestido desse jeito cafonérrimo... ninguém merece" !

"NATO" AZEVEDO - em 26/fev. 2021, 5hs)

OBS: "D-R" - discussão de relação, ou relacionamento, traduzindo, "briga de casal".