O caso 27 - Quem matou a moça?
— Aló! É da comissão do covid19?
— Sim minha senhora, em que lhe posso ser útil?
— O meu esposo chegou de Portugal no dia 27 e está constantemente a sair de casa! Não está a cumprir a quarentena domiciliar, nem aqui e nem em lugar algum. Obriga-me a ter relações com ele, alegando que estas coisas não lhe actuam! - reportou dona Miraldina Policarpo de 42 anos.
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Wally aproveitou o momento em que todos estavam na sala atentos a televisão, passou vagarosamente no corredor, carregando seus sapatos e um frasco de perfume nas mãos. Abriu silenciosamente a fechadura da porta e voltou a puxá-lo com a cautela redobrada. Entrou rapidamente na viatura que se encontrava estacionada logo à saída, ligou-a e começou rapidamente a marcha.
Enquanto saia, observou o retrovisor, a esposa estava em pé junto à porta. Ela apontava para a viatura e gritava:
— Vai e não volte, seu irresponsável! Depois não diga que não te avisei, hoje vais arrepender-te, seu sacana! - dizia.
Wally virou à direita ao fim da rua e escapou da vista da mulher que bradava por sua atitude. As ruas revelavam-se isoladas, via-se uma ou outra pessoa deambulando nos quarteirões, estes usavam máscaras protectoras. Havia dentre estes poucos, alguns agentes da polícia que por sinal, monitoravam os populares.
— Caraças! Esqueci a porra da máscara! Se for interpelado, estou ferrado. Vou ver se compro na primeira farmácia que vir, não posso andar assim — resmungava enquanto dirigia aquele veículo enorme dos muatas.
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Iveth aguardava ansiosa pelo namorado, colocou uma roupa bonita e adornou-se de perfume. Ela rodopiava à volta da casa. Sua mãe, impaciente, zangou-se daquela atrapalhada e caiu-lhe por cima.
— Iveteee! Pare de andar de um lado para outro antes que me aborreça! Já agora, vais aonde vestida desse jeito? Preciso voltar a lembrar-te que estamos em estado de emergência?
— Calma dona Iva, eu não vou a lugar algum. O Wally vem a caminho para me ver.
— Waliuu denovo? Ele não foi proibido de sair de casa desde que veio de Lisboa?
— Não mãe, ele já cumpriu os 14 dias obrigatórios!
A senhora Ivanete deu um bom "mixoxo" e adentrou no quarto, batendo a porta à sua trás. A kota sempre esteve descontente com o relacionamento da filha, sempre a alertou sobre a diferença de idade e do próprio status social em si, mas ela nunca lhe dava ouvidos.
— Se o seu pai estivesse vivo, nunca aceitaria esse relacionamento. Já teria posto você e as suas tralhas fora desta casa, mas como é a burra da tua mãe, contanto que eu fale, tu continuas a perder tempo com esse matulão que só te vai trazer doença nessa idade!
— Acreditas mesmo nessa história da separação com a mulher dele? Não tem moços bonitos e da tua faixa etária na escola ou aí onde costumas ir? Aquele teu colega Matondo, bakongo, bom à matemática, menino respeitoso; gosta muito de ti e é praticamente da sua idade... — dizia a kota.
Faz três anos desde a partida do seu marido para o além vida. Uma casa naquele bairro do Marçal, uma pensão no ministério do interior e três filhos constituem o legado que o esposo deixara. Um mar de responsabilidades para aquela kota de quase 60 anos de idade. Iveth era a mais velha e a que mais trabalho dava, seus dezassete anos não tinham servido para o seu amadurecimento.
— Iveth... Estão a buzinar na porta! - gritou Osíris, irmão mais novo dela.
Ela foi rapidamente para fora e adentrou naquela viatura, beijando o seu amado demoradamente.
— É a terceira vez que rompes a quarentena domiciliar para vires me ver. Não vou negar que isto me agrada, mas diga-me; não tens medo de ser descoberto pelo Estado? — indagou Iveth enquanto sorria e dava repetidos selinhos àquele homem.
— Ah, boneca... Se eu tivesse alguma coisa, teria se manifestado nestes dez dias que passaram. Estou completamente limpo e além disso, já são quase vinte horas, ninguém vai me reconhecer...
Os pombinhos meteram-se em conversas e trocaram amassos, ali mesmo na porta da velhota Ivanete, sem pudor e respeito!
Alguns minutos depois, vários veículos policiais acompanhados de ambulâncias, cruzaram aquela rua e pararam justamente onde eles estavam estacionados, cercando a viatura e exigindo que os mesmos descessem do veículo.
— Senhor Wally Policarpo, faça o favor de descer da viatura! Coloque as suas mãos onde podemos ver, o senhor e todos os integrantes da viatura! — ordenou um oficial da polícia.
Foi uma questão de segundos para a rua 27 do Marçal ficar completamente cheia. Havia agentes da polícia, médicos e moradores daquela comunidade que também saíram com as suas máscaras para apreciar in loco o facto inusitado. Os médicos usavam factos especiais e andavam com aparelhos pulverizadores e equipamentos de biossegurança.
— O senhor quebrou a quarentena domiciliar. Tomamos conhecimento de que tens saído várias vezes e inclusive participou de várias festas. Isso é um crime, senhor Wally! Tem noção do risco que corre? Você e a sua família? E essa menina que aparenta ter idade de sua filha, não deveria protegê-la?
Ouvia-se questionamentos e ameaças por parte do corpo da polícia, dirigindo-se ao Wally que se mantinha em silêncio com a cabeça para baixo sem dizer uma única palavra. Iveth, por sua vez, chorava e chamava pela mãe e irmãos que também, assustados, lacrimejavam.
— Quem matou a moça? — questionou um vizinho fofoqueiro que chegou atrasado na cena. Este arrastava-se na multidão para ficar mais próximo da cena.
— Senhor, não há nada para fazeres na sua casa? Queres experimentar uma noite na cela? Quem sabe lá encontre uma moça morta. Desapareça daqui! Não és para aqui chamado nem a si e muito menos esse aglomerado de pessoas à sua volta! — intimidou-o um dos oficiais na cena, apontando o dedo, indicando a multidão.
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Tanto a Iveth quanto o Wally foram levados em custódia em ambulâncias diferentes. Nem a mãe e os irmãos dela foram poupados à sorte, estes foram mantidos em casa sob vigilância rigorosa. Todos os moradores daquele quarteirão tinham sido alertados a não saírem das residências até segundas ordens. Aquele acontecimento foi manchete nos canais de notícias e nas mídias sociais. Todos falavam do famoso caso 27.
Três dias depois, o teste do Wally tinha sido revelado positivo, ele era assintomático mas tinha o vírus. A amostra da Iveth estava em processamento. Tanto a família de Iveth como a de Wally também tinham sido levadas em custódia.
— Abram uma ficha para o caso 27, todos os contactos directos devem estar em quarentena Institucional — recomendou um dos representantes da comissão interministerial.
Durante este período, dois bairros foram fechados, ninguém podia sair e nem entrar. Deu-se início a recolha de amostras dos contactos directos e indirectos e, no processo, tinha um militar por cada metro de superfície naqueles bairros, ninguém podia sequer espreitar da janela para tossir. Os populares revelavam-se frustrados, clamavam e xingavam.
— Não podemos continuar fechados aqui por muito tempo, precisamos de comida, água e outras necessidades básicas e os serviços do bairro não conseguem atender a demanda! Nós não somos animais!
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No decurso da investigação, sabe-se que Wally participou em três festas, teve um universo de contactos directos e indirectos e, inclusive, uma terceira família tinha sido descoberta. A namorada, as esposas e os filhos tinham testados positivos, infelizmente, aquela senhora tinha feito a denúncia do marido tardiamente.
Cada novo dia, Angola regista novos casos por conta desse caso insólito, a estes juntou-se outro caso de contaminação local, o outro famoso caso 32 que se deu na Mabor.
Trinta dias depois do incidente no Marçal, Wally e parte dos contactos directos expostos ao vírus tinham recuperados, incluindo suas duas famílias e os membros da casa de Iveth, com excepção da kota Ivanete, ela, com os seus problemas de tensão crónica e irregularidades cardíacas, não resistiu a pressão e acabou falecendo nos primeiros quinze dias.
A esposa "oficial" do Wally decidiu dar findo ao casamento. Tinha suportado demais aquele relacionamento construído na mentira. A última descoberta, a da segunda família com filhos já crescidos, tinha sido a gota d'água. O esposo jurou de pés juntos que nunca mais a trairia, chorou, suplicou por perdão e dramatizou em vão. Foi incapaz de reconquistar dona Miraldina.
Iveth por sua vez, consternada com a morte da mãe e com a responsabilidade que tinha herdado, jurou nunca mais ver pintado aquele homem. Todos os dias chora de amarguras pela mãe, pelas vezes que não lhe dera ouvidos, pelos irmãos e por tantas coisas que tinham ficado sobre sua tutela.
"Como é a burra da tua mãe, contanto que eu fale, tu continuas a perder tempo com esse matulão que só te vai trazer doença nessa idade"
A voz da velhota Ivanete ecoava em surdina nos pensamentos de Iveth, nos seus dias mais sombrios, e, principalmente, quando de longe, fitava os rostos dos irmãos cabisbaixos e abatidos. Naquele período, Iveth tinha pedido a uma das tias para que a ajudasse a tomar conta da casa e dos meninos, decidindo assim, levar a vida de forma diferente. Uma outra vida tinha começado para aquela menina!
O Estado de Emergência continua, o Estado continua engajado no combate a propagação e eliminação da pandemia. As pessoas, um pouco por todo o país, vão fazendo a sua parte, cumprindo com as medidas de prevenção, utilizando máscaras, lavando as mãos e, muito importante, vão evitando sair de casa.
FIM
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