Patrão
De peito estufado e prato vazio. É assim que vive seu Armando, brasileiro médio, mas não um médio como em classe média. Não. Me refiro a um médio no mais infeliz e importuno dos seus significados. Tão médio quando a própria média lhe permite ser.
E ao se tratar de sua aparência, Armando pouco se distingue.
Patrão sempre comentava sobre Armando, mas claro, isso não o incomodava. Patrão era boa gente. E boa gente humilde, ora! Sempre alertara Armando que seu rosto é de um alvoroço desajeitado, sem forma, deselegante.
"Feio, Patrão?"
"De tamanha deselegância" — respondia.
Patrão sempre fora bondoso, pensava. Acordava pensando em Patrão, e se agarrava aos seus dizeres na hora de pegar no sono, "de tamanha de elegância", sorria e se punha a roncar.
Sonhava noite após noite que se deliciava com um prato de arroz. Sentia-se mal quando lembrava do sonho. Via a panela de arroz dando bobeira no fogão, e já resistia ao cheiro a muito. Não conseguia se controlar mais. Pegava o prato e colocava uma, duas, três escumadeiras de arroz. E cheias! Ah, não podia recordar deste ato que cometera. Como pode ser tão afobado? Puro egoísmo! Patrão e os outros bem que tinham razão, é má índole e pensa somente em si.
Não tinha cria e mulher mulata que morasse ali não permanecia por mais que um raiar. Vivia sozinho e desfrutava com prazer. Tudo o que possuía em seu cubículo infinitamente minúsculo era um palete com meio pedaço de colchão murcho, uma vara, pregada pelo próprio seu Armando, que ia de parede a parede, onde deixava seu uniforme estendido, bem no alto, pairando, tal que pudesse o ver sempre, e além disso o quarto possuía também um ar soturno sem igual que era, em partes, devido a única lâmpada lá presente funcionar apenas em um estado de meia fase piscante.
Sempre que alguns tostões lhe vinham a mão logo se punha a gastá-los. Claro que barriga roncava, mas não podia se dar ao luxo de comer um prato de comida. Iria ser como animal feroz, não teria modos, sujaria se todo e logo lhe dariam pancada. E não, não poderia ser egoísta como em seu sonho novamente! Armando comprava então engraxate. Polia seus sapatos a finco e só deixava de lustrar quando o resultado era de um brilho perolado. Patrão sempre admirou o brilho dos sapatos, acreditava que era um de seus objetos favoritos. Com certeza havia de ser, afinal sapatos são brilhosos, reluzentes, e sapato meu reluz tanto quanto os outros, pensava.
Apesar de sua cega admiração por Patrão, Armando começou a notar que, ultimamente, as coisas iam diferentes. Patrão não mais se dirigia dia após dia a Armando, não comentava mais sobre o brilho exagerado de seus sapatos — que descrevia como um sebo repugnante que lhe cortava a goela em ânsia — e além de tudo não elogiava mais a aparência de Armando. Não ouvia mais pitaco algum sobre sua aparência ser de uma natureza moribunda. Nada.
Armando transformara sua decepção em pura raiva, ódio refinado por Patrão. Se punha à sua cama e deixava as não-falas de Patrão tomar sua mente. Sentia inveja e ciúme daqueles que recebiam a atenção de Patrão e, tomado por esses fortes sentimentos, dormia aos punhos cerrados.
Não suportava mais acordar e observar com todas as cores seu uniforme no ar, pendido. Era uma afronta a forma em que ele se mantinha dependurado, lá, liso como pedra polida, sem um vinco sequer. Foi obrigado a retirar a pauladas o varão. A cada pancada que assentava sentia algo crescendo dentro de si, um fervor pavoroso que queimava-o tal como 7 doses seguidas de manguaça pura. Mas manguaça essa, era das boas.
No dia seguinte Armando não pode suportar. Um colega seu havia chegado atrasado pelo quinto dia seguido, e Patrão perdeu se em cólera.
"Irresponsável, imundo, rato sem vergonha!"
Não podia suportar ver isso, toda essa atenção sendo desferida a um reles outrem. Não! Sentiu seu interior queimar, mas agora queimava como fogo ardente. Era dor. Aos punhos cerrados e ranger de dentes foi ao encontro de patrão. Sentou-lhe uma tapa as ventas que realocou a postura de Patrão à órbita.
Sim, fora demitido logo após de receber para si um pouco da cólera que ainda restava de Patrão. Armando pesou, sentiu o mundo caindo sobre suas costas. Como pode ousar tratar Patrão assim? Teve um breve colapso e acabou distorcendo a realidade. Tudo a troco de nada — tentando reconquistar o que tinha, acabou-se por perder tudo.
Desgraça! De um lado sentia a cólera fumegante que se alimentava de sua alma, mas de outra lembrara dos dizeres de patrão e de sua atenção que, outrora, havia.
Não se lembra de como, mas havia chego em um desfiladeiro, a beira da cidade. Os canais de esgoto todos encontravam-se ali, o cheiro fétido do local não se comparava a brutalidade horrenda de sua própria ignorância, de sua própria arrogante vida.
Olhou para o rio, que seguia de forma voraz morro abaixo, independente da quantidade de lixo, este seguia seu rumo, Armando notou isso, mas não foi capaz de pensar isso em palavras. Apenas sentiu. Com o vento de um mormaço infernal batendo em seu rosto, sentiu algo diferente crescendo dentro de si, algo inexplicável em palavras normais.
Suas bochechas, então, ficaram gélidas. Estavam encharcadas de lágrimas. Não foi capaz de juntar palavra para se expressar, mas como um monólogo de natureza silenciosa, sentiu:
"Eu, de natureza mesquinha, nada mereço, e o que tive jamais mereci"
"Reles e extremamente importuno, de tamanha vileza, um dos mais infortunos. Um grande vilão."