Há um homem parado na esquina
Há um homem parado na esquina. Um homem barbudo, com óculos escuros, com roupas elegantes, porém surradas pelo vento, pela fumaça e pela poeira da cidade. Ele está naquela esquina há dias. E não sai de lá. Seus óculos impedem a certeza, mas ele parece olhar. Está sempre em pé. A testa, às vezes, franze, outras, junta-se ao resto da sua face oculta para o esboço de um sorriso.
Todos os dias, voltando para casa, eu o vejo lá. Carros, motos, pedestres, barulhos, algazarras, crepúsculos, silêncios, ecos, passos, nada o faz mudar de ideia. Parece decidido, completamente resolvido a estar ali.
Comentei com a vizinhança, que também estava intrigada com o sujeito.
Venâncio resolveu ir até ele tirar satisfação. Que ele já estava assustando as crianças e as mulheres das redondezas. Se precisava de alguma ajuda, o que queria, o que procurava.
Pelo que Venâncio nos contou, o homem só falou, com voz serena, do seu direito de estar ali, em um lugar público. E lá ficou mesmo.
À noite, a polícia passou, com velocidade reduzida, mais de uma vez por aquela esquina. Alguém havia avisado. E se não fosse pela imposição da própria autoridade, não havia motivo para interrogar o rapaz. O policial que desceu da viatura tentou intimidar o homem com o dedo firme na direção do seu rosto. Mas o outro permaneceu tranquilo, o que fez o pessoal do camburão dar sinal para abortar a operação, antes que perdessem a razão.
Mais dias se passaram e o homem permanecia no mesmo lugar. Até que em uma dessas tardes em que volto para casa, o vi, pela primeira vez conversando com uma criança. Talvez agora tivéssemos um motivo para nos livrarmos daquela assombração. Entrei em casa, deixei o que tinha na mão, e fui até a esquina.
A criança estava indo embora, quando fui me aproximando. Percebi no rosto do homem o seu sorriso esboçado, já conhecido. Senti percorrer por mim a raiva de termos todos sido enganados. Por isso o questionei já muito exaltado.
Mas o homem mantinha aquela serenidade. E eu só pensava em um jeito dele sair dali algemado. Diante dos meus gritos, a vizinhança se aproximou. No que o homem falou:
- As senhoras e os senhores não podem fazer nada contra mim.
Aquela fala fez todo mundo se aproximar da esquina com mais poder. O sujeito acuou-se, encostando à quina das paredes.
- Esclareça de uma vez, agora, o que faz aqui, ou vamos expulsá-lo na marra! – disse Venâncio, enchendo os pulmões de ar.
O homem tirou os óculos, e pela primeira vez vimos a sua expressão, agora sem nenhum mistério. Ele era mesmo sereno.
- Vim pegar as crianças, antes que elas sejam usadas pelos militares, ou pelas empresas, ou pelo estado, ou pelos traficantes, ou pelos pedófilos. Vim pegar as crianças que vocês estão cultivando, que elas passam por aqui, para poderem usá-las. Vim pegar as crianças...
E, sem terminar de falar, o homem começou a ser chutado, esmurrado, arrebentado pela multidão furiosa, que, chamando-o de doente, não quis mais escutar.
Dias se passaram, e o fato repercutiu nos jornais locais. Houve, inclusive, processo judicial sobre o caso, que foi concluído a nosso favor. Até que, sem ninguém saber de onde, outro homem surgiu. Barbudo, de óculos escuros, parado na mesma esquina, observando, já sabíamos o que, com a sua testa franzindo e esboçando um sorriso.