A Fera
Noite de um dia de madrugada em plena manhã. O terreno manuseado pela vassoura, pronto. Galinhas, pintos, calangos e uma gargalhada do sol numa lua prenha de sangue e desejos. Diz que por ali andava uma onça matadeira e cheiradora de homens. Dois bezerros já tinham ido pro bucho da bicha insaciável, espreitadora e exaladora de fúria. Falou meus arbustos de homem já cheiram ela, sentem as patas dela ronronando e amaciando as folhas de piaçabas dos meus jardins. Jogou o milho, encheu a bacia dágua, seus olhos a se espraiar pelos matos secos e sente ela. Desparido de filhos e seco de mulher, ele se amasiou com a mata e a terra. Lufada de vento trouxe folhas feridas e secas e um cheiro de uma fêmea felina no cio. Entreouvia o silêncio furioso; em transe tomou uma lapada de cana e o sangue amornou-se. Se medo nunca teve, álcool enchia o tanque das desventuras e dos desmedos, demais, donde viria assombração que o fizesse tremer? Era um magote de um todo só. Terra mato, mato terra, morte não vinha e não havia de vir agora. Não por garra de bicho fedorento.
Beijou crucifixo de galho de aroeira vermelha, viu nuvem agourenta vestindo o céu, foi limpar uma espingarda de luto. Pra prevenir, meteu uma peixeira de desencarnar coelho e tatu-peba na cintura. Viu raio tacar fogo em carnaúba e um estrondo medonho amoucar a natureza. Aquilo era um aviso, era sim. Espingarda cheia de pólvora, peixeira na cintura e a coragem nos braços, saiu. Um rugido dos infernos fez a terra se esconder. Vem, desgraçada, matadeira desaforada, unhas ensanguentadas pelo sangue dos frouxos e dos impenseiros. Me encara! Bicho e homem, homem e fera, homem-fera, bicho-homem. Viu ela mirando ele. Imensa. Teso, raio feriu e alumiou os dois, a fera partiu e ele atirou.
Manhã de uma noite em pleno ressonar do dia, uma bátega lavando a roupa de um alvorecer crepuscular, pingos nas serras e galinhas e galos e pintos chafurdando a terra molhada de água e sangue.