Levava uma vida sossegada
“Porque és um bom camarada, porque és um bom camarada, porque és um bom camaradaaaaaa, e ninguém pode negar!”
Mário e seus colegas festejavam naquele dia na empresa o reconhecimento da diretoria dado a ele, nesse final de ano, pela sua atuação dentro da firma e pela camaradagem demonstrada, ao longo desse tempo, para com seus colegas. Na verdade, Mário era um desses caras que estava sempre pronto para dar uma mão quando solicitado. Alem do mais, não tinha ninguém como ele na hora de dar um conselho e não poucas vezes ficava fora do expediente para arrumar papeis ou o caos do computador no escritório de alguém. Sempre prestes a responder, sempre preparado a ajudar, e tudo o fazia com aquele sorriso no rosto de quem tem tanto para dar e pouco para pedir. Parecia até, que ele era auto-suficiente em tudo. E na casa era do mesmo jeito, bom pai, bom esposo, em fim, o que se poderia chamar de bom cidadão como poucos, como anda fazendo falta nesta sociedade apresada e desafecta.
Por isso Sara continuava a admirar seu marido, com aquela admiração que poucas mulheres sentem pelos seus companheiros de estrada. Ele nunca esquecera da data de aniversário de seu casamento; nunca, da flor fresca encima da penteadeira cada vinte e sete de dezembro, seu aniversário de nascimento, e nem de fazer pelo menos um brinde quando relembravam a vinda ao mundo da única filha. Ah, a filha! Era o maior orgulho do casal e em particular do proprio Mário. “Eu sou uma mulher afortunada!” dizia sempre Sara. “Não poderia ter escolhido melhor, o Mário é um presente de Deus na minha vida”
Sábado à tarde. Mário estava trabalhando em casa. É sempre assim, o horário de expediente nunca acaba para quem quer fazer as coisas do jeito mais certo. Bem, também o salário compensa. Nas férias, com esse dinheiro pode se fazer aquela viagem tão sonhada ao longo do ano, praia, passeios, aquele show da Adriana Calcanhoto assistido em primeira fila, a viagem de avião e tudo mais da melhor qualidade. É, trabalhar as vezes compensa para as pessoas, e senão, vai fazer o que? É o destino do ser humano, tudo por culpa do Adão.
“Seu Mário, seu Mário, venha cá fora, a menina se machucou, não é nada grave, mas vai ter que levá-la no pronto-socorro!”. Foi a única coisa capaz de tirá-lo da sua intensa concentração. Justo agora. Saiu correndo até a rua, foi quando viu a Vânia jogada no chão com a bicicleta encima da cabeça e um choro de escutar a um quarteirão. Os berros da menina o assustaram bastante. O sangue corria pela face da criança e chegava até o pescoço. Mário tentou manter a calma, levantou a menina do chão e percebeu que era apenas um pequeno corte na fronte, mas mesmo assim teria que levá-la para que praticassem os curativos.
Já no carro, e com os soluços da filha que não paravam, ligou para sua esposa “Não é nada não, estou indo pro hospital e acho que vai demorar só uns minutos, não precisa se preocupar, logo, logo estou de volta, fica aí com suas amigas, afinal de contas o jogo é importante para a obtenção de fundos para sua campanha de beneficência, e você é a organizadora, esperou tanto para isso, a Vânia vai ficar boa, cê sabe como ela é, muito melindrosa, mas já vai passar, até que já se tranqüilizou e esta olhando pela janela, criança é assim mesmo”
A voz do seu marido tinha conseguido tranqüilizá-la, a meias “Ele é tão bom pai, eu acho que as colegas vão entender se eu for embora, eu gostava quando era criança que minha mãe estivesse comigo. Ah se meu pai fosse que nem ele!”
Quando entrou na casa, a primeira coisa que escutou foi aquela cancão da Adriana que seu esposo tanto gostava, a melodia foi levando-a até o escritório, ali estavam as luzes ainda acesas, o computador ligado e a tela plantada na caixa de e-mail. Pensou em desligá-lo, mas não soube se devia. “O Mário tá trabalhando ainda” pensou “E quando ele voltar certamente vai continuar, é... melhor não mexer en nada” Mas a curiosidade pôde com ela, chegou perto do monitor e seus olhos se detiveram nos nomes das três pastas a sua frente: Lar, Trabalho, Privado. Bem, a única coisa que restava era esperar que voltassem do pronto-socorro, não tinha nada a fazer, mexeu no mouse, clicou sem saber onde, e a pasta de Trabalho ficou aberta. Quantidades incríveis de endereços, nomes, telefones, datas. Fechou, a final de contas ela não entendia nada disso, apenas sabia que seu marido era muito caprichoso com a informação, e se não fosse por ele e seu capricho, a empresa não teria tanto sucesso. Clicou de novo, desta vez querendo fechar, e quando o fez, a palavra Privado tomou outras cores diante dos seus olhos, ficou imensa, atraente, cheia de tentação, como se não pudesse se livrar dessa atracão, Sara abriu-a. Havia doze mensagens, todas vindas do mesmo endereço, a mente dize-lhe “fecha”. Não fechou, clicou novamente, o primeiro e-mail dizia “Adorei as flores que me enviou, você sabia que foi justo no “nosso primeiro aniversario?”, a data era de quinze de novembro, 20 dias atrás. A sua cabeça de novo deu uma ordem “fecha e esqueca”. Nem fechou nem esqueceu, sua mão estava pregada ao mouse e manobrava sozinha. As frases a estontearam com a rapidez com que apareciam e com o conteúdo “O que mais me impactou foi esse seu sorriso” “Até que em fim aconteceu nosso primeiro encontro para começar a conhecer-nos” “Minhas colegas falam que isto é namoro firme” “Eu também estava nervosa, mas desejava estar a sós com você naquele dia” “Só posso dizer que foi maravilhoso” “Eu também tenho sentimento de culpa” “Na segunda passo na sua empresa, para a gente conversar seriamente” “Já conversei com o meu advogado” “Está decidido, escolho sua proposta”
Escutou a porta da garagem se abrindo e Mário e Vânia entraram todos sorridentes. A mão que nos últimos instantes tinha agido independentemente da sua vontade, fechou finalmente a pasta, mas não a sua curiosidade nem esse sentimento encoberto que começou a crescer dentro dela. Sentia culpa, uma espécie de loucura estranha. Acaso estava duvidando de seu marido? Acaso, e o que é pior, pensava que o Mário seria capaz de alguma coisa do jeito? O que estava fazendo com seus vinte anos de matrimônio? Sempre dizia que era muito feliz, sempre jurou que eram um casal perfeito, nada a ver com o que tinha acontecido com a sua mãe. Não, não podia se entregar a esses pensamentos, não era justo, não era possível, se dependesse dela tudo seguiria da melhor maneira. É, era melhor esquecer, mais saudável, mais lógico, mais prudente.
O marido voltou para o escritório. Ela levou a menina para o quarto, para trocar de roupa pois a que vestia estava suja de sangue, e já que a menina tinha se acalmado, o melhor era que a deixasse assistindo desenhos animados.
“Ai dói!”, gemeu Vânia “Não dói mais minha filha, o doutor já arrumou, e logo você não vai lembrar mais disso, além do mais, a sua blusa tá manchada com sorvete. O papai comprou, né?” “Não foi o papai, foi aquela amiga do papai que deu pra mim” “Qual amiga?” “Aquela loira” “Quem era, como era ela?” “Ah, sei lá mãe, aquela que conversou com ele, só me lembro que vão se encontrar na segunda”
A cabeça de Sara ficou feito um turbilhão: e-mails, flores, encontro, aquele dia, advogado, proposta; e a filha perguntando “O que deu mãe, o que deu em você?” Ela já não escutava.
Essa noite a mulher não quis jantar. Dormiu pouco e seu sono foi alterado com pesadelos, ela se afogava num rio, pedia socorro e Mário, que estava à beira d’água, apenas sorria vendo como ela se afundava cada vez mais. Ao lado dele estava a filha que dava tchau com a mão. Quando acordou vieram todas as lembranças à sua cabeça. Tinham sido abandonadas, ela e a mãe, pelo pai, apaixonado por uma secretária mais jovem e charmosa, e nunca as ajudara. Haviam sido tempos difíceis, de muitas necessidades e muita desproteção. Alguma coisa sempre a acompanhara ainda adulta: o medo de ser rejeitada, a solidão a aterrorizava. Depois veio Mário, a Vânia, e já nunca mais sentira-se assim, até então.
Na manhã do domingo se entreteve cuidando das plantas, as formigas passeavam sem receio entre elas. Era a primavera. Procurou veneno, mas achou mais conveniente ficar esmagando-as uma à uma com uma raiva incontida, alheia a ela. Gritou com a filha quando não quis mudar de roupa. Mário a pegou pelos ombros e quis saber o que acontecia “Você está muito nervosa, algum problema? Pode falar, você sabe que não há segredos entre nós, talvez eu possa ajudar” “Tá tudo bem, não se preocupe, não dormi bem ontem à noite, apenas isso”
O telefone tocou e Sara atendeu. Do outro lado ouviu uma voz agitada “O Mário está? É um colega da empresa, diz a ele que é urgente e desculpa incomodá-los no domingo”
Bem, já tinha incomodado, mas o que fazer? Voltou para o pátio e desde ali deu meia volta. Foi até o telefone do quarto, e pôs-se a escutar “Cara eu acho que não está certo” iniciou o amigo “Bom, se não está dando certo a gente tem que escolher alguma vez na vida” “Mas, já pensou nas conseqüências?” “Já, mas também acho que está na hora de resolver... Eu pra mim tenho certeza que tudo vai dar certo” “A que horas vai a Ana pra firmar?” “Por volta das seis da tarde quando o expediente fechar”
Na segunda, Mário foi trabalhar como todos os dias e a menina para escola. Sara ficou sozinha, ainda remoendo uma vingança quase decidida. De tarde se reuniriam todos na empresa “Você não precisa ir, viu?, é reunião de colegas”. Por volta das quatro horas, ela entrou a tomar banho, cantando vagarosamente a música da Adriana “Nada ficou no lugar, eu quero quebrar essas xícaras, eu vou enganar o diabo... eu quero roubar no seu jogo... que é pra ver se você volta, que é pra ver se você vem... se você olha pra mim” Se penteou com cuidado, procurou o vestido, último presente do seu cônjuge. Assim vestida e perfumada pegou o carro e tomou o caminho da Esnaider Corporation.
“Porque és um bom camarada, porque és um bom camarada, porque és um bom camaradaaaaaa, e ninguém pode negar!”
Ao chegar, Mário ficou surpreendido de vê-la “Você decidiu vir? não fazia falta”. “Traidor” pensou “Você não tem vergonha na cara, tantos anos juntos, tantas alegrias, sempre acompanhei você em tudo e agora tá me traindo com uma qualquer, é sempre assim, a gente da tudo e recebe sem-vergonhices, mas eu não vou ser abandonada pela segunda vez, ah não!, já sofri muito, não quero mais, quando era criança era diferente, mas agora sou uma mulher e vou me defender, você vai ver”
Seus pensamentos foram interrompidos pela conversa de dois homens “Chegou a mulher, e agora? Quero ver como é que o Mário vai se sair dessa”. Sara decidiu rapidamente. Era esse o momento. Procurou na sua bolsa, pegou o revolver e atirou em direção do corpo de seu marido uma, duas, três, quatro vezes, até que só escutou o clique na sala silenciosa. Depois o mundo apagou para ela. Sentiu dois braços que aferravam os seus, e enquanto a levavam do lugar escutou um comentário para lá de ingênuo “Coitado do Mário, ele que tinha batalhado tanto esse contrato com aquela multinacional, fazia mais de um ano que estava tentando convencer à manda-chuva da empresa, até flores ele chegou mandar para ela... e hoje era o dia de assinar o contrato... e agora... olha o que vem a acontecer, que azar! O diabo meteu o rabo”. Sara, no entanto, continuou absorvida pelas palavras da música “Nada ficou no lugar, eu quero entregar suas mentiras, eu vou publicar seus segredos, eu vou mergulhar sua guia, eu vou derramar no seus planos o resto da minha alegria, que é pra ver se você volta pra mim”