334 - Intraduzível
Deixou o homem o povoado, a sua casa de pedra, soltou os bichos e fez na Serra uma cabana . Seguiu-o o cão. A fidelidade obriga-nos a ir onde vai quem amamos. Poderia ter continuado a dar contas da sua vida, a escutar os mexericos, as intromissões, os recados e recomendações. Os conselhos que não pedia. Voltava para comprar os víveres e ficava no novo abrigo a ver do alto a aldeia. Saudades tinha mas eram insuficientes para valer a pena regressar. Sentiu muito os primeiros dias sem o conforto da lareira, sem as tarefas que tinha para manter a horta e os animais mas, depois, percebeu que havia compensações: pensava mais por si mesmo e menos pelos jornais, rádio ou televisão os tais que se preocupam muito com a nossa privacidade mas que a vendem a quem der mais. Deixou de atender ao telefone gente que vinha do nada querer vender-lhe coisas, que sabia o seu nome, que tinha o telefone e sabia, exactamente o seu endereço. A devassa era permitida, a hipocrisia e o engano a regra. Era tudo tão nauseabundo, tão vil que era imperioso a um rebelde furtar-se e passar a morar onde ninguém sabia. Essa fora a ideia. Trouxe, a duras penas o material, erigiu a cabana, calafetou os buracos, assoalhou-a. Quando começava a readquirir algum conforto chegaram os fiscais para informar que estava em propriedade do Estado, que o localizaram sem qualquer dificuldade, que deveria sair dali. E ele, de tão revoltado, perdeu a fala que sempre tivera como as demais coisas que já havia perdido, olhou-os furioso e respondeu em dialecto, rezava o relatório dos agentes. Na verdade, querendo cortar com o mundo dos hipócritas, dos gananciosos, dos desonestos impunes, Hipólito voltou à aldeia mas nunca mais falou a língua de todos. Escreve o que quer comprar ou precisa mas fala sempre em hipolitês, um dizer intraduzível.