327 - O Corvo
Chamo-o e ele vem. Andava-me a vida em círculos. As manhãs repetiam os mesmos gestos e, se inquietações houvesse, subiam e desciam sempre iguais como gémeos. Há alturas em que nos apetece estar no escuro, no silêncio, longe de todos os que, certinhos como um relógio suíço, sempre pontuais e impolutos, padrões de santidade oficial servem para acender as chamas do nosso esquecido inferno. A vida era, como disse, repetida e sem rasgos. Um dia, vi-o a descansar num braço da cruz da torre da capela. Olhava virando a cabeça e mantendo o corpo negro numa quietude serena. Badalavam os sinos a tristeza de um adeus e ele parecia estar ali para confirmação do azar. Quando o cortejo se perdeu na estrada e já todos entravam no lugar onde ficam os restos, as cinzas e os vazios, ele, saiu em voo rápido e assistiu ao elogio do defunto sobre a cabeça do anjo de pedra. Todos o viam mas, supersticiosos, ignoraram a ave para, assim, afugentar os agoiros. Acabada a função dispersaram todos e ele veio para a cruz da capela e olhava-me ainda parado como se tivesse em si a vida suspensa. Olhei-o também, com a firmeza que pude e, quase por instinto, gritei: Vicente! Vicente! Vi-o erguer-se majestoso e pairar em largas e altas curvas como se me quisesse avaliar de cima. A seguir, baixou até ao beiral da casa vizinha e ficou a pesar a força do diálogo que se ficara pelo nome que gritei. Estendi a mão e ele, o corvo, veio até à palma que oferecia, comeu do que havia, crocitou qualquer coisa e voltou à rua sumindo na noite. Por ele o dia ficou marcado de diferença. Quando o revi ele só esperou que o chamasse. Comeu, bebeu e mudo disse-me que não era dali mas que se chamava Vicente.
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