315 - O Magusto
Estava pronta e ele não vinha! Apertava-a o cós da saia e o rímel que nunca antes usara dava uma comichão quase imperceptível nos olhos. Olhou outra vez o relógio. Ainda não estava na hora que combinaram nem ambos queriam chegar ao baile em primeiro lugar. Dizia-se ser pouco elegante mas nem ela perguntou por quê nem talvez ninguém soubesse dizer. Acontece muito. Retocou a boca, cheirou os punhos para perceber se o perfume ainda se mantinha. Como ele demorasse, isto é, como ele fosse pontual, o remédio seria esperar mesmo os quarenta minutos que faltavam. Soltou o colchete da saia, apoiou, com mil cuidados, a cabeça no braço e preparava-se para rememorar a história do Gonçalo na sua vida quando ele apareceu e disse que aquela festa era diferente, que lhe exigiam o bigode, uma parte dele, antes de lhe darem a reserva da mesa. Deixou o bigode todo e, agora, queriam um pedaço de si para poderem entrar. E ela, sem mesmo pensar no assunto, destacou um lobo de orelha e entregou sem sentir nada. Ficava só com um brinco mas talvez ninguém notasse. Quando entraram redobraram de exigência e já iam a pedir dedos, os anéis emprestados, a manga de renda preta da blusa e um sapato. – Nunca vi uma tal coisa, dizia o namorado resistindo a entregar o relógio suíço, ouro de lei, numerado e assinado, uma obra magnífica que raras vezes era consultado pelas horas. – Escolham outra coisa mas o relógio não. Enquanto não acertavam o preço da permanência no Salão completamente vazio, ela esfregou os olhos, borrou a pintura e, desesperada, abriu a boca para gritar. Nenhum grito se escutou e, de braço dormente, acordou às dez em ponto e ele tocava pela segunda vez para lembrar que, a partir dali, seria tarde.