CONTO DE FADAS FILOSÓFICO

Atenção: Essa história é um faz de conta, não tem, portanto, a obrigação da total fidelidade aos acontecimentos históricos.

Era uma vez um rapaz que nunca existiu porque sua existência nunca foi registrada e que, mesmo que tenha existido, sua vida não teria como ser conhecida pois esse Descartes ignorado estaria vivendo apenas no interior de uma mente e jamais se mostrará ao mundo real, se mundo real houver. Esse rapaz, por não ter sido registrado pela história, não tem nome, mas dentro desse faz de conta ele só pode ser um rapaz porque naquela época mulheres não podiam ser professoras, ou pelo menos não podiam ser professoras nos colégios jesuítas dos primeiros tempos do Brasil colônia. Enfim, o rapaz que não existiu era um homem e era um jesuíta.

Pois bem, o rapaz inexistente, que era um homem e que era um jesuíta e que era um professor, chegou ao que era o Brasil, mais especificamente ao que era a Bahia, para lecionar português para os filhos dos senhores de engenho e de seus agregados. Na bagagem trazia o ratio studiorum junto com o cansaço da viagem e uma insipiente fraqueza física que demoraria meses a ser superada e que era resultado das privações, da intranquilidade e do desconforto típicos dos muitos dias e das muitas noites passados dentro do espaço restrito e inseguro de uma nau.

Obedecendo fielmente as ordens superiores, o rapaz que não existiu havia, durante as longas horas de viagem, conseguido decorar o livrinho que teria que ser a base de todo o seu fazer pedagógico durante o restante dessa vida que passaria ensinando português naquele Brasil que nem era, naquele tempo, algo parecido com o que se poderia, sem faltar com a verdade, chamar realmente de Brasil.

Graças à eficientíssima pedagogia do espancamento e a uma covardia nata esse rapaz inexistente aprendeu, ainda na primeira infância, a se tornar um excelente “balançador” de cabeça e um ainda mais eficiente especialista na difícil arte de manter a boca fechada. Ele foi designado pela família, ainda antes de nascer, ao “serviço de deus” e, verdade seja dita, tem se saído muito bem.

Chegar ao Brasil foi, é claro, entrar em outro mundo, olhar para os negros como inferiores e para os índios como seres sem alma parecia tão incoerente que o olhar treinado para a indiferença e a cabeça treinada para a aquiescência tiveram uma certa dificuldade para acompanhar as palavras de piedade sem sentido que os lábios se viam sempre obrigados a pronunciar. Mas ele saiu-se muito bem e logo deu mostras de ter se ambientado bastante bem na nova escola.

Nesse ponto já deu para perceber que no Brasil colônia estava chegando um sublimado hipócrita. Por que optaria eu por, no meu faz de conta, criar um personagem inexistente que tenha como principal marca de seu caráter essa característica considerada quase que com unanimidade como sendo tão vil? Porque lendo o texto de Gonçalves de Magalhães e seus argumentos que, apesar das inúmeras referências a deus e da insistência na verdade de sua existência, um pouco pelo conteúdo e muito pelo estilo, com bastante facilidade nos remetem à Ética a Nicômaco e que, justamente por essas argumentações teológicas nos remetem também à crença argumentativa de São Tomás de Aquino, pensei em, em forma de faz de conta, questionar essa possibilidade: será que fica muito fantasioso a gente se perguntar se não existiram pessoas que pensavam com mais audácia essas mesmas questões tratadas por Gonçalves de Magalhães mas que, pela situação de opressão em que se vivia na época, jamais ousavam manifestar esses pensamentos? Fantasiar essa hipótese será fantasiar tanto assim? Voltemos, pois, ao nosso personagem inexistente e sem nome.

O bom do início da atividade pedagógica do rapaz que nunca existiu foi ter ficado com a turma das primeiras letras, ou seja, sua preocupação primeira como professor ia apenas um pouco além da alfabetização, então, nas cópias, nos ditados e nas pequenas redações era quase impossível que surgisse alguma pergunta ou alguma questão que exigisse como resposta algo mais do que as informações que estavam no livro de orações que todas as damas carregavam consigo na missa de domingo.

Nas reuniões mensais a que comparecia com os outros professores da casa e o padre diretor, bastava repetir trechos bíblicos e frases de São Tomás de Aquino, manter uma expressão ao mesmo tempo interessada e submissa e exercitar muito sua capacidade de “balançamento” de cabeça não deixando de, vez ou outra e o mínimo de vezes possível, tecer um comentário “criativo” que comprovava ao diretor - que conhecia, é claro, o ratio studiorum - que ele tinha diante de si um professor satisfeito com seu trabalho e envolvido de coração na tarefa dada a ele por deus. O diretor sorria feliz e o rapaz que nunca existiu podia ficar tranquilo que ninguém o incomodaria com perguntas.

Ninguém o incomodaria com perguntas... Mas no privado do seu minúsculo quarto, bem depois de apagarem-se as luzes, como esse rapaz que não existiu incomodava a si mesmo com perguntas! E com quantas perguntas ele se incomodava! Tantas e tantas a ponto de pouco conseguir dormir e até mesmo a ponto de ter sua saúde bastante fragilizada. Ele sentia e sentiu sempre que a filosofia é a ciência das perguntas, e por menos que quisesse fazer filosofia, o rapaz que nunca existiu sentia que as perguntas mais provocativas são aquelas que não se respondem nunca. Essa curiosidade que a sua teimosa lógica insistia em ver como sendo natural do homem poderá mesmo ser em alguma época satisfeita e sufocada pelas verdades reveladas? seus suores indicavam claramente que não.

Ele não tinha como saber de muitos outros, ou de nenhum outro, mas sabia de si e sentia que foi pelo sequestro da filosofia que a religião venceu, sentia, por menos que desejasse sentir, que a religião conseguia predominar em tantas mentes apenas pela descaracterização e pela forçada submissão da filosofia à teologia; mas essa submissão, em seu caso, parecia impossível porque ele sentia que não é possível conciliar o espírito irrequieto dessa ciência da busca interminável e rica com a apatia da estagnação diante de um tipo de conhecimento que se quer definitivo. Ele não conseguia aceitar como uma “verdade inquestionável” aquilo que na sua mente torturada se vislumbrava como tão questionável: a religião. Ah, como a cabeça lhe doía!

O rapaz que nunca existiu conhecia o medo desde muito cedo, conheceu o medo-pavor do peso da mão do pai e passou a obedecê-lo cegamente, conheceu o medo da palmatória dos padres e tornou-se um aluno exemplar e um cristão fervoroso e convicto, pelo menos na aparência, e conheceu o medo-pânico do peso da mão secular da santa igreja e se tornou um padre extremamente dedicado ao serviço de deus, um deus que ele não conhecia e não reconhecia, que não via, não sentia, um deus que não conseguia crer que existisse mas que tinha que amar incondicionalmente e cuja “palavra” tinha que propagar por menos que ela lhe significasse.

Por conta dessa vida passada na consciência e na consciência do medo o rapaz que nunca existiu jamais soube o significado corrente da palavra amor, para ele amor era aquela dedicação extremada que as pessoas faziam de conta que tinham pelas outras pessoas, e por deus principalmente. O rapaz que nunca existiu, dentro desse conceito, conseguiu amar a memória de sua mãe, que havia morrido ao lhe dar a luz; conseguiu amar seu pai que o castigava frequentemente e que o mataria caso ele não se submetesse sempre; conseguiu amar cada um de seus professores e colegas de estudos; conseguiu amar seus livros e agora seus alunos; mas seu maior êxito foi conseguir, dentro do seu próprio conceito, amar a deus sobre todas as coisas e, sempre em vão, pronunciar seu santo nome com muita frequência e com a maior aparência de fervor e dedicação possível. Era uma total entrega de alguém que jamais se entregou.

Todo domingo na missa, o rapaz que nunca existiu via ajoelhados, recebendo os sacramentos e saindo da nave, perdoados e purificados por deus, os pais de seus alunos e exatamente o que muitos de seus alunos viriam a ser num futuro próximo; senhores ricos e seus mandados que passavam a semana inteira espancando e acorrentando negros, estuprando e vendendo negras, comerciando gente como se bicho fossem, torturando pessoas como se pessoas não fossem. Nessas missas e diante dessas cenas, o rapaz que nunca existiu vestia seu olhar de suprema piedade, baixava os olhos em sinal de submissão e segurava com a força de dez Hércules o coração que no peito lhe pulava de revolta e nojo. Ah, com quanto fervor e com quanta dedicação ele dizia as orações! e com quanta convicção pronunciava todas aquelas palavras que significavam exatamente o contrário do que ele gostaria de dizer!

Só na solidão e no escuro de seu quarto, às vezes, (muitas vezes!) o rapaz que nunca existiu permitia que sua mente se soltasse e imaginava como poderia ser diferente toda a filosofia que estudara se ao invés de partir da certeza “Deus existe.”, essa filosofia pudesse, sem punições, sem torturas, sem mortes, partir da pergunta “Deus existe?”, e ele tentava responder a pergunta proibida, pensava na bíblia e na história da criação, pensava em um deus onipotente que, de livre vontade, colocava no centro de um jardim uma árvore que poderia, porque é onipotente, nunca ter plantado. O rapaz que nunca existiu não entendia como poderia um deus todo bondade armar para seus dois ápices de criação, uma armadilha tão insidiosa quanto a que os deuses gregos armaram para Pandora, não fazia sentido e por não fazer sentido desde o princípio, a vida e a criação não faziam sentido no todo.

Mas o que faria sentido então? Ele pensava e pensava: aqueles homens que viviam de torturar homens estavam certos de que, por serem “tementes a deus”, por irem à missa todos os domingos, por se confessar e pagar as penitências em forma de Pais Nossos e Ave Marias e, principalmente, por colaborarem com muito dinheiro com as obras da igreja, eles certamente iriam para o céu quando morressem, estariam sentados à direita do deus pai e como escolhidos e privilegiados viveriam uma eternidade de bem aventurança com o prazer adicional de poder ver, no inferno, como desejava São Tomás de Aquino, os hereges e não cristãos sendo queimados nas chamas eternas e ardentes alimentadas pelo diabo. Não havia como, por mais que tentasse, o rapaz que nunca existiu não podia convencer a si mesmo de que um deus que a isso se prestasse poderia de alguma forma ser chamado de justo e de bom.

Então ele pensava que talvez tudo aquilo fosse mentira e talvez não existisse deus nenhum e diabo nenhum, esse pensamento chegava a dar-lhe um alívio bastante grande, e o peso na consciência que o esmagava por dentro quando afirmava com enorme convicção para seus alunos que deus existia, que deus era o criador justo e bom e que nós somos todos os supremamente amados filhos de deus aliviava-se muito porque o rapaz que nunca existiu sentia que, em não existindo nada daquilo, as pobres crianças estavam apenas ouvindo e crendo em uma historinha que não lhes faria mal porque ao morrer tudo se acabaria como o apagar de uma chama e elas jamais saberiam que foram enganadas. Dessa forma todos os seus alunos viveriam bem, cuidariam de suas vidas e de seus compromissos com a igreja sem se torturarem; a não ser que algum deles tivesse a infelicidade de ter sua mesma cabeça e seu mesmo coração questionador e inquieto.

Mas justamente por ter essa mente assim tão irrequieta, o rapaz que nunca existiu não conseguia satisfazer-se com essa explicação de que tudo era uma mentira e nada existia. Ele acreditava na própria existência e se dizia “Se estou pensando, se estou me torturando na tentativa vã de compreender o que não compreendo, então é isso prova de que eu existo, e se eu existo é isso prova de que alguma coisa me colocou aqui, que coisa será essa se não posso aceitar como válida a explicação de que foi um deus bom que mata, que manda matar e que perdoa assassinos e os leva para paraísos eternos? Seria então um deus mal? Seria o diabo que desde o começo venceu e agora está nos enganando tomando o lugar de deus?

Mas existem também coisas maravilhosas no mundo, existem também pessoas que são realmente boas e que na realidade não precisariam nunca se confessar e pagar penitência, pessoas que fazem com que eu pense que teria que existir um paraíso só para elas porque não merecem ir para esse paraíso eterno porque não merecem passar a eternidade junto desses assassinos que lá estarão. A existência do bem no mundo exclui a possibilidade de que o mundo seja governado pelo diabo da mesma forma, ou mais ainda, que a existência do mal exclui a possibilidade de que o mundo seja criação de um deus todo bom e todo poderoso. Qual seria então a resposta?”

E o rapaz que nunca existiu se torturava sem disfarces no seu quartinho escuro, e se torturava debaixo da espessa camada de mentira que construiu para sobreviver. Ele via uma formiga e mostrava para os alunos chamando didaticamente a atenção deles para o poder de deus e a perfeição da sua criação: “Vejam que maravilha deus pode criar, é tão pequeno e no entanto esse animal tem boca, tem olhos, tem estômago; contemplem crianças, em todos os seres da natureza, o poder de deus!” E ao mesmo tempo ele se perguntava: “Por que um deus todo bondade criaria a formiga e o homem e diria que o homem é superior à formiga? Será que para uma formiga deus não seria um formigão transcendental que criou toda a natureza e as formigas à sua imagem e semelhança? Mesmo que seja risível essa minha observação, um deus poderoso perfeito e bom pode mesmo ter criado a formiga e o homem e preferir o homem? Sendo o homem um ser consciente e mesmo assim capaz de tanta maldade e sendo o ato de destruir um formigueiro uma das menores maldades que comumente pratica, faz sentido essa predileção?”

Por tudo que viu e ouviu em todos os anos de adestramento na arte de balançar a cabeça, o que ele aprendeu é que é preciso que o religioso ajude as pessoas comuns a elevarem seu espírito a ponto de conseguirem, graças à sua interferência e à luz de deus, atingir um nível superior de conhecimento que permita a essa pessoa a comunhão com deus e a entrega total de seu espírito à verdadeira fé e à verdadeira religião. Tudo bem, tudo esclarecido, e no caso de alguns padres e pregadores, tudo tão bem explicado que fica quase impossível não concordar e não sentir que sua mente se abre, seu espírito se eleva e que há um deus que nesse momento o recebe carinhosamente em seu regaço. Todas essas explicações e a descrição de todo esse resultado, esperado e muitas e muitas vezes conseguido falhou terrivelmente no que diz respeito à mentalidade irrequieta e questionadora desse rapaz, que nunca existiu e que se via acuado pela época em que vivia, pela própria mente, pelo próprio coração e pelos perigos que corria se alguém desconfiasse do que lhe ia por dentro.

Ele se pergunta em suas noites insones por que nunca conseguiu se deixar levar por esse enlevo, porque algumas palavras batem com força em seu coração e como pedras o ferem fazendo-o sangrar dúvidas. A palavra “verdadeira” ligada às palavras fé e religião é uma pedra grande e pontiaguda. Por que só essa e apenas essa seria a religião verdadeira? Por que um deus tão bom permitiria a proliferação de tantas religiões falsas e, consequentemente, a existência de tantas pessoas condenadas ao pecado por não terem tido a oportunidade de conhecer a única religião verdadeira? E por último: o fato de serem os que pertencem a essa religião e que lucram com ela aqueles que afirmam e ensinam e exigem que se creia que ela é a única verdadeira não é muito suspeito? Melhor, por segurança, continuar fazendo de conta que sentiu o toque dessa luz e esconder a sua incapacidade de atingir esse nível superior de conhecimento.

E de disfarces em disfarces, de pensamentos em pensamentos, de torturas em torturas, numa hipocrisia suprema e dolorida habilmente construída e cultivada como mecanismo de sobrevivência, o rapaz que nunca existiu viveu alguns anos como um professor bondoso e compreensivo que ensinava seus alunos com amor. Foi lembrado (ou esquecido) como aquele mestre dedicado e amoroso que passou anos seguidos no cuidado e preocupação com seus alunos.

Ninguém podia negar que ele viveu todos os anos de magistério zelando pelo bem e pela saúde completa de seus alunos, tanto cuidando de seus corpos quando os orientava na maneira de melhor se alimentar, numa reverência agradecida ao deus que proporciona todo alimento e na contenção do abuso que pode levar ao pecado da gula e orientando-os na melhor maneira de se colocar na fila para as aulas, nas carteiras em respeito pelo conhecimento que iriam adquirir e na missa para honrar a deus, quanto cuidando e zelando também e principalmente pelo bem e pela salvação de seus espíritos, aplicando-se em dar a eles, junto com as lições de leitura e escrita, lições da maravilha, do poder, da bondade e do amor de deus.

Mas o rapaz que nunca existiu, talvez por tanto se ter torturado durante toda a vida, morreu cedo. Pouco tinha passado dos trinta anos quando a sua sempre frágil saúde o fez sucumbir. Depois de receber, em seu leito de morte, todas as cerimônias necessárias à salvação da alma e à garantia de uma pureza de espírito mais do que suficientes para proporcionar a esse servo do senhor deus seu lugar privilegiado no paraíso eterno, ele fechou os olhos e como últimas palavras disse: “Eu não entendo.”

Divina de Jesus Scarpim
Enviado por Divina de Jesus Scarpim em 09/11/2020
Reeditado em 30/01/2021
Código do texto: T7107588
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